Pacheco Pereira utilizou o Público para desabafar. Nada contra, pois Santana Castilho faz o mesmo todas as semanas há vários anos e até nos divertimos. Mas ao optar por não falar sobre o caso concreto de Serralves, entendeu amanhar uma amálgama de coisas sobre cultura como pretexto para zurzir naqueles que o associaram ao caso da alegada censura e da demissão de Ribas. De um texto escrito para cumprir um objectivo tão pequeno não se pode esperar muito e, se Pacheco Pereira quiser mesmo discutir modelos de financiamento da cultura, seria bom perder mais algumas crónicas com o assunto, deixando o ego e a honra de fora.
Já ninguém quer saber da França e o modelo de política cultural "Malraux-Lang" tende a ser apresentado - Pacheco não foge à regra - como um "instrumento intocável de propaganda nacional, política e local". De resto, os nossos liberais, tendencialmente anglófilos, adoram cascar na França estatizada e Lang (do Malraux já não se lembram) dá sempre um jeitão.
A verdade é que os Franceses lêem livros. A paisagem urbana mudou com a chegada dos telemóveis, mas nos anos noventa, quando fui viver para França, a frequência de pessoas que liam livros no metro de Paris deixava-me a pensar se não teria vindo de um país de analfabetos funcionais, pois em Portugal ninguém lia livros nos transportes públicos. Os Franceses lêem em média 16 livros por ano; os Portugueses compram, em média, menos de dois livros por ano (os valores não resultam de uma comparação controlada, mas a amplitude da diferença é esclarecedora). A França, hoje sempre vista como o exemplo da perda de hegemonia cultural no mundo, ainda tem uma verdadeira cultura literária, com mercado que disponibiliza toda a grande literatura em edições de bolso baratíssimas, estrelas intelectuais, tradição de debate. Quem "não tem tempo" para ler pode limitar-se a comparar durante o jogging a qualidade dos podcasts da France Culture com os nossos podcasts de alta cultura para perceber que a diferença é abissal. Os Franceses discutem a sério. Mesmo as discussões muito mediatizadas, sempre afectadas pela componente teatral, têm um nível da argumentação, riqueza de informação e choque de ideias sem paralelo em Portugal, um país em que Pedro Adão e Silva e Pedro Marques Lopes fazem um programa de "debate" cujo único contraste é a qualidade da exposição de uma mesma ideia - aliás, em Portugal todos os programas com painel fixo não são de debate, pois 95% do tempo é gasto com monólogos pensados antes do programa, não havendo tempo para discutir. E não divago, porque isto está tudo ligado. A ideia de que as elites não são afectadas pelo nível cultural médio do país deve ter sido posta a circular pelas elites e carece de confirmação empírica.
É claro que Maulraux e Lang não são os únicos pais da cultura literária da França, mas terão tido alguma responsabilidade na massificação da leitura e do consumo de livros. E tendo em conta o nosso atraso cultural e o desprezo do mercado pela cultura, pergunto-me se não precisaremos mesmo de um Maulraux ou de um Lang para assegurar o mínimo indispensável. Como escreve Pacheco, Portugal "não tem sequer um corpus da sua grande literatura disponível quer em edições críticas, quer em edições populares de qualidade". Não estou a ver LeYa a resolver este problema, mas a imaginação dos nossos liberais deve ultrapassar a minha.
Também a ideia de uma política cultural à Vasco Graça Moura, que Pacheco defende, isto é, exclusivamente dedicada à preservação do património e sem políticas que derivem de "opções de gosto", é um velho debate que precisa de ser recuperado, talvez começando por perguntar: o que não é uma opção de gosto? Mas seria mais útil contar com Pacheco depois de o cronista ter dito ou escrito o que lhe vai na alma sobre Serralves. Até lá, seria bom que se dedicasse a Orwell, Trump, à bibliofilia ou qulquer outro dos seus temas recorrentes.