No que diz respeito às liberdades individuais, a Holanda legalizou o consumo e o comércio de droga (supostamente das leves, mas com uma enorme tolerância face a todas as outras, cuja liberalização total, aliás, já se discute), não penaliza e até consente a prostituição e legalizou, há muito, o aborto e a eutanásia. Ou seja: absoluta liberdade individual de cada um dispor do seu corpo e da sua personalidade, independentemente de juízos morais de terceiros. E, se no âmbito dos direitos individuais a Holanda é exemplarmente liberal, em termos económicos também o é: baixos impostos, intervenção do governo reduzida e em forte decréscimo desde, pelo menos, os anos 90 do século passado, leis simples e claras, tendo daqui resultado uma das economias mais fortes do Ocidente, com exportações e uma actividade financeira das mais competitivas e prósperas do mundo. Em resultado disto, a Holanda ocupa sempre um dos dez primeiros lugares no ranking de competitividade do Fórum Económico Mundial, tem uma taxa de desemprego residual, superávites orçamentais e ficou no sétimo lugar no Índice de Desenvolvimento Humano do ano de 2016 (Portugal estava num humilíssimo 41º lugar). Para além de tudo isto, o óbvio: a Holanda é uma democracia estabilizada, com um estado laico.
Apesar de tudo isto e dos indicadores de sucesso, não gostei do que vi. Ou melhor, o que vi, sobretudo a partir da análise de Amesterdão, onde estive mais tempo, não me agradou. (...)
Em conclusão, parece-me que as liberdades de que usufrui o povo holandês, que perfazem a quase totalidade das principais liberdades libertárias ou liberais, contribuíram mais para a desagregação social do que para a sua elevação. Julgo que essas liberdades destruíram o sentido de «comunidade» e contribuíram muito para a banalização do mal, ou, vá lá, do vício, em vez de terem completado as pessoas que delas beneficiam. (...)
A sociedade holandesa parece ter construído o seu padrão existencial a partir de um princípio de individualismo total, o que deveria agradar a um liberal como eu, que sempre o preguei. Esse excessivo individualismo – onde cada um faz o que quer, no pressuposto de que não interfira com a liberdade dos outros – pareceu-me ter conduzido a sociedade holandesa a um enorme desenraizamento social e humano. Poderei estar a dizer um enorme disparate, porque não consultei estatísticas nem números, mas aposto que o número de divórcios e, sobretudo, de pessoas que vivem sem família nuclear é elevadíssimo. (...)
... os holandeses não têm desemprego, dispõem de níveis excepcionais de desenvolvimento humano, de liberdade e de concorrência económica e de invejáveis liberdades? É inegável que sim. E, no fim disso tudo, serão mais felizes do que nós, portugueses? Francamente, acho que não. rui a.
As citações são de um texto apropriadamente intitulado "Um liberal confessa-se em Amsterdão". O título não é apenas belo, pois destaca-se na forma como honra o verbo "confessar". Já ninguém confessa a ponta de um corno, se me permitem a expressão. Não sei o que se passa nos confessionários, mas em público, quando alguém usa o verbo "confessar", em regra é para proferir algo que em nada o compromete, antes pelo contrário, pois o "fishing for compliments" e o "soft virtual signaling" são quase sempre evidentes. Não é o que se lê no texto de rui a., que revela alguns sinais de conservadorismo a lembrar um Pedro Arroja de uma fase ainda precoce mas que já deixava sinais da beatização aguda subsequente. Percebe-se que num liberal agnóstico atento tais pensamentos sejam motivo de reflexão.
A forma mais óbvia de discutir o texto de rui a. é responder-lhe com um argumento empírico. Os Holandeses estão entre os 10 povos "mais felizes" do mundo. Poderíamos discutir a validade destes estudos, isto é, se realmente medem a felicidade, se são apenas um índice que sintetiza estatísticas socioeconómicas objectivas ou até um instrumento perverso ao serviço do "marxismo cultural". Francamente, é o que menos me interessa.
O texto é um magnífico pretexto para confessarmos alguma evolução no nosso pensamento criadora de tensão interna. No meu caso, sem me alongar muito, reconheço a tendência para um aumento progressivo do conservadorismo, apesar de ainda me definir como um "homem de esquerda" e não ver sequer razão para me dizer agnóstico em vez de simplesmente ateu. Reconheço a centralidade das religiões estabelecidas, a importância da família, as virtudes da monogamia (apesar de ouvir o Savage Lovecast), a melancolia da prostituição, a imoralidade de se negar a uma criança o direito a conhecer os seus progenitores biológicos, o paternalismo de muitos progressistas, a hipocrisia de muitos esquerdistas, a superioridade do trivium e quadrivium face a disciplinas modernas, a possibilidade séria de num futuro próximo o aborto ser encarado como uma prática grotesca (tendo eu feito campanha pela IVG), o gosto por tatuagens e piercings em corpos bonitos e a repulsa quando os corpos são feios (como se não bastasse o conservadorismo, também o elitismo), a força moral de Jordan Peterson, o génio de Agustina, o mérito da técnica na arte ou - refromulando - a vontade de esmurrar Damien Hirst... Enfim, esta tendência tem tido uma evolução gradual nas últimas duas décadas, talvez acelerada depois do nascimento das minhas filhas. Mas tudo isto é profundamente banal e previsível. Confesso que teria preferido evoluir no sentido oposto para me descobrir libertário aos 50. Em suma, confesso a vaidade frustrada de não me ter descoberto mais original.