Alega a articulista que a figura de Njinga “representa a complexidade da história da escravatura”. Ou seja, uma estátua sua mostraria ao cidadão comum que os negros também estavam envolvidos no tráfico de escravos e seria, portanto, e de certo modo, uma estátua didáctica. Mas trata-se, a meu ver, de uma fraca justificação. O que parece haver aqui é gato escondido com rabo de fora, sendo que o dito gato é mais uma frente do combate pela memória. Por outras palavras, mais uma tentativa de invasão do nosso espaço público com memórias, figuras e narrativas que não são nossas. João Pedro Marques, Público
Como corolário da discussão em curso sobre a memória da escravatura, a ideia de erguer uma estátua à rainha Njinga em território nacional é péssima. A erguer-se alguma estátua seria uma representativa dos próprios escravos, feita de um modo que os dignificasse. Isto parece-me evidente e só quem estiver muito enredado na retórica da política identitária não chegará à mesma conclusão. Mas também João Pedro Marques vai por atalhos muito discutíveis.
Para definir que figuras e narrativas não são as nossas precisamos de definir primeiro quem somos. Temos afrodescendentes. É uma comunidade creio que inferior a 2%, mas mais numerosa do que a comunidade judaica, que está a construir o seu museu em Lisboa. Não me interpretem mal: louvo o aparecimento de um museu judaico e antecipo que nesse museu se aprenderá algo sobre as perseguições aos judeus e a Shoa. Ora, o último pogrom feito por portugueses terá sido em 1506 e não houve participação directa de Portugal na Shoa, enquanto Portugal e muitos portugueses tiveram um papel de grande destaque no comércio de escravos africanos até ao século XIX. Como, então, negar aos afrodescendentes portugueses um monumento em Portugal à memória de um dos aspectos mais trágicos da sua história?
Naturalmente, o que somos é mais complicado do que o parágrafo anterior deixa subentendido. Dependendo da região, existem em Portugal 3 a 12% de linhagens femininas oriundas da África subsaariana, o que aumenta consideravelmente o número de portugueses com uma ligação de ancestralidade aos escravos ou às comunidades de onde saíram escravos.
E podemos ainda acrescentar que os dois parágrafos anteriores denunciam uma visão redutora do que são as nossas memórias, figuras e narrativas, pois qualquer português sem vínculo genético (recente) a África relaciona-se de forma mais engajada - assumindo a culpa ou preferindo a relativização - com a memória do tráfico negreiro do que um cidadão nepalês. O exemplo mais à mão é, naturalmente, o próprio João Pedro Marques, que, a partir da história da escravatura, tem vindo a criticar com notável insistência a chegada da política identitária à "luta de memórias".
O tema merece mais tempo, mas o tempo é curto.