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OURIQ

Um diário trasladado

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30
Mai18

Eutanásia: a questão filosófica central


Vasco M. Barreto

Embalado pelos acontecimentos recentes, fui ouvir o debate sobre a eutanásia entre Peter Singer e o arcebispo Anthony Fisher, que vos deixo. Singer sempre me pareceu um filósofo sobrevalorizado e perde claramente diante de Fisher, em parte por se recusar ostensivamente a discutir o "slippery slope", que é uma das principais preocupações de quem rejeita a eutanásia, e também porque o seu oponente é um homem de grande inteligência e muito empático. Apesar das muitas questões abordadas, a diferença entre "deixar morrer" e "matar", que me parece ser a questão filosófica central, é pouco trabalhada. Mas há por aí uns bons artigos sobre o assunto que recorrem ao método do "eléctrico desgovernado" para clarificar ideias e até produzir alguns dados empíricos. Quando tiver tempo, conto discutir um ou outro.

 

29
Mai18

Eutanásia: o ecumenismo pode esperar


Vasco M. Barreto

Dos muitos textos sobre a eutanásia que li nos últimos dias, entre muita indigência e previsibilidade, muito páthos e alguma confusão mental ou tacticismo, sem deixar de destacar as extraordinárias alusões de Rui Ramos ao eugenismo, num exercício alarmista de quem ignora a evolução dos dados sobre o aborto desde a sua despenalização, a única ideia nova (para mim, bem entendido) veio de Joel Lourenço Pinto, da Igreja Presbiteriana de Portugal, que nos propõe uma ética da transgressão. É um belo e esclarecido texto, o único em que o autor procura realmente, sem os chavões da "dignidade" e quejandos, conciliar a ideia de preservação da vida com a de compaixão e solidariedade em situações extremas, propondo a transgressão como resposta. Duvido que esta solução tenha tradução legal e, de certa forma, trata-se de um "nim", mas é uma posição francamente mais corajosa e decente do que aquela que ainda vigora. 

O debate atual sobre a eutanásia e o suicídio assistido permitiu que as diferentes tradições religiosas presentes no nosso país nos oferecessem recentemente uma manifestação de unidade inter-religiosa ao pronunciarem-se sobre a sacralidade da vida humana o que, nos tempos que correm, não pode deixar de ser relevante. No entanto, ao circunscrever a prática da misericórdia e da compaixão aos cuidados paliativos, omitindo tanto os crentes como os descrentes que julgam ter direito a uma morte conforme à sua dignidade humana, opondo-se frontalmente à morte assistida em qualquer das suas formas, a declaração não deixa de causar uma certa perplexidade. Foi por essa razão que a Igreja Presbiteriana de Portugal [1], cujo Sínodo tenho a honra de presidir, não subscreveu essa declaração. (...)

Como protestantes, partidários da laicidade do Estado, preferimos uma solução jurídica que respeite a autonomia dos cidadãos e igualmente as suas convicções, evitando ratificar uma prática que possa vir a pôr em causa a proibição do homicídio como referência ética estruturante da nossa vivência colectiva.

Porque não nos é possível desdramatizar a morte assistida que é, e permanecerá, um ato grave, sugerimos que em vez de legalizar a eutanásia, a Lei permita que em determinadas circunstâncias, seja admitida a sua impunidade excepcional, tanto na sua forma ativa direta como na do suicídio assistido, exigindo um controlo rigoroso que evite os abusos. Assim, a nossa sociedade será plenamente moral e misericordiosa. Admitir a transgressão do intransgressível é reconhecer a possibilidade de surgir uma brecha ética no âmago da ordem jurídica, sem escamotear o caracter excepcional, responsável e fundamentalmente não evidente, da eutanásia.

A ética protestante salvaguarda a possibilidade de alguns casos particulares não serem simples homicídios ou simples suicídios, como foi demonstrado por dois dos maiores teólogos protestantes do século XX, Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer, confrontados com a problemática da resistência ao nazismo. A estes dois gigantes da teologia, juntou-se recentemente o ilustre teólogo católico romano Hans Küng que, num livro notável afirma, entre outras coisas, que embora a vida seja um dom de Deus, ela é igualmente uma tarefa humana responsável. (...) Fala por ele, sem encorajar seja quem for a imitá-lo, mas ressalva ser impossível que o Deus bom, cheio de compaixão, revelado por Jesus Cristo, deseje que as suas criaturas morram no pior sofrimento físico e mental; um Deus que proibisse o homem de por termo à sua vida quando esta o obriga a carregar duravelmente fardos insuportáveis, um tal Deus, não é seu amigo.

A coragem ética parece-nos ser, neste caso, assumirmos o paradoxo da transgressão do intransgressível, em vez de nos limitarmos a princípios gerais, com os quais nós não podemos deixar de estar de acordo, mas que escamoteiam a realidade existencial de quem não pode mais suportar o intolerávelJoel Lourenço Pinto

27
Mai18

Eutanásia: o liberal no seu labirinto


Eremita

 

Já se produziu tanto pensamento sobre a eutanásia e o tema é tão delicado, tão definidor da nossa ideia de sociedade, que é quase imoral escrever uma linha sobre o assunto sem perder algum tempo a ler o que outros já disseram. Poderia recomendar o livrinho A Morte, que Maria Filomena Mónica escreveu sobre o assunto, com a autoridade de quem não aprecia especialmente a pose e o pensamento da autora, mas que neste caso concorda com a sua posição (favorável à eutanásia). Uma boa lei da eutanásia, que previna as derrapagens que foram entretanto identificadas na Holanda e na Bélgica, que evite decisões tomadas em estado de depressão ou influenciadas por parentes perversos, atenda também às preocupações dos médicos e enfermeiros que praticarão o acto, e se articule com o melhoramento dos cuidados paliativos, parece-me uma medida sensata e inevitável a prazo numa sociedade em que haja verdadeira separação entre o Estado e a Religião e em que a liberdade individual seja um primado. Iria minorar o sofrimento, devolver autonomia ao indivíduo, eliminar uma forma de desigualdade socialcorrigir a hipocrisia vigente de a eutanásia ser já uma realidade nos hospitais portugueses que poucos assumem, com todos os problemas de discricionariedade associados às práticas sem regulação. Evidentemente, o problema não se despacha num parágrafo. Por exemplo, a passagem em que Peter Singer defende a eutanásia com um argumento utilitarista é, para mim, uma péssima defesa e deixa-me com dúvidas sobre a minha própria opinião, pois é difícil conciliar uma oposição à pena de morte invocando o perigo do erro judicial com uma defesa da eutanásia em que não se tenha em consideração a possibilidade do erro médico. Mas este conflito leva-me a procurar outro argumento para recusar a pena de morte e não a abdicar da defesa da eutanásia. Na verdade, manter esta discussão no elevadíssimo plano dos princípios soa-me a desconversa. Após lermos um livro ou três ou quatro artigos sobre o assunto, teremos sido expostos à informação essencial. Quem recusar descer à terra para discutir uma possível lei da eutanásia, que apenas aumentaria a liberdade individual e seria irrelevante para quem recusa tomar uma decisão sobre a sua morte, só o pode fazer por defender valores mais importantes do que a liberdade. A dificuldade da lei parece-me ser apenas de ordem técnica. 

 

A mais recente leva de opiniões que se opõem à eutanásia tem sido marcada por duas tendências: a laicização do discurso de matriz católica e o reaccionarismo dos liberais em contradição com o valor supremo que defendem. A primeira tendência é apenas mais uma evidência da perda de influência da Igreja na nossa sociedade e da necessidade de camuflar a ideologia católica quando se discute e não se quer correr o risco da acusação de que não se respeita a separação entre o Estado e a Igreja. Basta ler as opiniões de muitos políticos da área do CDS/PP, que brotaram nos últimos dias como cogumelos, para identificar este pensamento e, sinceramente, seria um exercício aborrecido. A segunda tendência é muito mais curiosa, surprendente e multifacetada, sendo praticada por liberais que normalmente deveriam ser pela eutanásia mas que, por algum motivo, preferem continuar a bater-se por causas aparentemente mais nobres, como a liberdade de comer uma carcaça com 50% de sal. Que argumentos apresentam eles e como explicar esta gente?

 

Conhecemos duas fórmulas para protelar discussões. Uma é a de que o assunto não é prioritário. A outra é a de que não houve um debate amadurecido na sociedade, a de que o "debate tem mesmo de ser alargado e de ser mais esclarecedor", como escreveu José Manuel Fernandes. Ora bem, quantos Prós e Contras recomendará José Manuel Fernandes? 1? 2? 3? Houve já 4 programas do "maior debate da televisão portuguesa" sobre a eutanásia: em 200520162017 e 2018. Pelo menos desde o filme Mar Adentro (2004) que este tema é discutido com regularidade entre nós em debates televisivos, artigos na imprensa que demoraria horas a listar e livros para o grande público e os especialistas. Quantos livros? Vejamos se esta lista ao alcance de toda a gente chega para tranquilizar José Manuel Fernandes: Autonomia para MorrerO Direito Fundamental à Morte Digna. Uma Visão Constitucional da EutanásiaEutanásia, Ortotanásia e Diretivas Antecipadas de Vontade. O Sentido de ViverA MorteMorte AssistidaDa Eutanásia ao Prolongamento ArtificialEutanásia: sim ou não?O que a Igreja Ensina Sobre... Da Morte Evitada à Morte VividaEutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer: Para um Debate de CidadãosEutanásia: Novas Considerações PenaisA Eutanásia não é a RespostaManifesto em Defesa da Morte LivreEutanásia, Ortotanásia e Distanásia. Aspectos Médicos e JurídicosContra a EutanásiaDefesa da Medicina Contra a Ideologia da EutanásiaO Direito de MorrerO Crime de Homicídio a PedidoEutanásia, Homicídio a Pedido da Vítima e os Problemas de ComparticipaçãoEutanásia? Cuidados PaliativosEutanásia (enfoque espírita),  Morrer com Dignidade: o direito de cada umSobre a Morte e o MorrerEutanásia, Homicídio a Pedido da Vítima e os Problemas de Comparticipação em Direito PenalA Eutanásia DescodificadaSuicídio, Eutanásia e Direito Penal e Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal - Direito Sobre a Vida ou Direito de Viver?; haverá ainda inúmera produção académica nas faculdades de direito, filosofia e medicina, de que este white paper (em português) e esta  tese são apenas dois exemplos, com a particularidade de estarem online, gratuitamente acessíveis a toda a gente que saiba ler e se interesse pelo tema. Também o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida já se pronunciou sobre o tema (a propósito do projecto do PAN), em Março deste ano. Sou sensível ao argumento da falta de legitimidade do actual parlamento para votar a matéria, tendo em conta a sua importância e exclusão dos programas eleitorais, mas será que podemos acabar com a ideia absurda de que não tem havido debate sobre o tema? Houve o debate que as pessoas têm a vontade ou capacidade de ter. É muito provável que os mais de 20 títulos que listei se pudessem sintetizar, no que respeita à informação objectiva, num único volume, porque o tema é de ponderação muito difícil mas não é assim tão complexo. A enorme produção de pensamento sobre este tema diz muito da importância que lhe atribuímos, mas é também refelxo de um outro fenómeno. Ao conceito de obstinação terapêutica, tão recorrente nestas conversas, devemos juntar o de obstinação argumentativa, tão bem exemplificado por José Manuel Fernandes, que eu definiria como uma forma sofisticada de filibuster, a insistência no debate motivada por outras razões que não o desejo de progredir na discussão e nas suas consequências. 

 

Uma outra fórmula, que mistura alguma preguiça intelectual com puro tacticismo, consiste em caricaturar quem defende a eutanásia como um progressista fervoroso que, a par do direito à morte, quer dar cabo do heteropatriarcado, fazer do sexo um género, transformar os pais em meros progenitores e, em particular, a maternidade em simples procriação. É o que pensa a inevitável Helena Matos, a nossa cultural warrior, para quem a nuance é um conceito inatingível, o que a leva a raciocinar segundo as divisões sectárias tradicionais usando o ressentimento e a contradição como combustível. Sem deixar de reparar que Helena Matos deixou de fora deste seu ensaio sobre o "bioprogressismo" a despenalização do aborto (que ela apoiou, talvez por um resquício marxista de luta de classes) e que o "bioprogressismo" está com o homem desde que a técnica, ainda nos tempos pré-históricos, o começou a libertar dos constrangimentos biológicos e não apenas desde que Mariana Mortágua começou a sentar-se no Parlamento, a principal consequência desta forma de pensamento amalgamado é impossibilitar a discussão. É também o que fazem Vitor Cunha, no Blasfémias, com a sua prosa à Chuck Palahniuk para chocar as tias da Foz, e Alberto Gonçalves, o mais subserviente dos cronistas lusitanos, que nunca discute nada e, assim, nunca desilude os fãs. 

 

Naturalmente, o derradeiro argumento, comum a todos os citados, de forma explícita ou implícita, é o seu ódio ao Estado, o seu desprezo pelos socialistas, comunistas e a esquerda em geral, com a sua agenda colectivista e as suas imposições sobre o indivíduo através das instituições da república. Seria deselegante tentar explicar-lhes que o seu ódio ao Estado é um luxo que o Estado lhes permite, não apenas no sentido redutor da liberdade de expressão, mas no sentido mais amplo e profundo - e para eles insuportável - da possibilidade da sua existência. Numa sociedade pós-apocalipse, desmantelada e sem recursos, Fernandes, Matos, Cunha e Gonçalves não durariam um mês, pois seriam mortos por indivíduos fisicamente mais fortes do que eles e consumidos na forma de bife tártaro para poupar no gás e gasóleo - se me permitem esta alusão a Mad Max. Assim, é o Estado que lhes construiu e mantém o recreio onde eles brincam aos liberais com os outros liberais inimigos da regulação da quantidade de sal no pão e da obrigatoridade do uso do cinto de segurança. E radica aqui a contradição de, sendo eles liberais, estarem contra a forma suprema de liberdade que é o direito a decidir quando chegou o momento de morrer e poder contar com ajuda quando não temos autonomia para o fazer, uma concretização inevitável  quando se combina o destilado da cultura judaico-cristã que dá centralidade ao indivíduo com a separação definitiva entre Estado e Igreja. Os nossos liberais preferem - não têm alternativa, na verdade -  fazer passar o direito à eutanásia por um desejo de alguma marcha inexorável do progresso de mérito duvidoso (a agenda pós-modernista, anticlerical, etc.), porque neste caso concreto a dependência do Estado é demasiado óbvia e incontornável para que eles sejam capazes de defender este direito sem entrar em contradição com o seu liberalismo primitivo baseado no ressentimento e aparente desprezo pelo Estado. Conclui-se assim que os nossos liberais estão mais interessados em praticar um liberalismo que consiste numa recusa ritualizada (leia-se: falsa e infantil) do Estado do que em defender a liberdade. Não deixa de ser esclarecedor. 

 

 

26
Mai18

Escolher Woody Allen


Eremita

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Meanwhile, though, my father continues to face wave after wave of unfair and unrelenting attacks from my mother and her surrogates, questioning why he has been “given a pass” all these years. But Woody was not given a pass. Quite the opposite. Mia’s accusation was fully investigated by two separate agencies and charges were never brought. Mia reached the end of the legal runway after it was determined that the abuse never occurred. But trial by media thrives on the lack of long-term memory and Twitter requires neither knowledge nor restraint. Moses Farrow (filho adoptivo de Mia Farrow e Woody Allen)

 

Segundo uma escola de pensamento lusitana, mesmo tendo este caso já sido apreciado pelas autoridades, não podemos tomar partido por Woody Allen ou Mia Farrow, pois existem testemunhos contraditórios e só os envolvidos terão certezas. Resta-nos apenas escutar os intervenientes nesta disputa familiar em que Mia Farrow e dois dos seus filhos, incluindo Dylan Farrow (a vítima), acusam Allen de ter abusado sexualmente da filha adoptiva de 7 anos, o que Allen e Moses negam. Esta espécie de suspensão judicial da nossa opinião teria por objectivo evitar dar eco à calúnia, mas o seu efeito é contraproducente, porque ao nos impedir de usar o bom senso, a verosimilhança e a noção de probabilidade para organizar a realidade, cria as condições perfeitas para que os caluniadores vençam. O movimento MeToo# não trouxe dados novos que esclareçam se Allen fez aquilo de que é acusado, mas reforçou as certezas de quem dele desconfia. Naturalmente, os formalistas condenam também esta precipitação, mas o seu pudor condena-os à irrelevância pois ninguém os ouve.

 

Por vezes é preciso tomar partido mesmo quando não há certezas. Perante aquilo que é público, creio que o mais provável é Mia Farrow e Dylan Farrow estarem a mentir, por muito que esta opinião vá contra o ar do tempo. Quem quiser debater o problema deve começar por ler o texto de Moses Farrow. 

 

23
Mai18

Pedro Siza Vieira: coisas simples


Vasco M. Barreto

 

 

Gostei da explicação de Pedro Siza Vieira. A oposição bem pode explorar o caso como o guarda-redes que se faz à fotografia para agarrar uma bola lenta e o Ministério Público justificar as suas acções com o formalismo, mas qualquer pessoa sensata percebe que se tratou de um lapso inocente. Porém, sobram quantas pessoas sensatas quando se trata de reflectir sobre polémicas em áreas altamente sectarizadas como a política e o futebol?

 

Sou pela inconsequência dos lapsos inocentes, tal como Miguel Esteves Cardoso nada tem contra os erros de ortografia absolutamente sinceros. Naturalmente, as explicações sinceras e simples ficam a ecoar - they echoe in eternity, se me permitem parafrasear Maximus Decimus Meridius - nas antecâmaras esculpidas pelos cultores das explicações inverosímeis e dos silêncios insustentáveis, mas não quero estar sempre a voltar ao mesmo assunto. 

 

 

23
Mai18

Roth por Bruno Vieira Amaral


Eremita

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Roth em 2018 (NYT)

A questão da misoginia é aparentemente mais complexa. Em certos livros (O Animal MoribundoA HumilhaçãoA Mancha HumanaTeatro de Sabbath ou O Fantasma Sai de Cena) são recorrentes as fantasias sexuais que envolvem um velho e mulheres mais novas e como o ponto de vista é o do homem a acusação de misoginia tornou-se quase obrigatória. É como se os narradores fossem frequentemente possuídos pelo espírito de Fiódor Pávlovitch Karamázov, o pai Karamáv:

“Um sensualista depravado. Um velho libertino solitário. Um velho com as suas raparigas novas. Um grande palhaço que instala um harém de mulheres dissolutas na sua casa.”

Estas palavras encontram-se em O Animal Moribundo [2001]. É assim que David Kepesh, narrador e protagonista do romance, e que apareceu pela primeira vez no gogoliano The Breast [1972], descreve o personagem de Dostoiévski e, de certo modo, se descreve a si mesmo. Aos sessenta anos, Kepesh é uma sumidade cultural que há muitos anos optou levar uma vida licenciosa em que o prazer é o fim último. A relação com Consuela Castillo, uma jovem de 24 anos de origem cubana, abala os fundamentos da sua vida de sátiro. Roth teria de ser muito ingénuo para não antecipar eventuais leituras auto-biográficas. Afinal, como o próprio reconheceu, a sua vida tinha sido isso.

Acontece que a insistência em fantasias sexuais senis, bem como a relevância do sexo na sua obra, estão tingidas por cores outonais, assombradas pela velhice e pela proximidade da morte, de um modo mais melancólico em livros como Indignação e A Humilhação, e de modo mais abrasivo em Teatro de Sabbath e O Animal Moribundo, livros cuja eloquência raivosa, segundo Coetzee, é “deflagrada pela brutal resistência do mundo à vontade humana ou pela perspetiva de aproximação da extinção.” Bruno Vieira Amaral, Observador

 

Tenho muitas dúvidas quanto ao valor do paralelo entre Fiódor e os narradores do Roth tardio. Não vejo nos bonecos do americano a paranóia, instabilidade e impulsividade do russo e todos devemos ter presente que a atracção sexual é um grande homogenizador, isto é, quando vistos exclusivamente por esse prisma, até homens - e mulheres, claro, e mulheres - com personalidades distintas podem parecer-se. O que sempre me pareceu algo deprimente, mas também uma chave para se perceber o sucesso deste Roth tardio, é a previsibilidade do universo sexual do homem que envelhece, a constante atracção dos seus velhos pelas mulheres jovens e - como se não bastasse - pelas mulheres jovens de sensualidade estereotipada, da Consuela de origem cubana (a latina boazana) à modelo dinamarquesa de Everyman (a escandinava boazona). Deposito no envelhecimento de Michel Houellebecq alguma esperança, a expectativa algo louca de ver a "misoginia" do francês sublimada por uma criatividade mais disruptiva do que a que gera o universo das fantasias sexuais de Roth, tão calibrado para o gosto da burguesia. Será Houellebecq - o que seria surpreendente, mas vale a pena viver sem esperanças infundadas? - a escrever sobre a atracção sexual pelos velhos, não como parafilia, mas uma espécie de revelação que escapou ao convencional Philip Roth?

 

Quanto à eterna questão do grau de dissimulação de Roth na voz dos seus narradores, time-out, por favor, ou, se preferirem, alto e pára o baile. A ficção foi a forma que encontrámos de partilhar os nossos pensamentos sem nos implicarmos excessivamente e tudo o resto, do estlilo ao enredo, é supérfulo. Mas não será isto evidente? Para quê recomeçar sempre este debate como se nada tivesse já sido apurado desde a invenção da escrita cuneiforme, para não recuarmos aos primeiros relatos de transmissão exclusivamente oral? Perguntar a um escritor se a sua escrita é autobiográfica é apenas uma convenção para começar uma conversa, tão irrelevante enquanto busca de conhecimento como lançar um desabafo sobre a humidade atmosférica, a pluviosidade, a temperatura do ar e até a altura da ondulação de noroeste na esperança de que alguém pegue na deixa e quebre um silêncio pesado. Para mim, Roth foi sobretudo um exímio soliloquista - penso em certas páginas de The Professor of Desire. E é isto. Enfim, vão ler, vão ler, porque me parece que a crítica literária no Observador nada fica a dever à imprensa de referência e isto não é fácil de admitir para um homem de esquerda, mas somos por Ourique, pelos valores do Iluminismo e também pela meritocracia. 

 

 

 

 

23
Mai18

Preemptive strike


Eremita

Este Vasco parece ter feito do Observador o seu blog. Fica já o novo link para destrunfar o moço, antes que nos deixe uma citação na sua horrível lábia entre o acintoso e o tecnocrático. Qualquer dia põe aqui um programa de governo e o Fausto comete um crime. Alguém precisa de garantir o futuro político do Fausto e o niilismo ouriquense; como Nuno Salvação Barreto não avança, coube-me a mim assegurar o que se espera de nós. Já tenho quase tantas saudades do velho Ouriquense como de ver no mar um barco de vela escura. Também são sensíveis à beleza das velas escuras? A planície desperta em nós apetites estranhos.

 

 

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