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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

27
Abr18

"Então por que é que a exibição daqueles vídeos é errada?"


Eremita

De repente, eis um juiz que pensa de forma escorreita, escreve sem manias, não faz analogias cavernícolas, não cita o Novo Testamento, não invoca a lei de Talião:

Em primeiro lugar, é errada porque os valores que estão do outro lado da liberdade de informar não são menos relevantes. Para além da garantia dos direitos fundamentais dos arguidos à dignidade e à presunção de inocência, está em causa, também, a boa administração da Justiça, que sai prejudicada quanto há pressões externas ao processo a condicionar a isenção e independência do julgamento.

Em segundo lugar, é errada porque a encenação audiovisual feita à volta de interrogatórios de arguidos e testemunhas em posição de fragilidade distorce a percepção da opinião pública sobre o valor probatório das suas declarações e confunde no mesmo plano a “verdade jornalística” e a “verdade judicial”. Os juízes não analisam as provas pela televisão, com locução e efeitos especiais de imagem e som, inseridas em narrativas sincopadas dos factos. As regras em tribunal são outras. Desde logo, não se sabe se aqueles interrogatórios podem vir a ser usados como prova em julgamento. Depois, o apuramento dos factos não se faz com pedaços de prova. Faz-se com base numa ponderação global e conjugada, sujeita a um contraditório pleno entre a acusação e a defesa.

A exibição dos vídeos é errada, ainda, porque fragiliza o princípio essencial do Estado de direito democrático de que a Lei é igual para todos. Se exigimos – e bem – que todas as pessoas suspeitas de crimes sejam investigadas, independentemente da sua notoriedade pública ou dos cargos que ocupam ou ocuparam, temos de garantir, em contrapartida, que os direitos fundamentais dessas pessoas são respeitados, como os de quaisquer outras.

Por fim, é errada porque permite a construção de mil teorias especulativas sobre o que aconteceu.

Uns dirão que a prova da acusação é fraca e que por isso a divulgação dos vídeos interessa às autoridades judiciárias para influenciar o julgamento “por fora”. Outros dirão que a prova é forte e que a exibição dos vídeos serve os propósitos de quem possa querer apostar na vitimização dos arguidos ou na politização do processo. Ou então, dirão outros ainda, foram os jornalistas assistentes no processo que, abusando dessa qualidade, tiveram acesso legítimo às gravações e resolveram divulgá-las. Não sabemos, mas todas as possibilidades são más.

O que foi mostrado nas televisões é totalmente irrelevante para a prova da culpa ou da inocência de quem quer que seja. Se alguém tiver de ser condenado ou absolvido, há-de ser em tribunal, por juízes imparciais, de acordo com as regras do processo justo e equitativo. Tudo o que possa sugerir o contrário, que se desenrolam em paralelo um julgamento no tribunal e outro nas televisões, choca o bom senso jurídico e social. E por isso não pode estar certo. Manuel Soares, Público

 

A estes três argumentos juntaria um quarto: o "pudor republicano" de não mostrar imagens que, de forma gratuita, diminuem aos olhos de todos o cargo de Primeiro-Ministro (ainda que Sócrates fosse ex-PM na altura dos interrogatórios). 

 

 

26
Abr18

Ciência e Ética (cont.)


Eremita

A discussão continua: 

 

At a time in America when white supremacists openly march in cities, perhaps it’s inevitable that any writing invoking notions of genetic variation is going to stoke fiery political debate. But for all the turmoil surrounding Reich’s op-ed, the actual science in it is remarkably uncontroversial. Reich describes race’s complex relationship to ancestry in a way that geneticists—myself included—widely agree upon. Where the op-ed gets into trouble speaks to a broader danger in genetics, one that makes the field particularly susceptible to being exploited for political and pseudoscientific ends: poor communication.

Race is a concept defined by society, not by genes. It’s true that people around the world differ genetically due to their ancestry, and that people’s racial identity may be statistically correlated with their ancestry, albeit unreliably. But “race” does not mean “ancestry,” and it’s a loaded term for scientific outreach: Biological races are not a current scientific concept and often reinforce historical biases. Ian Holmes, The Atlantic

25
Abr18

Um argumento a favor de Sócrates


Eremita

Se a defesa de Sócrates vai cobrar 750 000* euros, já deve ter este artigo na sua base de dados, mas aqui fica o resumo:

 

Mental accounting posits that people track their expenditures using cognitive categories or “mental accounts.” The authors propose that this cognitive process can be complemented by an approach that examines how feelings about a sum of money, or the money's “affective tag,” influence its consumption. When people receive money under negative circumstances, this tag can include a negative affect component, which people aim to reduce by engaging in strategic consumption. The authors investigate two such strategies, laundering and hedonic avoidance, and demonstrate their effect on consumption of windfalls. The authors find that people avoid spending their negatively tagged money on hedonic expenditures and prefer to make utilitarian or virtuous expenditures to reduce, or “launder,” their negative feelings about the windfall. The authors call this tagging process and strategic consumption “emotional accounting.”

Tendo em conta a natureza profundamente hedonista dos gastos de Sócrates (excluindo as ajudas que deu a algumas pessoas), eis um trunfo para a defesa. Sócrates terá sido tão egoísta que o dinheiro não podia estar manchado pelo crime, pois até os malandros têm escrúpulos ao gastar o que roubam. Deste argumento nem o Valupi se tinha ainda lembrado, creio. Nem o Valupi, nem as televisões, que continuam a mungir a teta sem a menor criatividade. Sara Antunes de Oliveira, aponta aí: se já vale tudo em nome do "interesse público", isto é, mostrar imagens sem informação adicional, mas que permitem ao telespectador avaliar a "voz e postura corporal do arguidos", ao menos que uses o caso Sócrates para educar o povo sobre o valor emocional do dinheiro. Aproveitavas ainda para fazer algum serviço público pela literacia científica dos portugueses, já que são tantos e tão fascinantes os estudos de economia e psicologia sobre o tema. Dava até para uma série com várias temporadas e ficaria ao preço da uva mijona, mais barata que as tertúlias sobre bola, pois os académicos não cobram nada para aparecer na TV, e sem qualquer perigo de confusão com o que se faz na CMtv, pois todo o painel seria composto por doutorados, obviamente - a SIC só faz jornalismo de referência. Mas podemos pensar ainda mais alto: durante o programa, porias online e em tempo real, para os telespectadores participarem, aqueles jogos sobre teoria da tomada de decisão ricos em dilemas morais e como onde há um jogo há sempre um patrocinador, o pitch junto de Ricardo Costa (que aqui se defende) e de Pinto Balsemão seria canja. 

25
Abr18

Fausto.jpg

Conterrâneos de Ourique, irmãos de Ourique na diáspora, amigos de Ourique,*

 

A anunciada chegada da água do Alqueva em 2021 à nossa ressequida barragem do Monte da Rocha fez correr nas nossas veias a turbulência da esperança. Nos mentideiros da vila já se sussurram grandes negociatas à custa da especulação, sem respeito pela nossa identidade, que é a da cultura do sequeiro. Desenganem-se! Não será Fausto Gomes a comprometer o futuro da vila. Conservador, talvez; ludista e velho do Restelo, nunca! Apenas me bato por uma visão de futuro que honre a tradição. A Câmara Municipal de Ourique já se mostrou contente com as notícias, como um desgraçado que sorri quando um vigarista lhe ilumina o rosto com o reflexo de ouro que depressa volta a tapar. Companheiros, a única postura que defende Ourique é a da desconfiança. Quantos anúncios sobre infra-estruturas se revelam, afinal, ejaculações precoces que não chegaram a ventre fecundo? Desconfiemos, Ouriquenses, desconfiemos. Mas cobremos já aos que nos deixaram a sonhar esclarecimentos sobre o que está em curso. Espanha quer a nossa água, lembrando que actualmente não a gastamos. Vamos ceder? Ou será que, como devia ser, os planos para 2021 são já parte do argumentário luso? Se não há nada mais difícil do que reverter benesses entretanto acordadas, quem garante que os nossos interesses estão já a ser acautelados? Será que ganharemos um aqueduto de onde a água chegará, sim, mas gota a gota? Se não for agora que se ouve Ourique, será quando? Marquemos a agenda política. Ou estaremos satisfeitos com a ocasional reportagem sobre Ourique enquanto "capital do porco preto"? Francamente, desprezo quem se resigna com este epíteto inventado por algum publicitário de Lisboa, pois Ourique deveria projectar-se enquanto geografia de importância única na nossa História e no nosso imaginário! Vamos mesmo trocar a glória de herdeiros e guardiões de um momento fundador por mais uns patacos no preço do quilo de presunto e nos enchidos? Que a promessa da chegada de água nos acorde para a luta. É pela água que ainda se mata e morre no interior, companheiros. Honremos também essa tradição.. enfim, esses mortos e, para que não haja dúvidas, enterremos a foice e o martelo, erguendo de novo as enxadas! Disse. 

* Nota do eremita: Fausto Gomes é um colaborador do Ouriquense com carta branca. Tende a escrever sobre política local. A acreditar num retrato-robô de mérito duvidoso, o homem que mais de 2000 pessoas terão visto exclusivamente em sonhos e alguns interpretam com um arquétipo junguiano parece ser um sósia de Fausto, uma coincidência que, segundo ele, vai "alavancar" a sua carreira política. Escreve contra Lisboa, mas essencialmente por oportunismo, pois suspeito que sonha ser deputado. Traumatizado pela reforma agrária, revela uma aversão primária ao comunismo e defende uma "terceira via" para o interior, que tem dificuldade em explicar, embora pareça ser uma versão hiperbólica de  um plano de Hernâni Lopes que ficou conhecido pelo nome "Grande Ogiva do Sul", cuja ressonância messiânica encanta Fausto. Deixa-se empolgar pela sua própria retórica e diz que só os hipócritas corrigem as ideias que surgem no primeiro rascunho. Chega a ser mais exclamativo do que António Barreto e tem tiques de tribuno, mesmo na escrita que não se destina a ser lida em voz alta. 

 

 

24
Abr18

Em cada esquina um amigo, em cada rosto um polígrafo


Eremita

incal-volume-1-jodorowsky-moebius-frete-r-1200-D_N

Incal Volume 1 Jodorowsky Moebius

 

O trabalho da SIC teve, pois, o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção. João Miguel Tavares, Público

 

Não há em Portugal expressão mais violentada do que "o interesse público", com as possíveis excepções que são o "interesse superior da criança" (ou a versão mais cagona: "superior interesse da criança") e o "grande público". Além da ficção distópica, há literatura sobre a relevância da postural corporal dos arguidos para a qualidade de uma condenação judicial? Ah, "ética republicana" também surge com frequênca, mesmo quando o problema é de falta de "pudor republicano". 

23
Abr18

Freud e a ornitologia


Eremita

Sigmund Freud once produced a posthumous diagnosis of Leonardo on the basis of a dream. In his notes, the artist describes dreaming while in his cradle: a great bird swooped down and ‘struck me many times with its tail within my lips’. Freud argued that this was a fantasy about fellatio and proposed that the species — a vulture [abutre] — meant that Leonardo’s homosexuality was connected with his love for his mother, the vulture being an ancient Egyptian symbol for maternity. Unfortunately, the German text Freud used mistranslated the bird: in fact, Leonardo had dreamt of a kite [milhafre]. Spectator, USA

23
Abr18

A primeira adversativa do resto da tua vida


Eremita

A carreira extraordinária de Cristiano Ronaldo, conjugada com a informatização dos dados e uma pressão constante para produzir "conteúdo" informativo, deu origem a uma febre de recordes sem precedentes. É raro o mês em que Ronaldo não bata um recorde e o povo vibra com os feitos do seu herói, mas sabemos que somos cúmplices de uma fraude colectiva. Aos abundantes títulos atribuídos pelas instituições reconhecidas,  que são mérito inegável de Ronaldo, juntam-se recordes anunciados no Twitter que são sobretudo mérito de quem deles se lembrou. A doutrina divide-se entre os que dizem que estes recordes são descobertas, estando já nas tabelas estatísticas como um fóssil por descobrir existe debaixo da terra, e aqueles que os entendem como invenções, não no sentido pejorativo de "coisas inexistentes" mas de criações que nascem no momento em que são verbalizadas. Pouco importa, porque o que diverte e impressiona é mesmo o absurdo em crescendo a que vamos assistindo. Um dia alguém anunciará que Ronaldo acaba de bater o recorde de golos de cabeça marcados a guarda-redes de olhos verdes, de hat-tricks ao terceiro domingo de cada mês, do número de nacionalidades/ confissões religiosas / orientações sexuais / identidades de género reveladas a posteriori envolvidas na construção de uma jogada que o recordista rematou em golo, da mais longa série de golos alternadamente marcados com os pés esquerdo e direito... Os limites são a imaginação e o sentido do ridículo, mas quem sou eu para criticar estes génios do recorde, se há mais de dois anos não faço oura coisa senão inventar ou descobrir efemérides que vão marcando o crescimento das minhas meninas?

 

Há muitos anos, lembrei-me de uma efeméride pessoal que ainda hoje me parece aceitável: o momento em que atingimos a idade que um dos nossos pais tinha na memória mais antiga que dele guardamos. Pensado é mais simples do que lido e creio que o efeito ultrapassa o da mera coincidência de idades, pois a data pode simbolizar o momento em que se toma consciência de que o progenitor sempre foi, antes de mais, um indivíduo como nós, e que, na verdade, encandeados pela imagem avassaladora do pai ou da mãe, conhecemos mal. Mas inventar boas efemérides segundo a perspectiva do filho é trivial, porque, não havendo qualquer pressão, o ócio pode operar a sua mágica criativa. O problema só surge quando se troca de papel, pois a parentalidade cria uma pressão permanente para criarmos "conteúdos" simbólicos. Nos primeiros tempos, testemunhar qualquer coisa feita pela primeira vez por um bebé, dos momentos mais cómicos, como o primeiro manguito não intencional ou uma bufa sonora e prolongada, aos mais emocionantes, como a primeira melodia, as imitações óbvias do nosso comportamento, um gesto de ternura, a interacção com um animal ou um acto de resistência revelador de uma personalidade, é logo pretexto para uma efeméride que urge documentar e comunicar. Esta pulsão não vem sequer com o valor redentor da originalidade, que os génios dos recordes de Ronado podem reclamar, pois fazemos o que os nossos pais e avós fizeram, só que de forma mais exagerada, porque está em voga a parentalidade intensiva e a tecnologia é mais potente. Por isso, a série Tribo vale mais pelos rascunhos que não publico e acabo por apagar do que pelos textos que escapam à minha censura. Este pudor tem crescido e ainda bem, sobretudo desde que as miúdas começaram a falar, mas a pressão não deixa de aumentar e só regras claras e um compromisso público me permitirão resistir a divulgar aqui todas as conquistas de vocabulário, gramaticais e de retórica emergente com que as gémeas nos vão alegrando os dias. Estabeleça-se então um número: não mais de três referências por ano. Pois bem, gasto já uma: não tive a sorte de a ouvir, mas contou-me a L. que a M., na semana passada, disse o primeiro "mas" enquanto conjunção adversativa. Apesar de o primeiro "não" marcar o nascimento de uma personalidade, não deixa de ser coisa para gozar com sensibilidade de consumidor de blockbuster, como o comprova a cena de um dos filmes da saga Planetas dos Macacos, em que um  "Nooooo!" gritado assinala a antropomorfização completa do símio revolucionário; já a subtileza do primeiro "mas" pede uma sensibilidade de fã de "cinema de autor", e, enquanto operação cognitiva, contrapor é bem mais sofisticado do que negar.

 

Que uses a adversativa com parcimónia, propriedade e coragem, minha filha, sem que caias em prostração. Que um dia percebas como é difícil, ainda que por vezes imprescindível, encadear duas adversativas, porém sem comprometer a estética, a clareza e a ética, mas que por enquanto gozes o teu primeiro e singular "mas".

 

 

20
Abr18

Ciência e ética


Eremita

[com adenda no dia seguinte  e alteração do título original]

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Martrix-71.jpg

Matrizes progressivas de Raven (comuns em testes de Q.I.)

1. A genética validou ou varreu para sempre a noção de raça (aplicada aos seres humanos)?

2. Devemos impor restrições à busca do conhecimento, nomeadamente se esse conhecimento tiver implicações políticas perigosas? 

Estou a preparar um texto sobre este assunto (para publicação nuna revista) e gostaria de conhecer a opinião dos leitores, pois sinto-me influenciado sobretudo pelas opiniões que chegam dos EUA. 

 

Adenda: agradeço já a quem aceitou este desafio e aproveito para me explicar melhor, pois as perguntas prestam-se a equívocos e podem até gerar alguma desconfiança, como se isto fosse uma armadilha montada para tramar alguém. Nada disso. Se alguém se tramar, serei eu, posso assegurar-vos. A ideia não é discutir a linguagem politicamente correcta, nomeadamente saber se devemos ou não continuar a usar - ou ressuscitar - o termo "raça". A discussão sobre a linguagem e a liberdade de expressão é hoje tão recorrente que se tornou aborrecida e caricatural, pouco dada a subtilezas; Ricardo Araújo Pereira e os discípulos de Boaventura Sousa Santos acantonados no CES de Coimbra (do outro) dão conta do assunto. O que me interessa mesmo é saber se a busca do conhecimento deve ser absolutamente livre, isto é, não condicionada pelas eventuais consequências negativas que resultem desse conhecimento, como se a ciência em si fosse sempre neutra (desde que o próprio acto de conhecer não faça vítimas, bem entendido), mesmo que depois apareça alguém que a instrumentalize para praticar o mal, e também se a latitude interpretativa, tendo em conta a natureza intrinsecamente provisória dos factos apurados pelas ciências empíricas, neutraliza as "verdades inconvenientes", criando um vale-tudo relativista que faz com que o posicionamento público do cientista sobre o assunto passe de obrigação moral a capricho. Tal como a discussão em torno do policiamento da linguagem, esta discussão não é nova (prova-o a carreira de um homem fascinante, J. Robert Openheimer, o pai da bomba atómica), mas ao contrário daquela não costuma "incendiar as redes sociais". Apesar de, nos meus anos de cientista, nunca ter trabalhado em temas polémicos (as imunoglobulinas não polarizam a sociedade), sigo este debate há décadas; se agora resolvi voltar a escrever sobre o assunto, foi para me obrigar a definir uma posição e fazer um teste de stress à minha posição prévia, pois concordar sempre com o último autor que leio é um sinal embaraçoso de que não tenho uma posição amadurecida. A discussão mais paradigmática é a da contribuição da genética para o Q.I. dos diferentes grupos humanos (as etnias ou o que lhes quiserem chamar), que sem periodicidade óbvia reemerge das profundezas do labor académico para agitar as águas durante uns dias e depois regressar ao seu estado de latente. Foi assim na reacção ao The Mismeasure of Man (1981), livro de Stephen Jay Gould contra a ciência do determinismo biológico, depois da publicação de The Bell Curve (1994), de Richard J. Hernstein e Charles* Murray, que aborda a correlação entre o Q.I e o estatuto socioeconómico, mas que criou polémica sobretudo por defender que o Q.I médio dos afro-americanos (dos EUA) fica cerca de um desvio padrão aquém do Q.I. médio dos brancos (norte-americanos) e a diferença tem uma forte componente hereditária, depois de afirmações do prémio Nobel James Watson sobre a inteligência dos negros (2007), que até mereceu uma resposta no Público de um grupo de cientistas portugueses, etc. O mais recente episódio tem origem no episódio intitulado "Forbidden Knowledge", do podcast de Sam Harris (22.4.2017), um intelectual público profissional muito estimável, que se lembrou de entrevistar o "the one and only" Charles Murray como forma de protestar contra o ostracismo de que um dos autores do The Bell Curve ainda será alvo, mais de 20 anos depois da publicação do livro. A escalada de reacções a esse podcast  deu origem a este artigo na Vox a criticar Murray e Harris, a que se seguiu um podcast entre Harris e Ezra Klein, o jornalista da Vox, protagonistas de uma conversa tão longa e desesperante, sem acorde final a resolver a desarmonia criada, que a recomendo apenas aos aficionados com muito tempo livre e capazes de multitasking. É sobre o "conhecimento proibido" que pretendo escrever, tendo por base a genética da inteligência. Tenho uma resposta convicta e até militante para a primeira pergunta que abre o texto, mas hesito e adio uma tomada de posição quanto à segunda. É esta tensão que gostaria de ser capaz de resolver, mesmo que implique, entre outros desconfortos antecipados, contestar em público o que antigos colegas e um grande amigo já escreveram sobre o tema.

19
Abr18

Socratologia da vaidade


Eremita

Quem diz que o xadrez jogado ao mais alto nível é o cúmulo do desperdício de inteligência, não lê o Valupi. O que Valupi escreveu depois da transmissão das imagens do interrogatório em que Sócrates solta toda a sua ferocidade na cara do Ministério Público é um texto de grande inteligência (digo-o sem ironia ou segundas intenções). O momento foi oportuno. Se mesmo quem desconfia de Sócrates (como eu) se impressionou com a sua combatividade e coragem under pressure, só podemos  tolerar o êxtase com que o melhor dos socráticos nos explica o desempenho do engenheiro. Alguma noção do ridículo fez com que Valupi esclarecesse que, apesar de Sócrates se comportar naquelas imagens como se não tivese "nada a esconder, nada de que se envergonhar", "também sabemos que é possível enganar os polígrafos". Mas o entusiasmo de Valupi acaba por o trair, pois apesar das ressalvas o tom do seu texto é triunfante, como se Sócrates tivesse arrasado a acusação com factos e argumentos irrebatíveis, quando o que vimos foi essencialmente um homem indignado. Valupi viu, ouviu e alucinou algo mais: " A sua exaltação [a de Sócrates], que não é falha de carácter mas traço de personalidade, também vai aí buscar ímpeto e gana. O que vimos nos fragmentos das entrevistas confirma o que saía no esgoto a céu aberto logo no dia a seguir aos interrogatórios. O MP nada mais tinha na mão do que os envios de dinheiro para Sócrates por Carlos Santos Silva. Estes são factos". Esta passagem extraordinária ignora outros interrogatórios já conhecidos, em que Sócrates se sente encurralado e avança explicações absurdas para as transacções com dinheiro vivo de que beneficiou (por alegadamente desconfiar dos bancos), ignora que Carlos Santos Silva confirmou o código verbal usado pelos amigos para acordar transferências de dinheiro, ignora um notável "traço de personalidade", descrito por Sócrates como vaidade (que o fez comprar resmas dos seus próprios livros para inflaccionar as vendas e lhe aumentar o prestígio social) mas que é sobretudo o Q.E.D. da tese de que Sócrates é um aldrabão notável. Ignora muito, muito mais, nomeadamente a grande narrativa do MP, mas o que refiro foi já confirmado pelos arguidos e estes factos são motivo suficiente para qualquer indivíduo desconfiar de Sócrates e desejar que o julgamento seja esclarecedor (independentemente do juízo que faça do MP e da Imprensa). Sem surpresa, também a autora de Um Jeito Manso se sentiu inspirada pelo show de Sócrates e legitimada pelo bizarro julgamento em praça pública montado nos últimos dias pela SIC (de interesse público muito pouco óbvio) para ignorar as evidências. Algures no texto, a autora assegura-nos que os outros dizem que não é "burra" e que tem formação académica e profissional adequada para exercícios que envolvam "lógica, a análise científica de hipóteses, a construção de modelos". A passagem é suculenta por confirmar o narcisismo fascinante de quem a escreveu, mas é também reveladora de um equívoco. A polarização que Sócrates gera não agrega indivíduos de acordo com as suas capacidades cognitivas, isto é, uns iluminados com a inteligência suficiente para perceber a engrenagem da perseguição política e uns incapazes mentais com sede de punir as elites e facilmente instrumentalizados. A polarização resulta mais da emoção do que da razão. E o impacto da sentença na imagem pública de cada um nós, tendo em conta a forma como nos temos posicionado ao longo dos anos nesta discussão, tem uma relevância avassaladora. Naturalmente, os atingidos devem considerar esta interpretação intrusiva, pois trata-se de um processo de intenções, mas é a única forma que encontro de explicar a amnésia selectiva dos grandes defensores de Sócrates. E é uma conclusão que faz com que Sócrates deixe de ser o único vaidoso, mas continue a ser o único aldrabão. Contas feitas, ganha a humanidade. 

 

PS: Como a autora de Um Jeito Manso, que naturalmente se tem por celebridade dos blogs, julga que a menciono na esperança de que ela me retribua o link e assim eu ganhe "visualizações", convém lembrar duas coisas: 1) a irregularidade com que aqui escrevo diz alguma coisa sobre as exigências da agricultura de subsistência e muito sobre a importância que atribuo às estatísticas do blog (só os narcisos viciados em atenção escrevem todos os dias, pois a ausência de prosa fresca leva a um decréscimo imediato das visualizações que gostam de exibir em contadores e injectar na veia logo pela manhã); 2) a verdadeira estrela mencionada no texto é o Valupi, sendo a autora uma simples personagem secundária. Enfim, apresento-lhe as minhas desculpas por este P.S. só lhe dar mais umas 3 ou 4 visualizações, pois é verdade que um post independente lhe iria render umas 6 ou 8. Por outro lado, como a obsessão pelas visualizações me lembra as conversas da criança e da adolescente que vivem comigo, posso afirmar com alguma certeza que a  autora de Um Jeito Manso sobrestimou a sua idade mental no seu post e, como as mulheres gostam sempre de parecer mais novas do que na realidade são, creio que verá na minha conclusão uma recompensa. 

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