A insistência no “politicamente incorreto” pode, claro, resvalar para o “politicamente abjeto” – esta evidência assusta a maior parte dos gramáticos que policiam a nossa linguagem. Ricardo Araújo Pereira está entre os alvos mais fáceis; nos últimos dias, foi acusado de quase tudo nas chamadas redes sociais, e não me custa acreditar que, em breve, seja acusado de homofóbico, racista, xenófobo – a lista habitual é uma argamassa, nunca se é acusado de uma só coisa e há de acabar como fascista, e assediador sexual. O debate não é sobre a liberdade dos humoristas mas sobre a liberdade em sentido lato (onde eles estão incluídos, porque caminham no fio da navalha). Nem sobre a ameaça à criatividade. Tem a ver com o desejo de silenciar os outros e de substituir a realidade por uma língua infantilizada e hipervigiada, sem pecado nem dúvida. Os filhos dos anos 60 e 70 não admitem contrariedades; quando estas existem, querem “zonas seguras”. Não têm sentido de humor nem lhes interessa o passado (a História). Antigamente, queríamos debater; as novas polícias do pensamento querem exterminar. Francisco José Viegas
Se excluirmos do universo das redes sociais as interacções que tenho aqui com o Alberto, o Caramelo e o Nelson Moura, não frequento nenhuma. Por já lá ter andado, sei que as redes sociais são - para mim, friso - uma perda de tempo e uma fonte latente de conflitos conjugais, pelo que não tenciono voltar. É agora usual ter conhecimento das polémicas que animam as redes sociais através dos colunistas que as comentam dos seus poleiros na imprensa e televisão. Sem excepção, os colunistas desprezam as redes sociais e não se cansam de o afirmar, ficando por esclarecer se é por nostalgia dos tempos em que apenas eles tinham voz ou simples conveniência. A segunda hipótese é a mais interessante. As redes sociais dão imenso jeito quando se trata de avançar a nossa tese de estimação. Embora sejam hoje a manifestação mais pura da voz do povo, o colunista pode desprezá-las, bastando que nunca use a palavra "povo" e insista no termo "redes sociais". As redes sociais são interclassistas e há uma sensação difusa de que lá andamos por capricho e guilty pleasure, pelo que o colunista que as critica pouco arrisca. As redes sociais são também plurais e aparentemente infindáveis, pelo que sempre se encontra alguém a escrever uma qualquer inanidade que nos serve de exemplo para o que queremos argumentar e mesmo sem a encontrar podemos afirmar que existe - digamos - probabilisticamente.
Sob pena de estar enganado por não ter acesso directo às redes sociais, diria que o texto de Francisco José Viegas é algo exagerado e denota uma grande ansiedade em discutir a liberdade de expressão, inventando para isso mártires improváveis e censores grotescos. Parte da explicação para a recorrência dos debates sobre a liberdade de expressão resulta de uma polarização em que os opositores, sem disso se aperceberem, se equivalem no grau de susceptibilidade. O fraco desempenho no espaço público dos argumentos à base de nuances ou gradações também contribui para esta interminável conversa sobre a liberdade de expressão. Por exemplo, se eu afirmar que defendo o direito de publicar cartoons a gozar com o Islão ou o Cristianismo, mas que aprecio a censura social que reprima o uso da palavra "mongolóide" para definir um indivíduo com trissomia 21, será que se percebe que também condeno a proibição de teses negacionistas (sobre o Holocausto) e que defendo uma discussão livre sobre diferenças no Q.I das diferentes raças (e o direito a usar o termo "raça", já agora) ou entre os sexos, mas que não votaria em quem anunciasse que iria financiar estudos sobre a genética da inteligência em seres humanos? Será que a minha posição faz algum sentido? Talvez faça, se tivermos presente a diferença entre censura social e proibição legislada, e que podemos defender que não haja tabus, mas, em simultâneo, querer que o dinheiro público seja usado para o bem comum (não encontro nehuma boa razão para continuar a esmiuçar as diferenças de inteligência entre as raças ou entre os sexos). Ora, é extremamente difícil defender uma posição com nuances num debate sobre a liberdade de expressão sem dar ares de fraco. Pode ser até que me acusem de estar a querer censurar Francisco José Viegas quando insinuo que nada de particularmente grave terá acontecido a Ricardo Araújo Pereira (RAP) nos últimos dias e que, em todo o caso, não devemos levar a sério quem faz de mártir da liberdade expressão um humorista tão consensual como RAP, que pratica um humor para toda a família e não deve ter publicado um único pensamento político ousado na vida, repetindo sempre - se excluirmos o tema em discussão - as causas da chamada esquerda caviar. RAP já praticava um humor clean, bem comportado, na época em que pouco teria a perder, pelo que quem fizer dele um mártir não se apercebe do ridículo ou então caiu numa armadilha montada pelo próprio RAP, se o humorista, contrariando a sua natureza com o propósito único de demonstrar a sua tese, se revelar polémico, o que creio que ainda não aconteceu e, dada a posição que RAP entretanto conquistou, provavelmente nunca acontecerá. Até em Portugal encontramos humoristas com currículo bem superior ao de RAP para a papel de mártir da liberdade de expressão. Basta pensar em João Quadros ou Rui Sinel de Cordes, que escrevem piadas de "mau gosto" sobre doenças e mortes de pessoas concretas queridas, em vez do humor conceptual, à Monty Python, dos sketches de RAP e das suas crónicas em que os visados são sempre os Relvas da vida, sobre quem dizer mal até cai bem. Enfim, a questão essencial não é saber que humorista deve ser o nosso mártir da liberdade de expressão (em rigor, continua a ser Herman José, apesar da explosão do humorismo nas últimas décadas, o que não deixa de ser curioso), mas se não deveríamos estar mais atentos a casos menos mediáticos de silenciamentos por medo de perder o emprego ou outra qualquer pressão à moda antiga, que não se exerça nas redes sociais. Afinal, se os paladinos da liberdade de expressão estão sempre a lembrar que "words are not actions" (será mesmo assim?), é algo contraditório que se queixem tanto das redes sociais (no fundo, "falam, falam, falam, falam, falam, falam, mas eu não os vejo a fazer nada"), embora seja justo reconhecer que em contradições os paladinos são consistentes, pois fazer de mártir da liberdade de expressão um dos homens mais mediáticos deste país, que também "fala, fala, fala, fala, fala, fala...", não está ao alcance de todos.