O último Quo vadis?, a série em que discuto os caminhos por onde o Ouriquense deve seguir, foi escrito há mais de 6 meses. O Ouriquense já quase dispensa uma hiperconsciência e só um motivo de força maior me leva escrever um novo texto para esta série. Eis a motivação: descobri que a série Canhotismo, inicialmente pensada como um texto de ficção cujo principal objectivo era fazer divulgação científica, é, na verdade, sobre outra coisa. Já tinha reparado que recorrer à ficção para fazer divulgação científica diz algo da desconfiança com que encaro este género, menos nos seus propósitos do que nas suas limitações, o que me parece evidente quando se lê um qualquer texto de divulgação sobre física quântica, que apenas fornece uma ilusão de conhecimento, pois estica metáforas e analogias além do permitido, deformando irremediavelmente a realidade. Mas, nos últimos dias, o fluxo noticioso mostrou-me que a série Canhotismo é sobre algo completamente diferente. Não me lembro de um período tão marcado pela política identitária de uma forma multifacetada como o actual. A causa próxima é a eleição de Trump, obviamente, mas a forma como se manifesta em Portugal não deixa de ser surpreendente. Dizer que a sensibilidade nacional às políticas identitárias está muito polarizada é uma evidência que peca por defeito, pois, a menos que esteja absolutamente comprometido com uma ideologia, é difícil que num indivíduo não convivam sensações contraditórias, isto é, que ele próprio não encarne os pólos da discussão. É por isso que o coming out de uma secretária de Estado, um acto extraordinário e pioneiro entre nós, num segundo instante já nos parece algo anacrónico, como se o entusiasmo do progressista fosse logo coarctado pela rezinguice do reaccionário que com ele partilha o corpo.
Os especialistas dizem-nos que o PSD ensaia o "populismo" em Loures, pondo os ciganos na sua mira. Um articulista com trabalho académico sobre relações raciais escreve que o racismo deixou de existir nas sociedades brancas ocidentais, semanas depois da notícia daquela que será provavelmente a história de racismo policial mais bem documentada de que há memória e ao mesmo tempo que uma discussão acesa sobre a escravatura chega pela primeira vez aos jornais. Outro articulista diz-nos que as conquistas dos homossexuais estão, essencialmente, concretizadas e que é tempo de avançar para uma sociedade pós-LGBT, sem perceber que imita o Obama que defendia uma política pós-racial e hoje diz ter sido ingénuo (ao contrário do articulista, na altura Obama não poderia ter dito outra coisa). Um director de jornais faz um vídeo a explicar que o sexo é definido pelos cromossomas sexuais, com um vigor didáctico e grande sentido de urgência, como se as ideias de Judith Butler já fossem ensinadas na instrução primária. No jornal de direita, o Observador, metade dos artigos de opinião são críticas à política identitária, que está intimamente associada aos conceitos de "politicamente correcto", "policiamento da linguagem" e "liberdade de expressão", sendo notória nesse jornal a predisposição para transformar qualquer reacção ofendida a uma ofensa num acto censório, como se a liberdade de expressão incluísse o direito a ofender, mas não o direito a ripostar (sem intenção de proibir). Do outro lado, a desconfiança é tal que a acusação de xenofobia, racismo ou homofobia sai com rapidez. Para manifestações de solidariedade basta uma catástrofe; para tornar empática uma sociedade diversificada nas etnias, credos e orientação sexual ninguém conhece o segredo.
A série Canhotismo é uma sátira sobre a política identitária, que conta a ascensão (e talvez a queda) de Julião, um canhoto que vai sendo dominado por ideias megalómanas de poder político e julga ter descoberto a fórmula de sucesso para vencer democraticamente numa sociedade fragmentada. Julião não promete mundos e fundos, apenas - mas subliminarmente - universalizar o direito à vitimização. Ele é um virtuoso da exploração do ressentimento, que consegue coligar o grosso das pequenas associações em torno da sua própia associação, Canhotos por Portugal, antes conhecida por Canhotos de Portugal, dando origem à Coligação das Minorias (ColMin), o primeiro partido capaz de competir ombro a ombro com os partidos do Bloco Central e que destrói o Bloco de Esquerda e o Partido Popular (mas não o Partido Comunista), transformando radicalmente a política nacional. Porque até um homem branco, alto e saudável, heterossexual e de classe média tem algo de minoritário, um calcanhar de Aquiles a precisar de uma carícia. Basta procurar e essa foi a descoberta de Julião.