Óculos de ler
Eremita

Não sinto a vista cansada quando leio, mas porque adormeço primeiro. A verdade é que já vou afastando rótulos e outros papéis quando preciso de os ler, reproduzindo a postura que denuncia a falta de vista. Ontem a L. deixou-me sobre a secretária um par de óculos de leitura baratos, como forma de me aliciar a marcar uma consulta no oftalmologista. Os óculos cumprem na perfeição essa função: são eficazes q.b. para me convencerem das vantagens de usar óculos, mas tão banais que não haverá o risco de a eles me acomodar. Na passagem que inaugura o período da vida em que passei a ler com óculos, Lise deixa-se beijar por Aliocha, um dos irmãos Karamásov. Quanto à prosa que encerrou o período das leituras sem óculos, creio que foi uma passagem inicial de Disgrace, de Coetzee, em que se descreve a relação do professor com a prostituta. Os úlitimos pensamentos do dia foram para os grandes polidores de lentes, reais ou apócrifos, como de Antonie Philips van Leeuwenhoek e Baruch Espinoza. Podemos forçar afinidades animados pela megalomania, mas apenas no escuro do quarto.
