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OURIQ

Um diário trasladado

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Um diário trasladado

31
Ago16

Assertividades com pés de barro


Eremita

Considero que esta nova geração de escritores não é assim tão extraordinária. Bárbara Bulhosa

 

Se tomamos por referência este cenário de fundo, quem se salva hoje em dia? Técnica literária e pirotecnia novelística, temos. Repetição do mesmo, não falta. Mas se um autor estiliza o romanesco cai na individuação – em mitologia ameríndia, o ser sai do mundo – e afasta-se da subjectivação do nós, do todos e todas. Este consenso distraído de escrever bem sem dizer nada instalou-se com inércia. Júlio Gomes

Apesar da opinião e ofício coincidentes, poucas semelhanças haverá entre a pragmática Bárbara Bulhosa e o intelectual Júlio Gomes. As entrevistas são preciosas, sobretudo se lidas de enfiada, mas as duas citações valem como provocação e pouco mais. Bárbara Bulhosa foi buscar o inevitável século XIX, como se uma irrepetível coincidência de romancistas criados por geração espontânea tivessem definido aquele tempo, quando o mais provável é ter sido aquele período, sem oferta audiovisual que secundarizasse o romance, a defini-los. Júlio Gomes ainda teorizou um pouco, mas é pouco esclarecedor. A "individuação" é hoje mais frequente? Não será apenas mais notado o seu efeito eventualmente pernicioso, pela pobre biografia colectiva das gerações que escaparam à guerra colonial, perderam depois o 25 de Abril e cresceram no conforto da adesão à CEE, sem abalos de terra (literais ou de outro tipo)? E será mesmo verdade que não existem escritores lusos contemporâneos capazes de esquecer o cotão do seus umbigos e produzir prosa relevante? Já agora, aproveitando o embalo, será assim tão má, a tal "individuação"? Prefiro o escritor fascinado com a sua imagem no espelho àquele ciente da necessidade de abordar a "condição humana".

 

Na entrevista a Bárbara Bulhosa faz-se ainda referência às décadas douradas de 80 e 90, em que havia Lobo Antunes e Saramago. Dois autores bastam para se falar de uma geração de grandes escritores? Ora, se bastam dois também bastará um e, recorrendo a um critério objectivo, Gonçalo M. Tavares é hoje muito mais conhecido internacionalmente do que os nossos Nobel e quase-Nobel quando estes eram quarentões. Corremos mesmo o risco de passar os próximos cinquenta anos sem que apareça um autor ao nível de Agustina, Vergílio Ferreira, Cardoso Pires, Lobo Antunes e Saramago (admitindo que esta curtíssima lista de consagrados faz algum sentido)? Será que, se formos capazes de corrigir a paralaxe geracional que nos leva a valorizar mais as nossas primeiras leituras, esse autor não apareceu já? Não teríamos até dois, três ou mais, caso os jurados dos concursos literários procurassem prestigiar os prémios sem parasitar o prestígio entretanto alcançado por aquele que volta a ser premiado? E afinal, para o leitor, que importa tudo isto, quando a  finitude da vidinha e os seus afazeres impossibilitam a leitura de todos os livros já publicados que lhe despertam interesse? 

 

27
Ago16

Retrato psicomotor aos doze meses


Eremita

[Revisto e aumentado a 29.8.16]

Bolinha tende a olhar para cima e desde os primeiros meses revelou grande empatia por candeeiros de tecto. Alterna o sorriso inocente e generoso com birras de grande potência vocal. Tem apetência pelos espaços amplos, que abarca abrindo os braços, o que, ao observador menos experimentado, parecerá uma expressão corporal de desconcerto. Mostrou-se interessada pela sua imagem no espelho antes da irmã. Aos doze meses revelou um espírito de exploradora indomável, que a faz rastejar da sala até ao hall de entrada e enfiar a cabeça no balde dos brinquedos, protagonizando cenas muito eficazes de humor físico involuntário. Gosta de imitar com a boca o barulho de um martelo pneumático, expelindo uma quantidade abundante de perdigotos e, por vezes, também de sopa. Há opiniões divergentes quanto à primeira palavra que terá dito, mas "caca" [cáca] é uma hipótese que, mais por desejo de rigor do que deslumbramento galhofeiro, não se deve descartar. Bebe menos água do que a irmã e parece fazer muito mais chichi do que esta, observação que ninguém ainda conseguiu explicar. Seja como for, é mais uma de tantas outras diferenças inesperadas em gémeas monozigóticas, que levaram o pai à desconfiança - não da sua paternidade, mas da genética enquanto disciplina. Gosta de se espojar em superfícies confortáveis e de adormecer acompanhada.  

 

Grãozinho tende a olhar para o chão e a manter a cabeça ligeiramente inclinada para baixo, não alterando a posição quando encara o interlocutor de frente, o que lhe dá o chamado "olhar Lady Di". As feições mais miudinhas fazem com que pareça muito mais pequena do que a irmã, embora a diferença de peso se cifre hoje nuns meros 3-5%. Tem o sorriso maroto e quando morde o lábio lembra Popeye, embora haja quem diga que herdou a expressão da linhagem patronímica, nomeadamente do avô paterno. Revela grande interesse pelos pormenores, das texturas dos materiais aos dedos de uma mão que lhe seja estendida, podendo passar longos períodos quieta e absorta em actividades de observação. Precedeu a irmã no manuseio da chupeta, que continua a manipular com grande virtuosismo. "Atão", pronunciado em jeito interrogativo, vivamente defendido por alguns como uma corruptela de "então", terá sido a sua primeira palavra. Foi ainda a primeira a responder "píu-píu" quando lhe perguntaram "como faz o passarinho?", mas, não havendo pelo menos duas testemunhas, o episódio jamais será homologado. Gosta de adormecer acompanhada, com a barriga a ser massajada suavemente. 

23
Ago16

IKEA blues


Eremita

[Revisto e aumentado a 29.8.16]

Depois de uma tarde a montar mobiliário da IKEA, voltou uma obsessão velha conhecida: a de construir uma história em torno desta empresa. Pela ubiquidade e peculiaridades da marca, de todos os planos para livros que vou tendo, este seria o mais capaz de atingir o sucesso comercial de que a minha família necessita. Ideias avulsas: 1) talvez abrir com um decalque do relato que Eça faz do Ramalhete, mas em que a casa é um apartamento de classe média totalmente mobilado com móveis da IKEA; progressivamente, o relato começaria a abdicar da descrição pormenorizada dos móveis e a usar os seus nomes emblemáticos ("Billy", "Besta", etc.), numa profusão tal que o leitor teria de recorrer a um catálogo da marca para poder apreender o espaço descrito; 2) incluir nas personagens um homem frustrado por não se conseguir libertar dos móveis IKEA, que montou com entusiasmo ao 24 anos, com alguma indiferença aos 35, algo cansado e aborrecido aos 45 e, desde então, melancólico, desesperado ou enraivecido, menos pelo esforço físico do que pela comprovação do seu imobilismo social, que não lhe permitiu nunca comprar móveis de antiquário, móveis nórdicos mas vintage e de madeira maçica, móveis que seriam estimados, restaurados e figurariam na lista das partilhas; 3) um ex-designer da IKEA, inventor da cómoda modelo MALM associada à morte de três crianças, que se mudou da Suécia para Ourique, tentando fugir da sua consciência; 4) um sem-abrigo, que todos os dias ludibria a segurança e chega a permanecer durante meses no IKEA de Alfragide, que passa a ser o seu ecossistema, pernoitando nas camas e sofás dos expositores e ocupando os dias com estratagemas para amealhar umas moedas ou furtar uns frascos de arenque temperado com mostarda e aneto. 5) uma sociedade civil anémica, que ignora uma petição para impedir a instalação de um IKEA em Paços de Ferreira, a "capital do móvel", levando o seu autor a ponderar um acto terrorista em defesa da identidade nacional; 6) algo sobre o amor, o sexo e modelos de cama IKEA, apenas para reforçar o sucesso comercial; etc. 

 

21
Ago16

Coisificar corpos olímpicos


Eremita

Em prosa bem nutrida e militante, a propósito de tweets, gasta-se uma crónica no Guardian para escrever contra a objectificação (sexual) do corpo das atletas olímpicas. É desconsolador testemunhar a defesa de uma boa causa feita sem sentido de oportunidade. Ao contrário de muitas outras áreas, o desporto é implacavelmente meritocrático. Curvas e um palmo de cara podem ganhar contratos publicitários e fazer manchetes, mas não dão medalhas. Acresce que, nos últimos anos, a haver uma tendência, é para a objectificação do corpo dos atletas masculinos. As razões são várias. Por exemplo, objectificar o corpo masculino não é censurável e, para alguns, em nome de uma (caricatural) defesa da igualdade de género, será uma justificação para não se deixar de objectificar o corpo das mulheres. Porém, a razão determinante parece-me ser esta: se, para a generalidade dos desportos, os corpos atléticos masculinos correspondem ao ideal vigente do corpo sensual, o mesmo raramente se aplica ao corpo atlético feminino. O desporto de alta competição não forja mulheres voluptuosas. Os ombros largos das nadadoras proíbem-lhes a graciosidade, os músculos das corredoras velocistas causam admiração sem líbido, os corpos das ginastas, de proporções quase infantis, recomendam pensamentos castos, e a altura da jogadora de volleyball faz com que a sua elegância óbvia seja sobretudo apreciada quando salta e remata, um movimento puramente atlético, sem vestígios de erotismo. Naturalmente, existem adolescentes, existem idiotas e existem as redes sociais, mas a evidência parece-me esmagadora: não havia, nem há, uma onda de comentários objectificadores das atletas, o que há é uma susceptibilização crescente e contraproducente, pois corpos belos, desnudados no espaço público, serão sempre erotizados. De resto, no caso das Olimpíadas, a objectificação de pendor sexual dos corpos femininos nem sequer é a mais marcante, interessante, complexa e polémica. Afinal, haverá outra atleta feminina a ter sido mais coisificada nas últimas décadas do que Jarmila Kratochvílová e Caster Semenya, cujos corpos, masculinizados devido aos altos níveis artificiais ou naturais de androgénios, são as antíteses literais da pin-up?

 

19
Ago16

Plano pessoal de releitura


Eremita

agustina-bessa-luis.jpg

Até há uns dias, sabia de Agustina aquilo que se aprende de ouvido: escrevendo à mão e quase sem emendas, foi prolífica (ao contrário de outros que não resistem à tentação de anúncios que depois não cumprem, apenas reiteram, a autora parece mesmo ter deixado de escrever e desapareceu da vida pública), era coquete nas entrevistas, conservadora sem ser aborrecida, sendo até desconcertante, e muito apreciada pelas raparigas literatas de direita e até algumas de centro-esquerda, tanto pela veia aforística hipertrofiada como por uma valorização das mulheres alheada das vagas feministas do século XX. Mas desconhecia a sua prosa, pois falhei uma primeira tentativa de ler os seus Contos Impopulares, li depois O Livro de Agustina, que me pareceu uma autobiografia escrita de modo displicente, e antes tinha lido um conto, O Rato, sem ter ficado convencido com o sentido de humor da autora. 

 

Depois dos quarenta anos, qualquer escolha de leitura vem com o peso de um item de bucket list. Seleccionei A Sibila (romance de 1954) e A Ronda da Noite (de 2006). A outros autores lusófonos que desconheço ou conheço mal conto dar o mesmo tratamento, isto é, ler duas obras, incluindo a mais emblemática e uma outra, bem afastada da primeira no tempo, tema ou forma. Tudo parecia bem encaminhado: a leitura de A Sibila foi compensadora e preparava-me para atacar a outra obra, mas pensei depois se não deveria reler de imediato o que acabara de ler. É bem possível que a qualidade e a estrutura circular de A Sibila propiciem o embalo para a releitura, mas depois dos quarenta anos qualquer releitura de algo que se acabou de ler é um capricho que a condição de mortal não recomenda. Paciência. Admitindo que, quando chegar de novo fim, conseguirei libertar-me deste livro e não ficarei até à velhice aprisionado por estas páginas, juntarei umas impressões sobre a escrita de Agustina, uma vez concluída a (re)leitura de A Ronda da Noite. 

 

 

17
Ago16

A depressão é uma doença?


Eremita

Vão dizendo que sim e tendo a concordar. Se existe um comprimido que cura ou previne, sobra pouca metafísica. Porém, embora seja uma maldade cobrar a um doente o tempo que nos tomou quando precisou da nossa ajuda, um deprimido que passe uns dias acamado e seja tratado por aqueles que mais o amam (uma mãe, a namorada, a mulher) não se livra de, num momento qualquer de domesticidade mais tensa, ser lembrado da situação de dependência em que esteve e do peso que foi para quem dele cuidou e os demais que vivem na sua casa. Ora, estas revelações não me parecem maldosas, são compreensíveis e até previsíveis, a menos que o deprimido viva com mártires. Mas se é assim, então a depressão não pode ser bem uma doença. Aliás, se o deprimido, tentando escapar à cobrança dos seus, imitasse o tuberculoso e partisse para um sanatório remoto em terras altas, não estaria a salvo, pois o mais provável seria criticarem-no pelo capricho de se ausentar. 

14
Ago16

Raça


Eremita

Ontem, vi os Jogos Olímpicos na companhia do Judeu. Depois de ganhar o bronze, a judoca Telma Monteiro mencionou várias vezes o valor da "raça lusitana". Proferida pelo antigo presidente Cavaco Silva, a expressão era grotesca, mas na voz da atleta pareceu-me rigorosa. "Raça", no sentido de "raçudo", bem entendido. O Judeu também gostou. Lancei depois o tema da fraca apetência dos hebreus para o desporto e o Judeu atalhou logo: "não é falta de apetência, é falta de aptidão". A frase ficou a ecoar na minha cabeça como boutade anti-semítica dita por quem de direito. 

01
Ago16

Glenn Gould detox


Eremita

 

No final dos anos 80, a fama de Glenn Gould era imensa e ainda maior entre os músicos.  Por ter convivido de perto com estudantes de piano, também tive a minha fase maníaca por Gould e, naturalmente, ouvi inúmeras vezes as suas interpretações das Variações Golberg (BWV 988). Depois fartei-me do ego de Gould, da sua inteligência superior, da sua excentricidade, enfim, do seu génio transbordante. Discutia-se, na altura, se os ruídos que Gould emitia com a boca quando tocava piano comprometiam a interpretação. Creio que não há um consenso sobre a matéria e, provavelmente, a discussão continua. Mas ninguém discute os sons emitidos por Maurizio Pollini, a sua respiração profunda e as brevíssimas melodias que entoa quando toca O Cravo Bem Temperado. Porque à discrição do intérprete Pollini só podemos responder com reverência. 

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