[publicado a 24.6.2016; com adenda a 13.7.2016]
No Público, Diogo Ramada Curto (DRC) iniciou uma campanha de terra queimada com que vem varrendo a historiografia lusa. Depois de ter chamuscado Henrique Leitão (prémio Pessoa) e, de uma assentada, António Barreto e Maria Fátima Bonifácio, aguardo com impaciência o texto em que Ramada Curto tratará alguma obra de Rui Ramos, embora se antecipe que ainda demorará, pois será o derradeiro duelo, à maneira de Highlander*. Entretanto, DRC alimentou de novo a fogueira, desta vez com o pobre Vasco Pulido Valente (VPV), a propósito da publicação do último volume de crónicas deste autor. Se nas anteriores críticas o tom era animado por uma clara antipatia pelos visados, nesta DRC dá mostras de alguma subtileza, pois parece ter genuína admiração por VPV enquanto cronista. Paradoxalmente, o efeito acaba por ser ainda mais devastador, na medida em que à importância de VPV como cronista se contrapõe a sua insuficiência como historiador e o elogio para o primeiro acaba por credibilizar a sentença para o segundo. Para que não fiquem dúvidas, mas revelando algum conflito interior, DRC repete esta ideia num texto relativamente curto. Primeiro, apresenta-a de um modo algo positivo e ambíguo, que ainda salvaria a reputação do VPV historiador, referindo que será escusado "insistir em apreciá-lo enquanto historiador, uma vez que as suas obras de história – pouco importa se muitas, se poucas e em que termos – não estão ao mesmo nível das crónicas que publica nos jornais". A seguir, é claríssimo e demolidor: "É como se VPV não se tivesse conseguido realizar na escrita de livros de história, acabando por encontrar a sua verdadeira forma de expressão em textos de fôlego curto..." Esta ideia, que está longe de ser uma novidade, escrita por um historiador respeitado passa de boutade mesquinha a constatação citável.
Quanto à crítica do historiador como cronista, DRC perdeu uma boa oportunidade. A tese central de DRC é a de que VPV tem uma "concepção estrutural do passado de Portugal", ou seja, "de estruturas que só são perceptíveis na longa duração, mormente ao longo dos dois últimos séculos", centrada em "aspectos que se mantêm quase imutáveis", sem esquecer a "'essencial contingência' dos sujeitos". Enfim, qualquer leitor atento já tinha reparado que, segundo VPV, no século XIX está a chave para a interpretação de Portugal, a natureza humana é fodida e "shit happens". DRC também não oferece nada de novo quando resume as causas de VPV para a nossa decadência à pobreza do país, debilidade da classe média e peso do Estado. Ora, tirando um apontamento pertinente e informado em que contextualiza o uso do termo "indígena" (uma das raras afectações de estilo de VPV), uma crítica en passant à visão elitista que o cronista tem do ensino e a acusação algo adolescente de que também VPV passou a vida a mamar nas tetas do Estado, DRC é essencialmente descritivo e não lhe ocorreu tentar responder à pergunta essencial: como pode um colunista de tão "vasta cultura" e com a tal "concepção estrutural do passado" ser tão pouco criativo e previsível na interpretação da actualidade? DRC destaca a capacidade que VPV terá para "analisar as grandes estruturas", mas não dá nenhum exemplo que ateste tal dom. Assim, mais até do que o azedume e pessimismo, dir-se-ia que é precisamente a tendência para centrar a análise "nos aspectos que se mantêm quase imutáveis" que ameça transformar o conjunto de crónicas de VPV numa versão erudita e forçosamente mais verborreica da máxima popular "são todos iguais", que descreve à exaustão o pensamento político de grande parte do nosso povo. Ora, este extraordinário caso de extremos que se tocam só não se concretiza porque VPV escreve bem, pelo que importa mais a forma do que o conteúdo, a menos que o leitor vá também à procura da sua irritação predilecta. E é apenas por escrever bem que continua a ser lido, sobretudo por aqueles da sua geração e da geração seguinte, mas sem ser o “colunista mais influente do país", algo que só por dever de ofício alguém - como o organizador do livro de crónicas de VPV - poderia escrever. Mais influente do que VPV é, por exemplo, Pacheco Pereira, não só pela sua presença multimédia e por assinar uma prosa de combate, mas também por fazer da sua vasta cultura uma ferramenta que lhe permite abarcar temas mais variados e apetecíveis do que a enésima crónica de VPV sobre a mecânica do bloco central, produzir também interpretações mais ricas, ainda que não tão bem escritas, e manter uma curiosidade e vontade de partilha que não provocam no espectador ou leitor a desagradável sensação de vergonha alheia, como quando reparamos na jactância de um elitista tão desfasado do mundo em que vive que se julga o único capaz de ler livros estrangeiros entre os indígenas.
* Adenda: por lapso inexplicável, não me apercebi de que, aquando da polémica iniciada por Manuel Loff sobre a História de Portugal coordenada por Rui Ramos, DRC criticou a descrição que Ramos fez da Guerra Colonial. Como DRC entrou tarde neste debate, o tom é mais reconciliador do que lhe é costume. Mas também deixei escapar uma crítica de DRC à opinião de Rui Ramos sobre política de ciência. Nesse texto, sem o espartilho das opiniões precedentes, temos DRC no seu melhor: cáustico, irónico e usando referências literárias com bom gosto.