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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

23
Jul16

O escritor como referência moral


Eremita

Pensar a Europa daqui a uns séculos. Pensar as hordas de pretos e indianos e amarelos, de desenfreada proliferação, a inundá-la de vagas e vagas de miséria e degradação e anulação de todos os códigos de convivência. 

 

São palavras de um dos nosssos mais respeitados escritores. Conseguem adivinhar o seu nome? Já morreu, o que pode ajudar. Era branco, o que provavelmente ajuda pouco. 

21
Jul16

A fita métrica de Moretti


Eremita

 

Se vivesse sozinho numa ilha deserta, desprezar o meu aniversário seria um acto de resistência, mas em sociedade desprezar os aniversários - o meu e os dos outros - passaria sobretudo por falta de educação. A verdade é que, tirando raríssimas excepções, sempre me pareceu que nenhum aniversário merece ser festejado até se ultrapassar a esperança média de vida. Afinal, a sociedade quer-se meritocrática. Mas como convencer as minhas filhas desta tese sem lhes explicar o que é a morte? Têm quase onze meses e já me vejo aos saltos, batendo palmas, atirando serpentinas e cantando os hits da Baby TV na festa do seu primeiro aniversário. Sou um fraco.

 

Os aniversários e todas as séries regulares (férias de Verão, campeonatos do mundo de futebol, jogos olímpicos, etc.) são bons para organizar as memórias, mas a sua previsibilidade acaba por neutralizar o seu potencial como catalizadores de nostalgia ou ansiedade. Os verdadeiros marcos que assinalam a passagem do tempo surgem quando menos se espera. Cumpriu-se entretanto uma década, mas ainda me lembro de quão perplexo fiquei por me ter apercebido que chegara à idade que o meu pai tinha nas primeiras recordações que dele guardo - haverá efeméride mais inesperada e íntima? E há uns dias, iniciada a primeira rotina de férias com as bebés, algo esmagado pela logística dos biberões, mudanças de fralda e vigilância permanente, calculei que quando elas já não quiserem passar férias comigo, nos últimos anos da adolescência, terei mais de 60 anos e uma forma física que me incapacitará para fazer o caminho do Inca e outras aventuras sonhadas. Isto dos filhos obedece a uma artimética simples: por uma persistente ilusão de eternidade, aceitamos picos de agudíssima efemeridade. 

13
Jul16

VPV no seu labirinto


Eremita

[publicado a 24.6.2016; com adenda a 13.7.2016]

No Público, Diogo Ramada Curto (DRC) iniciou uma campanha de terra queimada com que vem varrendo a historiografia lusa. Depois de ter chamuscado Henrique Leitão (prémio Pessoa) e, de uma assentada, António Barreto e Maria Fátima Bonifácio, aguardo com impaciência o texto em que Ramada Curto tratará alguma obra de Rui Ramos, embora se antecipe que ainda demorará, pois será o derradeiro duelo, à maneira de Highlander*. Entretanto, DRC alimentou de novo a fogueira, desta vez com o pobre Vasco Pulido Valente (VPV), a propósito da publicação do último volume de crónicas deste autor. Se nas anteriores críticas o tom era animado por uma clara antipatia pelos visados, nesta DRC dá mostras de alguma subtileza, pois parece ter genuína admiração por VPV enquanto cronista. Paradoxalmente, o efeito acaba por ser ainda mais devastador, na medida em que à importância de VPV como cronista se contrapõe a sua insuficiência como historiador e o elogio para o primeiro acaba por credibilizar a sentença para o segundo. Para que não fiquem dúvidas, mas revelando algum conflito interior, DRC repete esta ideia num texto relativamente curto. Primeiro, apresenta-a de um modo algo positivo e ambíguo, que ainda salvaria a reputação do VPV historiador, referindo que será escusado "insistir em apreciá-lo enquanto historiador, uma vez que as suas obras de história – pouco importa se muitas, se poucas e em que termos – não estão ao mesmo nível das crónicas que publica nos jornais". A seguir, é claríssimo e demolidor: "É como se VPV não se tivesse conseguido realizar na escrita de livros de história, acabando por encontrar a sua verdadeira forma de expressão em textos de fôlego curto..." Esta ideia, que está longe de ser uma novidade, escrita por um historiador respeitado passa de boutade mesquinha a constatação citável. 

 

Quanto à crítica do historiador como cronista, DRC perdeu uma boa oportunidade. A  tese central de DRC é a de que VPV tem uma "concepção estrutural do passado de Portugal", ou seja, "de estruturas que só são perceptíveis na longa duração, mormente ao longo dos dois últimos séculos", centrada em "aspectos que se mantêm quase imutáveis", sem esquecer a "'essencial contingência' dos sujeitos". Enfim, qualquer leitor atento já tinha reparado que, segundo VPV, no século XIX está a chave para a interpretação de Portugal, a natureza humana é fodida e "shit happens". DRC também não oferece nada de novo quando resume as causas de VPV para a nossa decadência à pobreza do país, debilidade da classe média e peso do Estado. Ora, tirando um apontamento pertinente e informado em que contextualiza o uso do termo "indígena" (uma das raras afectações de estilo de VPV), uma crítica en passant à visão elitista que o cronista tem do ensino e a acusação algo adolescente de que também VPV passou a vida a mamar nas tetas do Estado, DRC é essencialmente descritivo e não lhe ocorreu tentar responder à pergunta essencial: como pode um colunista de tão "vasta cultura" e com a tal "concepção estrutural do passado" ser tão pouco criativo e previsível na interpretação da actualidade? DRC destaca a capacidade que VPV terá para "analisar as grandes estruturas", mas não dá nenhum exemplo que ateste tal dom. Assim, mais até do que o azedume e pessimismo, dir-se-ia que é precisamente a tendência para centrar a análise "nos aspectos que se mantêm quase imutáveis" que ameça transformar o conjunto de crónicas de VPV numa versão erudita e forçosamente mais verborreica da máxima popular "são todos iguais", que descreve à exaustão o pensamento político de grande parte do nosso povo. Ora, este extraordinário caso de extremos que se tocam só não se concretiza porque VPV escreve bem, pelo que importa mais a forma do que o conteúdo, a menos que o leitor vá também à procura da sua irritação predilecta. E é apenas por escrever bem que continua a ser lido, sobretudo por aqueles da sua geração e da geração seguinte, mas sem ser o “colunista mais influente do país", algo que só por dever de ofício alguém - como o organizador do livro de crónicas de VPV - poderia escrever. Mais influente do que VPV é, por exemplo, Pacheco Pereira, não só pela sua presença multimédia e por assinar uma prosa de combate, mas também por fazer da sua vasta cultura uma ferramenta que lhe permite abarcar temas mais variados e apetecíveis do que a enésima crónica de VPV sobre a mecânica do bloco central, produzir também interpretações mais ricas, ainda que não tão bem escritas, e manter uma curiosidade e vontade de partilha que não provocam no espectador ou leitor a desagradável sensação de vergonha alheia, como quando reparamos na jactância de um elitista tão desfasado do mundo em que vive que se julga o único capaz de ler livros estrangeiros entre os indígenas. 

 

* Adenda: por lapso inexplicável, não me apercebi de que, aquando da polémica iniciada por Manuel Loff sobre a História de Portugal coordenada por Rui Ramos, DRC criticou a descrição que Ramos fez da Guerra Colonial. Como DRC entrou tarde neste debate, o tom é mais reconciliador do que lhe é costume. Mas também deixei escapar uma crítica de DRC à opinião de Rui Ramos sobre política de ciência. Nesse texto, sem o espartilho das opiniões precedentes, temos DRC no seu melhor: cáustico, irónico e usando referências literárias com bom gosto. 

 

09
Jul16

Beijos


Eremita

Beijo as bebés nas bochechas, na barriga, no cucuruto, no pescoço, na nuca, nos pés e nas mãos. Também as beijo na boca. Quanto a métrica, fonética e impacto, teria sido melhor abrir o texto com um "beijo as bebés na boca", se não me tivesse censurado, tal como reprimi a vontade pela primeira vez e hesitei antes de concretizar o meu primeiro beijo na boca de uma delas. Agora não hesito, mas tendem a ser beijos furtivos; não me passaria pela cabeça beijá-las na boca na rua, exposto a olhares críticos de transeuntes sedentos de indignação. No dia do meu primeiro beijo na boca, ou logo no dia seguinte, contei o que fizera à L., e se não chegou a ser uma confissão, tinha a expectativa de que ela me autorizasse, me dissesse que era bom para o desenvolvimento psicológico das bebés e o fortalecimento dos laços parentais, nada pensasse sobre a higiene do acto e nem sequer se lembrasse da boca como uma zona erógena. Esta polémica já foi discutida, dividindo a população e a doutrina, mas os exemplos fotográficos documentam apenas casos de pais que beijam filhos pequenos, deixando-me sem saber se beijar bebés é incontroverso ou tão condenável que o Google não apanha o tópico, soterrado algures na deep web.  [continua]
08
Jul16

O homem sem imaginação


Eremita

Uma das desilusões de infância e juventude que se mantém, depois de muitas outras terem sido ultrapassadas, fosse pela simples passagem do tempo, alguma epifania  ou  psicoterapia, é a de que sou uma pessoa sem imaginação. Na instrução primária, cada um dos meus coleguinhas pintou o guarda-chuva por colorir com cores garridas e padrões divertidos, mas o meu ficou preto e com o cabo castanho; a dona Natividade não gostou. No liceu, a professora de português elogiou as composições de duas colegas e leu em voz alta uma passagem da minha composição, mas como prémio de consolação, pois a palma do rasgo criativo foi dado apenas às minhas rivais. Nem sequer nos poucos sonhos de que me lembrava encontrei a exuberância barroca dos sonhos que me contavam; todos me pareciam banais e caricaturalmente freudianos, como o sonho em que num jogo de futebol de praia, perseguindo ambos a bola chutada para o mar, o adversário que ganhara vantagem de repente se vira para mim com um falo de um metro erecto. Enfim, para me proteger, provava a mim próprio que era imaginativo, por conseguir transformar as faias que via do meu quarto em foguetões que se libertavam do chão e subiam em direcção ao céu com as raízes flamejantes. Sempre que surgia a dúvida, pensava na mesma imagem das faias estratosféricas, não me ocorrendo sequer que uma pessoa imaginativa seria capaz de apresentar novas provas de imaginação sempre que a dúvida surgisse. De tão gasta, a prova de que tinha imaginação era a demonstração definitiva da minha incapacidade criativa. O resto da vida foi decorrendo sem sinais de imaginação acima da média: não me fiz artista, não assinei patentes, não criei um estilo original de vida, de falar, vestir ou pentear ou cabelo. Convencido e conformado com a falta de imaginação, cheguei a pensar em actos trágicos, num crescendo que foi da ideação dos cortes no antebraço à de me tornar crítico de profissão.  [continua]

02
Jul16

Copiar em jeito de homenagem


Eremita

Os homens gostam de gadgets. Esta é uma frase batida. Mas vejamos como a mesma ideia pode animar uma prosa magnífica, que copiei letra por letra:

 

Ali, ela era bem-vinda, nesses boudoirs negros, assistindo ao demolhar dos calos em água salgada, à aplicação de receitas aparentadas de perto com velhas indicações de magia e a física primitiva - a ruina que suaviza o cieiro da pele, o leite de mulher para as dores de ouvidos, as presas de cornela* como amuleto, fórmulas, preceitos, que mantinham um sabor de harém e de barbárie e elas cumpriam a ocultas, com essa fé pelas coisas em que o mistério é uma garantia de possibilidades. Ainda que simulem obedecer e optar pelo vanguardismo dos costumes, as mulheres são rebarbativas às inovações. No fundo da sua natureza, há um apelo ao primitivo, ao antigo, ao passado, ao já experimentado e, sob esse aspecto, não há fantasias para elas. Talvez vivam mais profundamente integradas nos moldes genéricos da vida; mais do que elas, o homem se influencia pelas suas noções de tempo e de espaço, o que o faz circunscrever-se não à vida, mas a determinada época. A Sibila, Agustina Bessa-Luís 

 

* O vocabulário de Agustina Bessa-Luís cria alguns obstáculos. Se algum leitor souber o que é uma cornela, peço-lhe que se manifeste.

 

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