Uma estreia sem ensaio
Eremita
Mesmo um pai tardio não passou por experiências que o informem sobre o amor que terá pelos filhos, pois - se tiver tido sorte - conhecerá apenas o amor romântico, o amor dos seus pais e a amizade profunda. Entre outras diferenças, o amor pelos filhos distingue-se do primeiro por ser menos volátil, do segundo pelo sentido de responsabilidade e da amizade pela desigualdade que não existe entre pares. As artes tendem a secundarizar o amor filial face ao amor romântico e, como se não bastasse, os exemplos mais famosos são horrendos, como o de Abraão, esse fanático obediente, e o de Cronos, o antropófago filicida em série. Naturalmente, também no número de referências e na boa imprensa o amor paterno perde quando comparado ao amor materno. Não existindo substrato cultural, sobram as referências pessoais, em particular o amor paterno que se sentiu e se procura emular ou cuja falta se notou e se promete evitar, mas tais recordações não incluem a fase em que o filho era um recém-nascido, pelo que o período crucial constitui uma estreia sem ensaio geral.
O amor incondicional é instantâneo? Se não for instantâneo, só pode depender de um mecanismo que é posto em marcha pelo simples facto de o bebé existir ou vir a existir e, tal como certas infecções resultam sempre em doença ao fim de um período de incubação, não pode depender, por exemplo, de um primeiro sorriso, pois então não seria incondicional. Mas se é instantâneo, em que momento devemos senti-lo? Quando a futura mãe nos comunica que está grávida? No momento da primeira ecografia? Quando nasce o bebé? Sei hoje a resposta, mas passei praticamente toda a vida sem imaginar a pergunta.

