O Judeu e eu somos materialistas de inclinação esforçadamente lógica, isto é, quando falhamos reconhecemos que o erro é humano e não cósmico, embora fiquemos sempre em desacordo, porque ele tende a pensar que o erro foi meu e vice-versa. Como em quase tudo, o Judeu é o mais intransigente, ao ponto de travestir de projecto científico o capricho da máquina do movimento perpétuo. No meu caso, admito sem vergonha a cedência a duas ou três superstições e uma delas é dos doze desejos para o ano novo. Este ano agrupei as passas sobre a palma da mão segundo temas (família, amor, sucesso e paz no mundo), apenas para não me enganar na enumeração dos desejos, mas o Judeu irritou-se com o desenho resultante e, com violência q.b., pontapeou-me a mão no preciso momento em que eu buscava a primeira passa. As passas voaram e fiquei paralisado pela dúvida: estariam aquelas passas já possuídas pelos desejos que fui ensaiando enquanto as organizava ou podia substituí-las por doze das muitas outras passas que ficaram ainda sobre a mesa, dentro de uma tigela? Não me decidi a tempo e na formulação dos desejos, como é sabido, o tempo conta. Consegui depois recolher onze das passas e o Judeu aconselhou-me a congelá-las para as utilizar no próximo ano, pois "os desejos, como a necessidade deles, não costumam prescrever". Mas respondi-lhe então que sem a última passa não poderia utilizar nenhuma das outras, nem sequer segundo o expediente de meter todas à boca ao mesmo tempo para contornar a perda irremediável da associação biunívoca entre uma passa e um determinado desejo. Menos por remorso do que pela persuasão do argumento estatístico dos graus de liberdade, o Judeu sentiu-se então mobilizado para a busca da passa perdida e foi essencialmente assim, de cu para o ar, que passámos o resto do serão. Não a encontrámos, mas como o Judeu não tem animais de estimação e a conjuntura o obrigou a dispensar a mulher-a-dias, ainda temos um ano inteiro pela frente.