- Judeu, isto parece-me um disparate.
- É uma mera precaução.
- Uma ideia peregrina...
- Uma ideia adequada aos tempos que se avizinham. O suicídio será revisto em alta.
- Mas tu não percebes que o simples facto de escreveres uma carta destas me deixa preocupado?
- Toda a gente já pensou em acabar com a sua própria vida.
- Achas mesmo?
- Sim. Qualquer pessoa. Não depende da infelicidade, depende da capacidade de raciocínio abstracto. Fala-se é pouco disto.
- Mas daí a deixares-me uma carta...
- É uma carta de não-suicídio, já te expliquei.
- A tua pior invenção.
- Que mal pode resultar?
- Deixaste-me preocupado.
- Pretendo apenas assegurar que ninguém se apropriará da história da minha vida. Tenho um filho.
- Mas revelas um excesso de zelo que é próprio dos obcecados.
- Limito-me a reagir às circunstâncias actuais. Já não se pode escorregar, meu caro. Já não há direito ao acidente. Hoje, somos todos suicidas até prova em contrário. Este é o mundo que criámos. E esta é a minha prova. Não vou deixar este assunto nas mãos do Estado, de um qualquer investigador com relatórios em atraso e problemas de alcoolismo.
- Como garantes que acreditarão no que escreveste? Podes ser um suicida que forjou o seu próprio acidente mortal.
- É verdade, tenho andado a pensar nisso, espero encontrar uma solução. Entretanto, faço de ti o depositário da minha carta.
- É uma honra que preferia evitar.
- Faz isto por mim. Guarda a carta numa caveta. O mais provável é não precisares de a abrir nunca.
- Tenho alguma curiosidade, confesso.
- Só escrevi um parágrafo. Digo que só terá sido suicídio se me encontrarem de cuecas cor-de-rosa.
- Porque noutras circunstâncias nunca as vestes. Entendo-te.
- Sim, tal como houve o Vestida para matar, imaginei o vestido para morrer. A cueca cor-de-rosa é um mero capricho.
- Será? Não chega a ser engraçado, é sobretudo triste.
- Eu sei.
- E até algo decadente.
- Isso é heteronormativo.
- Vai-te foder. É decadente, não me lixes.
- Talvez.
- No fundo, tu esvazias o suicídio de estilo.
- Pode ser.
- Usas a humilhação como garantia de sobrevivência...
- Sim. Podes parar?
- É eficaz, mas excessivo. Não queres antes reescrever a carta mencionando meias de cores diferentes?
- Por vezes ando mesmo com meias trocadas.
- Já tens as cuecas?
- Não.
- Não as compres, peço-te.
- Não conto comprá-las.
- Judeu, eu sou teu amigo. Tu não me obrigues a abrir a tua cómoda como quem procura uma pistola.
- Só encontrarás cuecas brancas e uma com caras do rato Mickey.
- Tiveste medo de usar essa na carta?
- Foi prenda de uma tia, não seria correcto. Tenho um filho, mas também tenho primos.