A revelação pública do livro das nossas vidas pertence ao conjunto de mentiras benignas que povoam o espaço público. Surge como mentira de primeiro grau, quando pensamos na resposta que nos melhora socialmente (um clássico da literatura qualquer); surge como mentira de segundo grau, quando pensamos que lembrar um clássico é uma resposta demasiado estereotipada e procuramos surpreender com um livro obscuro, isto é, idiossincrático; e surgirá como mentira de grau três a grau n, por motivos vários que a minha inteligência não alcança mas admite. Mesmo a resposta sincera não está isenta de suspeita, pois a honestidade aqui assenta num critério que pode não ter sido definido de forma absolutamente inocente - esta será, digamos, a mentira de grau zero. Enfim, talvez não seja útil prosseguir este exercício foster-wallaciano, pois é sabido que não faz bem nenhum.
Este livro é sempre o resultado de contingências que nem os pais mais zelosos com a educação dos filhos conseguem controlar. Imaginemos um gráfico repetido para cada livro, em que a a adequação mental para o ler e a probabilidade de o encontrar num dado momento são representadas ao longo do tempo. O livro da vida tende a ser aquele em que os picos destas curvas estão mais próximos, mas trata-se de uma verdade estatística e este método é ainda imperfeito por não captar a dimensão retroactiva que tantas vezes sedimenta esta certeza, isto é, o efeito que têm as surpresas sobre o livro depois de o termos lido - perceber que alguém especial também o leu, perceber que lemos um livro importante sem ter noção disso, descobrir que o autor teve uma vida e/ou personalidade fascinantes, etc.
Continua*
* Este "continua", que tem sido um dos traços distintivos do Ouriquense, começa a deixar-me cada vez mais frustrado. Sei perfeitamente o que pretendo escrever para terminar os textos, e isso parece bastar, como se os escrevesse apenas como notas que ficam completas quando são suficientes para me lembrar mais tarde de tudo. Parece haver uma urgência latente em concluir algo que a escrita não deve adiar, mas a verdade é que não há nada mais importante. No fundo, não sou livre, nem mesmo em Ourique.