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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

24
Ago11

Fazer o quê?


Eremita

Seria  possível provar que o pudor em dar erros de ortografia faz mais pelo aumento do vocabulário activo do que programas nacionais de leitura, mas a explicação sai fora daquilo que se entende por uma mensagem simples e por isso nunca será veiculada, ainda que seja verdadeira.

19
Ago11

Blitz


Eremita

 Reportagem

 

 

costa alentejana com que sonho foi copiada das paisagens da Alta Normandia em que uma planície de pastagem verdejante é cortada por uma falésia esbranquiçada que desce a pique até ao mar azul. Vem nos postais. Na versão alentejana, a pastagem plana é substituída pelo ligeiro ondulado do montado e a rocha da falésia não é alva a lembrar o alabastro, antes alaranjada e cheia de veios verticais de erosão, como uma termiteira africana em modo de arranha-céus, só que do ar o contraste entre as cores do mar e da terra seria parecido, ainda que mais marcante no Alentejo, pois a vista de topo oculta a arriba abrupta e do fim do Inverno ao fim da Primavera as sementeiras vão tão além da Normandia na intensidade do verde que só por causa dos sobreiros se perceberia não estarmos na Irlanda. Não há memória desta paisagem, nem mesmo que alguém viesse dar testemunho presencial do Alentejo logo depois da invenção do montado, mas para algo existir é sabido que a falta de um nascimento pode ser largamente compensada por uma boa causa de morte. Eu diria então que a costa alentejana imaginada - e não vos falei sequer da avifauna, que inclui lontras e cegonhas, sardões e águias pesqueiras - foi morta pelos festivais de Verão. E por isso vive. Entre outras demonstrações, porque acabo de a descrever de uma barraquinha com ligação wireless de um desses eventos estivais - não sei bem como, parece até que estava a dormir pesadamente depois de uma inadvertida experiência quase psicadélica com umas bagas e cogumelos e que acordei com tudo isto montado em meu redor. Seja como for,  já que estou em pleno Sudoeste Prime, o festival que se reclama ainda mais a sudoeste  do que o rival festival do Sudoeste, mais vale tentar perceber o que se passa por aqui. São sete da manhã, o nórdico que ressona ao relento mesmo perto de mim passou de vicking a querubim com a luz nascente e há mais uns corpos por aí, como baixas esquecidas na ressaca da batalha, mas num campo sem nevoeiro - convém não abusar das imagens, porque nem sequer há neblina matinal. Creio que vou aproveitar o dia para brincar aos repórteres, no alinhamento do eixo Tom Wolfe- David Foster Wallace - Paulo Moura, para vos oferecer um daqueles frescos sociais que tantas vezes leio nas revistas ricas em crítica cultural.

 

7:30 Depois de umas voltas, percebi que estamos na margem norte da ribeira de Seixe, já a jusante de Odeceixe, e que a foz é "logo depois do gancho do rio, estás a ver?". Pareceu-me oportuno decidir logo que modus operandi usar durante o dia: nunca interpelar directamente em busca de informação concreta sobre o festival. Aplicada à mais comum actividade de pedir indicações para o caminho, este método proíbe perguntar como se chega a determinado lugar, o que fazer diante do entroncamento, os quilómetros que faltam, etc., introduzindo-se assim a aleatoriedade e tempo necessários para atenuar a perturbação do observador no que observa, mas sem a pretensão absurda dos métodos de mergulho na realidade que pedem à consciência um capricho do inconsciente. É claro que me farei passar por mais um festivaleiro e que escreverei todos os meus apontamentos nas casinhas com retrete, mas espero não ser obrigado a explicar-me com consumo de diuréticos ou algum desarranjo intestinal, pois conto circular por aí como uma social butterfly

 

7:55 As retretes devem ser limpas ao fim da noite, o que justifica um louvor à organização, mas acuso já a tendência para escolher a mesma das mais de 30 que se perfilam. Na porta da barraquinha, do lado de dentro, alguém escreveu a canivete "Cintra Sucks" e não chego a dar crédito à hipótese de que não é desabafo genuíno, antes encomenda da concorrência a uns infiltrados. A cerveja que domina este festival é a Cintra, do empresário Sousa Cintra, um self-made man com o difícil estatuto de ser desprezado pelas elites e gozado pelo povo, pelo menos desde o célebre acidente que é também a magia do directo, quando, em plena entrevista radiofónica via telefone, enquanto guiava, ao atirar uma garrafa de água vazia pela janela que julgava aberta partiu o vidro do seu próprio carro e a seguir relatou para o auditório o sucedido. Este episódio é um dos maiores diamantes em bruto ainda por facetar pelos publicitários, talvez por o peso dos gigantes Sagres e Superbock ser tal que ignorar os anões nem chega a ser táctica. A Cintra não vingou em Portugal como vingou no Brasil e pode ser que o Sudoeste Prime seja a lança em África que o empresário arremessou sobre o Atlântico para começar finalmente a conquistar mercado no seu país. De resto, o batuque que se ouve e o alinhamento previsto para a tarde de hoje são sinais de que o Brasil estará pelo menos tão presente neste festival como a música anglo-saxónica. 

 

8:30 Apesar de ser uma pechincha, adiei a Cintra para o almoço e preferi um iorgurte com sidecar de cereais, que pude comprar num mini-mercado praticamente a céu aberto e com uma instalação eléctrica que deve violar todas as regras comunitárias de segurança. Sentei-me numa longa mesa com bancos corridos, creio que pensada para promover o convívio, e ao meu lado abancou depois um francês de bíceps impressionantes, que se apresentou como o baterista dos Solitude. Depois de pronunciar o nome da banda, notei que ele esperou uma atitude de fã da minha parte, mas não lhe fiz a vontade, nunca ouvi falar dos Solitude e a minha reacção, que veio no tempo errado e agora me parece bastante tola, pois não deve ser original, foi ter engelhado a cara a fazer de Leo Ferré e entoado o refrão La solitude. Pierre, assim se chama, sacou depois um caderno da mochila e, como se fosse fumar, pediu-me licença para escrever. Perguntei-lhe se era para um making of da tournée dos Solitude e ele respondeu-me que eram notas para um ensaio sobre o blues do baterista. "Boa sonoridade, tens título", disse-lhe, mas ele já ia lançado na exposição: "tu conheces o Suskind? Teve o infortúnio de escrever um bestseller, mas há um livrinho dele muito bom, La Contrebasse. Leste?" É o monólogo de um músico de um contrabaixista de orquestra frustrado. "Quero escrever o La Contrebasse do baterista. Qu'en penses-tu?". Temo sempre quando me fazem tal pergunta, mas disse-lhe logo que era uma apropriação primária a que faltava golpe de asa. A conversa não sobreviveu.

 

 

 


11
Ago11

Longa pausa


Eremita

 

 

Parto hoje de bicicleta para a zona entre a Praia da Galé e a Praia da Arrifana. Conto sobreviver da caça, da pesca, da recolecção e da bondade dos forasteiros, pois levo apenas 14 euros na carteira. O meu objectivo é ficar por lá até 15 de Setembro sem cometer qualquer delito, nem actos decadentes. Para que tal aconteça, é preciso grande integridade moral e estoicismo. Mas um bons anzóis também podem fazer a diferença.

 

Conto  ainda fazer uma releitura de Os Maias à luz de uma das teorias das literatura mais potencialmente patetas que gostaria de estudar: o darwinismo literário.

 

Deixo-vos com a foto da minha árvore preferida, entretanto falecida.

 

Até breve e comportem-se como se o matador Chibanga vos fitasse.

 

 

 

 

11
Ago11

Mitologias em família


Eremita

Os amigos de longa data são quem melhor nos conhece. Têm sobre os familiares a vantagem de não acusarem a inércia temporal que faz do Natal seguinte a reedição de um outro que deixou de existir.

 

 

 

 

06
Ago11

Assuntos sérios


Eremita

A devido tempo, conto analisar em profundidade a entrevista que Ricardo Chibanga deu ao semanário Expresso.  Trata-se de um documento importante, sobretudo depois de Ricardo Araújo Pereira, num programa de rádio de grande audiência, ter confundido o grande matador com o Professor Karamba. É verdade que são ambos pretos, mas há limites.

 

05
Ago11

13


Eremita

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(pub) A brief history of romance comics

Data de 25 de Junho de 2010 o último diálogo erótico. Foi também o mais curto:

 

- Você é um banana.

- A sério?

- Vê?

- O quê?

- A sua reacção! É própria de um banana.

- Ah. Pois, talvez.

 

Cruzei-me hoje com as libertinas de Lisboa. Estão ambas mais gordas, mas uma engordou genericamente, como se um mestre vidreiro a tivesse soprado, e a outra engordou apenas nas coxas e no rabo, mas nem por isso parece um símbolo de fertilidade, creio que por continuar a usar o cabelo curto. Voltou a haver desejo, só que é aquele desejo que se ressaca por antecipação. Em parte por aborrecimento. É nestas alturas que desejo ser um velho sem líbido e em paz com a mais-valia que isso representa. Falámos em ir ao cinema amanhã. Por sorte, não será para ver o The Girlfriend Experience outra vez, um filme que as libertinas provavelmente teriam adorado.

03
Ago11

Um sono oportuno


Eremita


 

O traço comum a todas as críticas de The Pale King, o romance póstumo e inacabado de Foster Wallace, é que nele se tenta tornar interessante um assunto imensamente chato. Inifinite Jest tem uma matéria-prima suculenta (drogas, dependência, competição e terroristas canadianos) e The Pale King parece ter o seu contrário (funcionários públicos de uma repartição de finanças), sendo esta busca do desafio derradeiro a prova definitiva do génio de Wallace. Isto parece-me demasiado esquemático, mas também é verdade que as críticas a Wallace e a própria forma de Wallace pensar sobre a sua obra e a sua pessoa me parecem básicas nas suas contradições e conclusões apresentadas. E já que é assim, permitam-me, aqui de Ourique, ser ainda mais esquemático e identificar a verdadeira imagem espelhada de The Pale King, que não pode ser Infinite Jest, visto que ambos tendem para o interessante. Quem consegue tal ousadia é Steven Soderbergh, em The Girlfriend Experience, a história de uma prostituta que, em filme, dá imenso sono. Nunca saberemos se foi intencional, embora a ideia de usar uma ex-actriz de filmes pornográficos no papel principal talvez seja a solução (favorável a Soderbergh) para este enigma. Em todo o caso, ainda bem que o Judeu adormeceu mesmo antes do fim, pois na última cena vemos um dos seus a ejacular apenas por dar um abraço à prostituta, percebendo-se que se trata de uma rotina entre os dois. Ora, qualquer pessoa sabe que os judeus ortodoxos são pessoas que reagem mal ao toque das gentias, mas há limites. Aquela cena não eleva em nada o povo eleito e seria capaz de pôr em campo o sionista que vive dentro do meu amigo.

02
Ago11

Tábua de personagens [actualização]


Eremita

 

 

Tenho conhecido algumas pessoas desde que aqui cheguei de bicicleta.

 

 

PERSONAGENS

 

Tatiana

 

Tatiana, uma ucraniana caixa no Pingo Doce, é uma mulher de anatomia e personalidade imprecisas. A indefinição dos seus contornos físicos e psicológicos é essencial para que seja camaleónica e assim cumpra as funções de passe-partout passional que recolha as características dos objectos passionais do seu criador, reais ou fantasiosos, e de todos os tempos. Mesmo em relação ao seu nariz, que foi já descrito com grande precisão, o leitor atento ficará com dúvidas, pois há uma contradição: Nariz à Rosemarie DeWitt ou "nariz fino, pouco comprido, mas muito nobre? E, afinal, se não há rosto passível de ser amado no local de trabalho de Tatiana, quem era aquela mulher que lhe terá dado um rosto provisório? Não se sabe. 

 

Tatiana vai engravidando em tempo real. Primeiro nasceu "1", depois "2", em breve haverá "3". Os filhos de Tatiana terão um nome, mas aqui são apenas "1", "2", "3"... "n". São sempre de homens diferentes e nunca do narrador, mas "sempre" e "nunca" são aqui menos redundantes do que contraditórios. Ou talvez não. 

 

 

Igor

 

Igor, marido de Tatiana, é uma besta e também um idiota. Por uma vez, a falta de densidade psicológica é da exclusiva responsabilidade da personagem. Igor não chega sequer a representar o contraponto de Tatiana, um passe-partout de todos os ódios, porque em regra acumulamos menos ódios do que paixões e o ódio tolera-se muito mais facilmente, dele podendo até vir algum ânimo. Igor existe apenas para criar alguma tensão e fazer de Tatiana uma mulher inacessível. O plano em construção para assassinar o ucraniano pontua a primeira fase do Ouriquense, se possível no registo de comédia negra. Fisicamente avantajado mas destituído de qualquer brilho ou bondade, o amor de Tatiana por este homem é um dos grandes mistérios desta trama e só a complexidade das mulheres nos livra de termos aqui uma inverosimilhança.

 

Na segunda fase do Ouriquense, Igor é dado como falecido, na sequência de uma série de eventos com final em aberto - sobretudo por preguiça do autor, mas também conveniência - que levam o eremita até Espanha, de onde traz o relato Quem Matou Igor? , o primeiro policial com spoiler warning, que tem publicado muito lentamente. A verdade é que, com base na informação disponibilizada até agora no Ouriquense, o corpo ainda não foi encontrado.

 

Judeu, aka "o inventor"

 

O  inventor da vila é uma mistura do cigano Melquíades (Márquez) com o velho Atílio (telenovela O Casarão) que pretendia fazer ouro a partir do esterco que remexia numa banheira. Este homem julga que a solução para a máquina de movimento perpétuo é um lubrificante feito à base de um azeite por ele muito alterado, obtido a partir de umas oliveiras que só crescem nas redondezas. Noite sim noite não, galga o muro da casa dos meus tios para lubrificar os 3 baloiços de forma distinta, imprimindo-lhes depois exactamente o mesmo movimento. Apressa-se a deixar a casa e é da rua principal que mede o tempo que cada baloiço demora a parar. Noite não noite sim, trabalha até de madrugada com base nas observações feitas na véspera.

Possui uma boa biblioteca e uma qualquer relação com as libertinas de Lisboa, que ficará por desvendar. Exerce uma estranha atracção sobre o autor, que o próprio não consegue explicar.


Em 2011, o Judeu atravessa o monitor e começa a escrever os seus próprios posts, também no Ouriquense.

 

 

Ricardo Chibanga

 

De onde vem Ricardo Chibanga? O Ouriquense é o desenvolvimento possível de um texto fundador, Ourique 1979, que trago para aqui, ligeiramente modificado:

 

Tudo rodopia em torno de um cartaz de touradas, não sei se pelo vermelho tauromáquico, o negro do touro ou o olhar intenso de Ricardo Chibanga. A impossibilidade física de edificar uma vila a partir de um cartaz desaparece dentro da cabeça. No fundo, trata-se de uma reconstrução que tem muito de restauro. Imagine-se no cinema. O cartaz aparece a voar, depois a rebolar amarrotado pelos montados, até parar num descampado com a certeza dos pioneiros, porque pressentiu a frescura de um riacho ou uma futura concentração de caminhos. O cartaz abre então como uma flor e fica a pairar à altura dos olhos, a pedir parede. E logo surge a parede, depois a casa que a justifica, a rua, dez ruas, o reservatório de água, mais ruas, antenas de televisão, a câmara municipal ao cimo da avenida que ainda não nasceu. Os reflexos de luz na pela de Chibanga são animados pela canícula das três da tarde de Agosto, vencem o branco incandescente da cal e permanecem como o centro geométrico da vila, que alastra em todas as direcções. O desabafo do médico da vila-"Ah! Chibanga, o grande Otelo do redondel"- ecoa ainda, primeiro ampliado pela ignorância de quem levou muitos anos a entender tais palavras, e depois renovado, não em eco, antes como se o médico se tivesse cruzado comigo outra vez, ainda com o jornal debaixo do braço e a umas dezenas de metros do café: "Ah! Chibanga, o grande Otelo do redondel". Não fora pelo médico e Ourique podia ser uma vila de surdos, rica apenas nos sons dos animais: o latido do cão, o guincho final do porco a estilhaçar o frio de Dezembro, o chilreio das ninhadas das andorinhas nos beirais. O tempo passava e Chibanga, curtido pelo Verão e ensopado pelas chuvas, parecia agarrar-se ao cartaz com a tenacidade dos náufragos numa jangada à deriva. Mas a vila morreu aos poucos: primeiro os avós, depois a romãzeira, a pocilga sem porcos, a casa a acumular varizes, a distância que não parou de crescer. A morte de Chibanga está ainda envolta em algum mistério: teria sido uma criança a descolar o último farrapo de cartaz? Teria sido o desleixado dono da casa, quando ao fim de vinte anos voltou a caiar as paredes? Ou terão colado um cartaz por cima a publicitar algo alheio à planície (o circo Cardinalle)? Nunca mais voltei a passar naquela rua. Às vezes penso que Chibanga não teve um final inglório. Imagino o matador a morrer de pé, no momento em que a parede ruiu e não me apetece ir ver se tenho razão.

 

Chibanga é a única personagem do Ouriquense animada de algum realismo mágico. Ele aparece na vila como um fantasma condenado para sempre a procurar os pedaços rasgados do seu cartaz. Curiosamente, se todas as outras personagens são inventadas ou estão efectivamente mortas, no mundo real Ricardo Chibanga existe e gere um negócio de arenas desmontáveis. A errância da profissão do Chibanga de carne e osso torna possível o confronto na arena entre um Chibanga sessentão, à paisana, e o seu fantasma trinta anos mais novo, de traje de luzes, naquela que será a única cena do Ouriquense em que, periclitantemente sentadas na bancada da praça montada sobre andaimes, todas as personagens vão interagir, nem que seja por uma simples troca de olhares. A trama desembocará nesta cena e então o Ouriquense repousará em paz.

 

As libertinas de Lisboa

 

As libertinas de Lisboa existem para manter a pureza da relação com Tatiana. O autor faz com elas tudo aquilo que tem vontade de fazer com Tatiana mas julga adequado censurar. A iminência de um ménage à trois é a cedência do Ouriquense que lhe retira o estatuto de objecto artístico puro, isto é, alheio a propósitos mercantilistas. Mas na verdade, embora sempre descritas como um par, o autor interage  apenas com uma ou a outra e nunca as duas ao mesmo tempo (excepção feita ao primeiro encontro). Tal como o narrador, também o autor as trata como uma única pessoa. Daqui decorrerão algumas situações rocambolescas.

 

As libertinas de Lisboa foram abandonadas sem honras de morte trágica. Desapareceram simplesmente de Ourique, dado o insucesso do folhetim que animavam, os Diálogos Eróticos.

 

 

Jaime, o moço de recados

 

O único surfista vivo de Ourique é o elemento de charneira, embora tenha sido até agora muito poupado. Existe no Ouriquense um desejo de bucolismo, só que assistido por veios capazes de bombear alguma civilização na vila. Esta incapacidade de assumir o interior em toda a sua esplendorosa desolação perdeu entretanto alguma espectacularidade - houve a melhoria dos retransmissores, dos satélites e depois a extensão das redes de televisão por cabo; ainda assim, vem com a lucidez desencantada de quem sabe que a cidade chega hoje à vila com o que tem de bom e também a porcaria que lhe é característica, porque só o correio asseguraria que recebesse em Ourique apenas o tal "génio elegante". Nisso - e no português diminuído - o Ouriquense se distingue de A Cidade e as Serras. Não se acredita aqui que só o campo fosse capaz  de recuperar Jacinto, nem se acredita que Jacinto fosse capaz de viver só do campo.

O moço de recados traz a civilização.  Na era da tecnologia, ele é mais do que um capricho, é uma excentricidade que corporiza a função redentora do estilo. Porque a tecnologia só encanta quando ainda não existe - os cenários futuristas  - ou quando deixou de existir - o "teatrofone" que fazia as delícias de Proust.

 

As capacidades cognitivas de Jaime são um dos mistérios que animam o Ouriquense. É possível que estejamos perante um idiot savant. A partir de 2011, Jaime começa a ganhar alguns dos traços de personalidade do adorável Mario Incandenza, do romance Infinite Jest.

 

Emília

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Emília é a mais importantes das quatro personagens que realmente existiram em Ourique e a que tem já um papel definido na cena final: ela trará uma limonada a Ricardo Chibanga e preferirá saciar a sede ao Chibanga fantasma, deixando o Chibanga real a morrer de sede. Emília aparecerá quase sempre acenando com o afinco daquelas pessoas que imaginamos ficarem ainda a acenar muitos minutos depois de termos saído do seu campo de visão. Este capricho narrativo colocará enormes problemas técnicos ao autor, pois o narrador, ao contrário da criança que foi, quase nunca abandonará Ourique.

 

Honório

 

É a segunda das personagens reais em importância. Bêbado e com lugar cativo na taberna do Mira, Honório é uma das tentações negras do narrador, pois chegará a cúmplice e executor nos planos para a morte de Igor. Mas se a consciência do narrador acusa o fardo de Honório, o único peso que este sente - e que apenas lhe aflora o cachaço - é o do gume da espada de Dâmocles com que um juiz em tempos o sentenciou.

 

Luís

 

A terceira personagem real em importância, Luís é o menino que nunca viu o mar e com quem o narrador percebe os limites da sua capacidade de expressão, em tentativas reiteradas de lhe explicar por palavras e sem outros meios a sensação de fazer carreirinhas, uma cena decaldada do momento de Children of a Lesser God em que William Hurt tenta explicar a uma surda o que é a música.

 

Torpes

 

A quarta personagem real em importância, Torpes, irmão de Emília, é o homem com quem voltamos à pesca na barragem e que manifesta uma notável veia aforística sempre que trespassa um peixei-rei com o anzol. Na edição em livro, muitas das Lições da Planície farão parte das intervenções de Torpes.

 

Gaspar, o cinéfilo, aka "o rapaz do cineclube"

 

O rapaz do cineclube representa o Ourique positivo, embora acuse também uma rebeldia a espaços niilista. O cinéfilo, que gere um cineclube alimentado por cópias de filmes roubadas nos cinemas da capital, está para a oferta cultural em Ourique como Robin Hood estava para o alívio fiscal das populações mais carenciadas de Nottingham.

 

Maik Magic (e Rosy)

 

Maik Magic (e Rosy) marcam um instante fundador no Ouriquense.

 

 

O ladrão de cuecas

 

Trata-se da única personagem resgatada a pedido dos leitores e servirá de pretexto a uma trama policial. Desaparecido durante mais de um ano, o ladrão de cuecas animará em breve um folhetim escrito ao jeito do blogger António Figueira, um especialista no género que traça a bissetriz entre o romance policial e o jornalismo de investigação criminal.

 

Adriano

 

Filho do Judeu. Não sabemos que futuro lhe dar.

 

Fausto

 

Inventando em Janeiro de 2011, para conter a contaminação das outras personagens com o desejo de intervir e reagir à actualidade, Fausto é o responsável pelo braço politicamente armado do Ouriquense, até 2011 um blog de pendor niilista-blasé, ateísta-não-praticante e melancólico-estóico. Fausto é o veículo para expressar ideias que o autor tem por válidas, mas que o envergonham pela ingenuidade, que lhes reconhece , e a possível estupidez, que admite.

 

Nuno Salvação Barreto

 

Ao contrário de Ricardo Chibanga, o fantasma de Nuno Salvação Barreto não tem qualidades mágicas, nem faz parte do enredo. No ecossistema estratificado que compõe o Ouriquense, O eremita está no topo, depois o Judeu, quando escreve na primeira pessoa, depois Salvação Barreto, quando censura o que foi escrito, depois as personagens, que ignoram a existência do Ouriquense.

 

Rita Pinamona

 

O segundo grande amor do Eremita e uma paixão epistolar. Rita Pinamona nasce na Primavera de 2011 e não chega ao Verão desse ano, mas em três meses acumula-se um acervo de cartas que a manterá como personagem até ao fim do Ouriquense.

 

 

LUGARES

 

A vila

 

Um sítio feio e onde não acontece nada.

 

O supermercado

 

Tatiana trabalha num Pingo Doce e é aí que o narrador normalmente se cruza com ela. A descrição já foi feita: "trata-se de um espaço sobredimensionado, à entrada da vila, que reproduz em Ourique a mesma sensação de total insignificância que experimentei nas grandes superfícies comerciais das cidades americanas. Curioso isto de ter sentido pela primeira vez a angústia da pequenez cósmica naqueles enormes supermercados, no IKEA de Nova Jersey, numa farmácia na periferia de algum subúrbio de alguma cidade de um certo estado (Florida?),  e não no planetário nacional onde me levavam quando criança, nem no que depois visitei pelo meu próprio pé, em Nova Iorque; só mesmo no Pingo Doce de Ourique recuperei a escala cósmica. Enfim, de lá trago também os dois litros diários de gaspacho de pacote - vivo a gaspacho e pão, o meu tracto intestinal é como uma viela de Buñol em perpétua última quarta-feira de Agosto (a Tomatina). Mas não trouxe ainda a Tatiana. Das 5 ou 6 empregadas com quem me cruzei, nenhuma tem um rosto passível de ser amado"

 

 

O cineclube

 

Por motivos óbvios, não estou autorizado a revelar a localização do cineclube, local onde se assiste à mais recente oferta cinematográfica, bem como a clássicos e obras entretanto esquecidas, num ambiente de clandestina cumplicidade e em que é permitido fumar. Os filmes são projectados sobre uma parede que é caiada todos os anos pelo rapaz do cineclube.

 

Cotovio

 

É no monte arruinado, à sombra de um plátano, que o narrador lê os grandes clássicos e obras de menor alcance, guardadas em tupperwares. É também no monte que se dedica disparar com uma espingarda de pressão-de-ar sobre comprimidos de composição conhecida e posologia incerta. As alterações no caudal da ribeira do Cotovio, uma espécie de rio Sado incipiente, servem para marcar a passagem do tempo.

 

O cemitério

 

O cemitério de Ourique lembra uma pedreira de mármore graffitada com as típicas inscrições fúnebres. A compilação dos nomes de todos os ouriquenses falecidos é um dos passatempos do narrador, que inspecciona e fotografa todas as campas, mas evitando sempre o confronto com o jazigo da sua família. Será Ricardo Chibanga que o levará pela mão a perfilar-se diante dos seus antepassados, obrigando-o depois a proferir umas quaisquer palavras simpáticas.

 

A taberna do Mira

 

Com mulheres nuas  nas paredes e copos de vinho ao balcão, na taberna do Mira todas as dimensões do espaço eram preenchidas por tentações masculinas, vigiadas por uma enorme cabeça de touro. A luz escasseava e entrava sobretudo pelas portas, criando uma atmosfera muito difícil de reproduzir num estúdio de cinema. A luz rasteira acentuava o escavado dos rostos e o contraste do vidro translúcido sobre o mármore opaco. A memória desta taberna, hoje encerrada e nas mãos de uma imobiliária, é imprecisa - não é seguro que o balcão fosse de mármore. O primeiro encontro com o fantasma de Ricardo Chibanga terá lugar diante da porta fechada da taberna e o narrador fará uso de todos os seus recursos para provar que lá dentro se encontra a prova perdida de que Ourique foi vila tauromáquica.

 

A casa dos avós

 

Um casarão a apodrecer no centro da vila e onde o autor passou férias na infância. 

 


 

Castro Verde

 

É a vila rival, o instrumento a que o autor recorre para limitar a simpatia que os nativos poderão sentir pelo Ouriquense.

 

A romãzeira

 

É a única árvore do quintal dos avós que resiste à reconquista do quintal abandonado pela natureza. 

 

LINHAS DIRECTRIZES

 

O amor a Tatiana

 

O amor a Tatiana é a grande força motriz do Ouriquense, na sua primeira fase. Mas a cada sucessiva gravidez da ucraniana esse amor vai esmorecendo e há até razões para pensar que o ódio a Igor é uma sensação mais completa e fundamentada. 

 

Actividade remunerada


O narrador não trabalha desde Julho de 2008 e a sua conta bancária vai minguando a olhos vistos. Essa pressão leva-o a tentar encontrar uma fonte de rendimento, mas sempre sem sucesso.

 

Vasco Graça Moura

 

Um dos poucos traços comuns a BW, o projecto ultra-secreto, e o Ouriquense é o fascínio por Vasco Graça Moura, o tradutor, poeta, romancista, intelectual do cavaquismo e defensor da língua e do património. A partir de 2011, o narrador fica obcecado com os métodos de trabalho do prolífico autor e pretende saber se ele fez efectivamente todos aqueles versos decassílabos ou se tem uma equipa que trabalha na obscuridade. 

 

Carreira de Tiro

 

A carreira de tiro, em rigor, mais não é que uma zona no monte com uma azinheira de ramos cansados, bons para suportar garrafas e outros alvos, nomeadamente comprimidos e drageias. Simboliza a tensão latente com o universo dos psicofármacos.

 

OFICINA LITERÁRIA

 

O projecto ultra-secreto de código "BW"

 

O Making of de um grande romance luso, que também tem a sua tábua de personagens

 

Um tributo a John Coplans


Uma autobiografia do corpo, entre a puerilidade do ginásio e a dificuldade de domar a Apercepção de si e Corpo em Maine de Biran.

 

O livro de todos os desportos

 

Uma colecção de histórias de desporto, a lançar em volumes de quatro em quatro anos, coincidindo com os jogos olímpicos: "Ases, para que vos quero?" (ténis), "O benjamim dos Rasmussen" (tobogan),"Uma namorada para Kim Myong-Guk" (halterofilismo), "A revolta dos fiscais de linha" (futebol), "A décima primeira maratona de Samuel Makau"(atletismo), "O nosso antídoto é o teu veneno" (futebol)...

 

Viagens

 

Relatos de viagens inventadas: Mustang (um coast to coast), uma visita ao Gana  e Machu Picchu y nada más. Ainda não as consegui vender. 

 

Lições da Planície

 

Aforismos e afins, com ligação a uma qualquer experiência que não está a mais de 48 do acto da escrita. Periodicamente, é feita uma selecção em séries de 10, os Decálogos da planície.

 

Quem matou Igor?

 

Um policial com spoiler warning e um pretexto para visitar Espanha.

 

Geodésicas

 

Uma tentativa de dar ao impulso inicial as condições necessárias para mais nada ser preciso, atribuindo a um lugar propriedades sobrenaturais:

 

"Só que no outro dia, quando descia do monte encimado pelo marco geodésico e caminhava ladeado de arbustos que se enchem de flores brancas na Primavera, flores grandes, capazes de atrair abelhas e até apicultores, senti ali, ali mesmo, não uma promessa de Primavera mas algo que, à falta de outro termo, eu diria, sem mais demoras, poder ser descrito como "inspiração". Se sempre pensara que a inspiração descia sobre os homens vinda dos céus, experimentei algo distinto: a minha inspiração subiu-me pelas pernas e vinha tão carregada do cheiro aos actinomicetos da terra molhada que, em rigor, também me entrou pelas narinas. Estaquei logo, como se fosse um  descobridor de água por radiestesia que, de súbito, sente vibrações no seu graveto em forquilha. Sentei-me num pequeno afloramento xistoso, senti a pedra quente, etc., tirei o bloco de notas e comecei a escrevinhar impacientemente, freneticamente e depois obsessivamente (...). Nunca nada assim me havia acontecido. Há homens que têm dias triunfais; eu tive umas boas 3 horas triunfais. E materializou-se uma história no fim. Uma história em que não havia sequer pensado até então, nem mesmo quando estava junto do marco geodésico, mas que não é filha da escrita automática. A história não tem qualidade para se apresentar ao público e só a sua génese importava contar".

 

A verdade é que só ainda foram paridas duas geodésicas: A Educação Pornográfica de Inácio Ramalho e Ainda há Tubarões na Ponta do Sol.

 

Leituras sob o plátano

 

Moby Dick, Cartuxa de Parma, Guerra e Paz, Infinite Jest, Quijote, Recherche, Pais e Filhos.

 

01
Ago11

Turning point


Eremita

De repente, um homem percebe que deixou de construir uma carreira e passou a lutar por um emprego. É a epifania laboral mais intimamente triste de todas, mas também pode ser a mais libertadora.

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