Jonh Coplans
Dedicado ao Tiago Cavaco
13.05.08 A História discrimina os magros. Se pesássemos todas as estátuas, com as devidas correcções para o tamanho natural e eliminando a densidade dos materiais, para que um metro cúbico de mármore, cobre ou terracota pesasse o mesmo que idêntico volume preenchido com pedacinhos de um cadáver fresco triturado *(não me ocorreu outra imagem porque não há contorcionismo capaz de expulsar todo o vazio de um cubo), e se às representações bidimensionais da pintura acrescentássemos o volume sugerido pela perspectiva, mesmo desprezando a tendência geral ao longo da história da humanidade para um aumento da altura e a tendência nas sociedades ricas para a obesidade, creio que o peso médio da figura humana na estatuária e nas representações pictóricas ultrapassaria o peso médio da população mundial. É fácil pensar em imagens imortalizadas num qualquer material de corpos ideais (dos gregos a Michelangelo, por exemplo). Mas também é trivial descobrir gordas e gordos mesmo gordos: os símbolos de fertilidade do Neolítico, certas representações de Baco, Buda, as mulheres pintadas por Rubens, as estátuas de Balzac, as baigneuses de Cézanne, as formas redondas de Botero, as camponesas saudáveis de Álvaro Cunhal, etc. A dificuldade está em dar com os muito magros. Talvez Jesus Cristo na cruz, embora parte da magreza lhe venha da postura, que tende a projectar para fora as costelas da caixa torácica; talvez alguns rostos alongados nos quadros de El Greco, mas quase nunca corpos nus. Com absoluta certeza, só me ocorre "o homem que anda", de Alberto Giacometti, e as representações de Don Quijote. Mas as estátuas de Giacometti lembram um homem normal que sofreu uma tortura por estiramento dos pés à cabeça e resistiu, não são representações realistas de um homem magro. E Quijote aparece quase sempre junto do gordo Sancho, pelo que o par se anula. A arte não nos preparou para o confronto com os magros. Nem a vida, apesar das greves de fome e do avô que lentamente vai sendo vencido por um cancro. As fotos dos sobreviventes dos campos de concentração nazis são perturbadoras, mas de algum modo também pioneiras, como se tivesse sido preciso esperar até 1945 para a magreza ser exposta ao mundo.
Os muito magros tendem a aparecer nos ginásios. Sei do que falo. Vamos com roupas largas e evitamos olhar para os outros, inclusive os que se parecem connosco, porque não queremos fazer do ginásio uma reunião de magros anónimos - "olá, sou o Carlos [e o coro: "olá, Carlos] e peso 58 kg". O olhar só não resiste aos corpos daqueles que eram como nós e venceram a magreza ("I'll beat this" - nunca se lê nas revistas), porque reconhecemos esses corpos como os ex-presidiários se topam e, não sendo os mais belos, são os únicos com que podemos sonhar. Mas esta lucidez vem acompanhada de uma ocasional tara. No meu caso, é associar a fragilidade física à fragilidade psicológica. Os baixos podem sempre recorrer ao exemplo de Napoleão, apesar da incerteza sobre a real estatura do homem. Os magros podem recorrer a Gandhi. Só que tudo seria mais fácil se não fosse preciso nenhuma figura inspiradora, isto é, se não fosse magro.
Ontem, enquanto trabalhava os tríceps, reparei nos ombros de um preto que corria na passadeira rolante de costas voltadas para mim. Eram ombros possantes, amplos e revestidos por músculos harmoniosamente trabalhados. Sucedeu então algo estranho: vesti aqueles ombros e recuei no tempo. Revisitei todos os momentos importantes na minha vida, as encruzilhadas que definiram o meu caminho, perguntando com alguma persistência se aquela armadura de carne que agora envergava influenciaria o meu percurso. Não só se me teria feito um homem diferente, mas sobretudo se me teria feito um homem melhor, mais íntegro, corajoso e bom. Por exemplo, se me teria levantado mais vezes e pedido a palavra nas RGAs. Se teria sido mais ousado nas minhas escolhas profissionais. Se teria sentido menos medo de falhar. E a resposta a todas as perguntas foi "sim". Tenho perfeita noção da falta de fundamento que há em fazer equivaler a fibra moral às fibras da musculatura estriada, mas há um tipo de pensamento para uso individual que tolera alguns saltos lógicos; reformulando, que se estrutura com base nesses saltos lógicos, fazendo disso o seu método, como o ficcionista por vezes provoca uma interferência inverosímil na realidade, corrompendo uma qualquer lei da física, para poder chegar a um determinado lugar e depois recomeçar a escrever sem mais desrespeitar a ordem do mundo, ou como o homem de fé, que parte de uma premissa que não ousa questionar e só se preocupa então com as conclusões lógicas que daí resultam.
É por isso que nas inúmeras vezes que ouço "estás mais magro" sinto uma reprimenda vinda de quem provavelmente me estima e se preocupa com a minha saúde ou a minha aparência. Não que a minha admiração pelos corpos insensatamente musculados vá além do mero reconhecimento da disciplina que aquilo implica e se transforme em veneração por um traço de personalidade que estime poder medir a partir do perímetro do antebraço. Não que ao cruzar-me com alguém mais magro do que eu sinta a vil satisfação de ter descoberto que, afinal, não sou o último da classificação por qualidades humanas. É apenas por dar tanta importância a recuperar os 6 kg entretanto perdidos, sobretudo quando tal acontece em momentos de quebra anímica. Talvez porque, apesar da dificuldade, recuperar peso é mais concretizável do que expiar uma culpa. Eis o segredo. Um ritual regenerador a fazer as vezes da redenção impossível. Esta absurda frenologia que criei funciona como estratégia adaptativa.
* De um ponto de vista científico, esta imagem falha, porque o corpo humano tem cavidades essencialmente ocas, mas teria sido inoportuno discutir este detalhe.