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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

27
Fev11

Marcos


Eremita

 

Entretanto, chegou o Watermark, de Brodsky. É um livro suspreendentemente pequeno, o que me encheu de alegria. Creio que decidi como terminar este dia. 

 

27
Fev11

Noivado em S. Domingo versus A Especulação Imobiliária


Eremita

Creio que nunca li ao mesmo tempo dois livrinhos tão contrastantes. Noivado em S. Domingo (1), de Heinrich von Kleist, são 65 páginas que consumi de uma assentada, um verdadeiro page turner, parco em digressões e descrições, cheio de exotismo, tensão racial e sexual, terror, dissimulação, violência, paixão, morte, traição, vingança e [spoiler warning] a habitual morte trágica dos dois amantes por causa de um equívoco (aqui em versão assassínio-e-suicídio e não duplo-suicídio, o que torna o final mais próximo de um caso de violência doméstica do que da referência incontornável de Shakespeare). A Especulação imobiliária (2), de Italo Calvino, é exactamente o contrário, uma tentativa consciente de fazer literatura a partir de uma matéria-prima de emoções paupérrima e de um contexto insuportavelmente aborrecido (todos os trâmites associados a uma obra), apenas salva por uns espasmos ensaísticos e algumas descrições conseguidas. Pode haver um equívoco grave da minha parte, se nas últimas páginas de Calvino um dos serventes der com a picareta na cabeça do especulador imobiliário e a virgem que até agora só pestaneja conhecer os prazeres do sexo numa divisão ainda por rebocar, pois a verdade é que este livro me acompanha há semanas e ainda não o consegui terminar. Tudo isto é surpreendente, pois à partida eu torceria pelo projecto de Calvino. Consequências? Kleist troca de posição com o italiano na grelha de leitura programada até 2015. Sou pela flexibilidade e a meritocracia. 

1. Tradução de Maria Amélia Cruz, Relógio D'Água.

2. Tradução de José Colaço Barreiros, Teorema.

26
Fev11

Tempus fugit


Eremita

 

O grande falhanço do Ouriquense, entre outros, foi não ter conseguido mudar a idade do seu protagonista. Inventar uma geografia é tão fácil que quase desisti da própria vila, mas sempre que tento envelhecer-me sinto que todo o edifício colapsa. Não são só os anacronismos que emergem, mas todas as contradições que resultam da pertença a uma geração. É-me impossível escrever um diário simultaneamente trasladado no espaço e no tempo. Para brincar com o tempo, creio que só mesmo escrevendo um romance e pode ser que esta frustração vivida no blog se transforme em força motriz para o BW.

26
Fev11

Pavese sem paradeiro


Eremita

Perdi o diário do Pavese. Ou melhor, na boa tradição da RTP a preto-e-branco de setentas: Desapareceu de sua casa, no dia 4 de Fevereiro de 2011, o Diário de Pavese pertencente ao Eremita. De capa esverdeada, não tem a indicação do nome do dono, nem qualquer passagem sublinhada, pelo que a única prova aproximada de pertença será a sua localização num raio de 20 km da vila de Ourique.

Quem desaparecia sofria de distúrbios psíquicos ou então era uma criança ou um adolescente cuja fuga de casa, ainda que frustrada, evitou problemas psíquicos futuros. Em algum momento se decidiu que aqueles anúncios eram impróprios para a televisão e, subitamente, as pessoas deixaram de desaparecer, porque o que não aparece na televisão não chega a acontecer.

Mas voltemos ao diário de Pavese. Creio que houve mão do Criador neste desaparecimento. Aliás, tenho notado que a vida fora das cidades nos restaura alguma crença no sobrenatural ou até no divino, e que, em teoria, uma flash mob de ateus me irritaria mais do que uma procissão - excluindo, é claro, aqueles espectáculos gore que se fazem nas Filipinas por altura da Páscoa. De ateu convicto, passei a agnóstico. E não sei onde isto vai parar. 

25
Fev11

Passion cleanser


Eremita

Tatiana é cada vez mais uma miragem. Ou a miragem de uma miragem, para ser mais exacto. Mas imaginemos o encadeamento de mimo em que o dedo acusatório que ele aponta a um casal que resiste por comodismo passa a um polegar de aprovação quando o casal sai de cena e surgem duas personagens a representar um amor que não se concretiza e assim se perpetua. Convenhamos que o mimo é parvo - e não apenas por ter sincronizado ao gesto da sua mão um daqueles sorrisos demasiado expressivos num rosto pintado. Porque nada nos garante que o comodismo do casamento censurado não seja também o que sustenta o amor impossível; que se há medo da solidão a manter duas pessoas juntas, não exista também medo do vazio quando acaba o amor impossível; que o hábito de já não ser amado pouco se distinga do de nunca ter sido correspondido.

 

Esta noite pensei na fugaz Mila Jovovich que um dia iluminou Ourique. A imagem que se segue não é elegante e pode transmitir um rancor que na verdade já não me anima e uma misoginia que preferia explorar em consciência de um modo mais subtil, mas tem uma exactidão que me parece conseguida: quando penso naquele clone da Jovovich é porque estou a fazer o reset do sistema, como se tal imagem estivesse para a paixão como o gengibre para o sushi. Pode ser assim tão simples? Vamos acreditar. 

 

 

 

 

25
Fev11

O que vale um título?


Eremita

Já aqui escrevi sobre o principal contributo de Cintra Torres para Portugal: a sua tese de que não há bons títulos de romance com verbos. Esta verdade propagou-se com uma dinâmica viral nos círculos intelectuais lusos e assistimos esta semana a um dos seus efeitos mais subtis, que só os observadores atentos das finas engrenagens que regem a cultura portuguesa podem apresentar como exemplo de causa-efeito. Refiro-me, como alguns certamente  já perceberam, à saída de Inês Pedrosa (autora dos títulos Fazes-me Falta e Fica Comigo) do Expresso. Ainda a corroborar a importância de Cintra Torres, é de frisar que Pedro Mexia chega ao Expresso sem nunca ter usado um verbo nos títulos da sua já extensa obra (Duplo Império, Em Memória, Avalanche, Eliot e Outras Observações, Vida Oculta, Senhor Fantasma, Menos por Menos, Poemas Escolhidos, Primeira Pessoa, Nada de Melancolia e As Vidas dos Outros).

 

Ainda sobre títulos, mas sem querer fazer disto uma regra, porque mais não é do que uma mania minha, tenho fascínio por títulos pouco literários, antíteses de um - digamos - Segura-te ao meu peito em chamas (de Cachapa, homem que em breve também será vítima da maldição de Cintra Torres, a menos que produza depressa uma série de títulos com substantivos que remetam para o imobilismo físico ou contemplativo: Estaca, A inércia de Josefina, Pé de chumbo e olho de vidro, enfim, até um A Imponderabilidade das Nuvens). O meu subgrupo preferido entre os títulos pouco literários é o dos que remetem para as ciências exactas. Não me refiro ao A Solidão dos Números Primos, um belo e irreprensível título, mas profundamente literário. Penso antes em A mecânica dos fluídos, de Eduardo Prado Coelho, ou em Tabela Periódica, de Primo Levi. Num outro subgrupo aparecem os títulos com referências ao mundo empresarial, negócios, finanças, etc. Foi exclusivamente por esse motivo que comecei a ler A Especulação Imobiliária, de Italo Calvino. E é até provável que seja ainda exclusivamente pelo mesmo motivo que o acabe.

 



23
Fev11

Let's cut the crap


Eremita

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Styron, Lewis Wolpert e Andrew Solomon. Sobre um tema que me interessa ligeiramente. Prometo uma amálgama que junta estes três livros, (15 000 caracteres), embora não dispense a leitura dos originais. Os leitores conhecem-me: o Ouriquense cumpre sempre, só não se sabe quando.

 

22
Fev11

XVII


Eremita

 

 

Jonh Coplans

 

10.05.08 Se é verdade que a assimetria muscular traduz sempre um desvio ao plano do criador, que nos fez tendencialmente simétricos, quando não é imposta pelos azares da genética tenderá sobretudo a expressar uma convicção. Tanto o lançador de dardo, em Astérix aux Jeux Olympiques, como os rapazes da academia de ténis de Infinite Jest têm um braço mais hipertrofiado do que o outro. Mas Astérix são bonecos e a observação atenta dos tenistas que aparecem na televisão a trocar de camisa não revela grandes assimetrias. Parece haver um princípio de vasos comunicantes rege os músculos simétricos, mas não os músculos de grupos distintos. Tal simetria, que rege também a minha parca musculatura, de algum modo me entristece, pois parece indicar que não fui capaz de fazer com o corpo nada que não estivesse absolutamente previsto pela natureza. Como máquina, limitei-me a cumprir o que se esperava de mim. Ando, corro, agarro em objectos, reajo a estímulos musicais, etc. O único conforto que ainda vou tendo, creio que um segredo que ainda não partilhei, é quando junto as mãos, palma com palma, como se rezasse, mas apenas para comparar o volume do músculo adutor do polegar das mãos esquerda e direita. Ainda se nota uma diferença de volume. Pode já ser só a tal memória dos músculos de que alguém me falava ou a impressão de imagens passadas, que se confundem com a actual, à custa de repetir este gesto tantas vezes e tão próximo dos olhos que o fundo fica sempre desfocado, mas ainda me parece que o músculo da mão direita é ligeiramente mais forte do que o outro e isso enche-me de uma alegria absolutamente intransmissível (e se fosse sensato, até inconfessável), que mistura o regresso à adolescência e ao estudo da guitarra, no meu quarto, com a garantia de que, afinal, construí uma idiossincrasia que me afastou do plano do criador.


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