Bouche à l'oreille
Eremita
Ouvi o primeiro capítulo de Lolita no último domingo, deitado de barriga para cima, contemplando a paisagem neutra de um céu limpo invadido pela copa de um plátano. Fazia sol e havia no ar um aroma a poejo, vagamente estival. Acabo de ouvir o último capítulo, dentro de casa. Chove. Entre estes dois momentos, fui conquistando Lolita enquanto cortava cenouras, escorria a água a ferver da minha massa ± 3' al dente, pedalava para o monte do Cotovio e de volta à vila, esperava que o Judeu regressasse à sobremesa, inspeccionava a secção de cereais do Pingo Doce, passeava no cemitério de Ourique, e - creio que na terça-feira - até enquanto defecava, pois optimizei finalmente uma técnica para evitar enleios entre o fio e o cinto solto das minhas calças murchas ou partes da minha anatomia, fazendo este último caso de acidental garrote capaz de induzir calafrios só de o imaginar, o que talvez explique a relutância em me despir se tivesse headphones nos ouvidos, pelo menos desde a época do walkman. Embora transformada, esta velha fobia sobreviveu ao mencionado progresso da técnica na recusa sempre actual em baixar as cuecas se houver um gato no quarto. Mas voltemos ao tema.
A audição deste primeiro capítulo foi uma das grandes experiências literárias de 2010. Reconheço que tenho dado conta de um número inquietantemente alto de grandes experiências literárias, passível de despertar a dúvida sobre se terei aprendido a ler em 2009, mas esta não foi sequer a minha primeira experiência com audiolivros, o que exclui o efeito da novidade. Iniciei-me com os Works for Radio de Samuel Beckett, tendo escapado traumatizado, ainda que aparentemente ileso. Só mesmo esta voz - "Here, at the age of 39, I began to be old" - me deu alento para tentar uma segunda experiência. O que aconteceu depois foi uma genuína epifania. Bem sei que se abusa mais desta palavra do que Humbert Humbert abused himself enquanto pensava em Lolita, mas meço-a bem, pois pela primeira vez senti que o cânone literário era abordável sem que precisasse de ser julgado noutro país e condenado a várias prisões perpétuas, a mais eficaz das aproximações à imortalidade, delirante como todas, é certo, mas que neste caso concreto se traduziria até num aumento real do tempo de leitura - de resto, é para mim sinal de podridão que haja mais pivôs de telejornal a publicar romances do que presidiários, grupo onde se encontra gente com vagar, experiência de vida e grau de alfabetização suficiente. Senti que seria possível uma existência normal, talvez até um regresso a Lisboa e à cidadania, se Tolstói viesse a ser um murmúrio contínuo que eu confundiria com a voz da minha consciência (evitar Céline) ou que a dominaria nos seus momentos mais reivindicativos, e se pudesse colmatar todas as falhas de leitura com a rapidez de um Novas Oportunidades. Mas num momento sem headphones (talvez no banho), logo a consciência - ou seja, a minha, não a de Nabokov - começou a pedir contas, que são precisamente mesmas que pedimos ao Novas Oportunidades: é justo? E, sendo justo, é de fiar?
A minha reserva moral cedo desapareceu. Imagino que o consenso seja impossível, mas creio ter conquistado a posição confortável em que, com a segurança do xeque-mate, transferi o ónus da explicação para quem pensa que a audição de um livro não dá ao ouvinte a autoridade de um leitor. Limito-me pois a relatar como cheguei aqui. De onde vem este presumível défice de autoridade? A autoridade que nos interessa é a que funde competência com mérito, não a de um qualquer ascendente hierárquico. Adio a questão de saber se a competência para comentar uma obra que entre pelos olhos é idêntica quando a mesma obra entra pelos ouvidos, para podermos discutir primeiro o mérito. Há mais mérito em adquirir hábitos de leitura em bibliotecas públicas do que afundados na poltrona de couro da recheada biblioteca do papá. Há mais mérito em começar tarde do que em beneficiar da orientação de um tutor quando ainda se é criança. Há mais mérito quando se aprende a língua de propósito para ler a obra na sua versão original do que quando se lê a obra ou uma sua tradução na nossa língua. Mas não há mais mérito por se ler a edição de bolso em vez da de capa dura - não vale a pena contribuir para estas fantasias. Os exemplos apontam no mesmo sentido: há mérito no esforço e gostamos de associar mérito às conquistas - é por isso que dinheiro ganho sabe melhor do que dinheiro herdado, mesmo quando a sogra que faleceu honrou o seu estereótipo. Como o audiolivro é de consumo muito mais fácil do que o respectivo livro, daqui decorre que o ouvinte perde para o leitor no mérito que vem do esforço. Recuperar este terreno não é tarefa que se substitua por sufismos, mas requer uma acção combinada assente numa deontologia sem cedências ao facilitismo. O ouvinte tem o dever moral de estar mais atento do que o leitor e só com esse esforço corrigirá a natural maior passividade da audição face à leitura. O ouvinte sabe que o audiolivro acelera a conquista da obra, mas deve associar essa rapidez à audição repetida de partes de capítulos ou capítulos inteiros, o que lhe prolongará o gozo e aumentatará o tempo de leitura, mas sem eliminar por completo a economia de tempo. O ouvinte deve também ser sensato e associar a escuta à total inacção ou a rotinas que lhe exijam pouco dos sentidos, como correr, cozinhar e desempenhar outras tarefas domésticas, guiar fora dos centros urbanos, assistir a jogos de futebol com sucessivas perdas de posse de bola ou falar ao telefone com alguém que só pretende fazer-se ouvir. Cumpridas estas recomendações, haverá mérito pelo esforço na escuta. Acresce que o mérito da audição beneficia ainda de uma legitimação histórica e de uma aproximação ao autor que atenua a interferência do leitor sobre o ouvinte. Vamos decompor.
Quando uma criança vê com olhos de ver as primeiras letras, já aprendeu o essencial da língua com as orelhas. A língua não começa no desenho das letras, mas no Morse natural com que o estribo, martelo e a bigorna do ouvido médio despertam a gramática inata, essa desmazelada (Chomsky). Este primado da audição sobre a visão é uma inevitabilidade neurofisiológica e deveria ser suficiente para acabar com o estatuto subalterno que a audição tem face à leitura. Mas também a História dos homens e a história de cada homem nos lembram que o primeiro contacto com a literatura se faz escutando. Os contos começaram - lá está - por ser contados. Esqueçam a fogueira, não interessa se havia uma roda à volta da fogueira, só uma piromania colectiva explica a obsessão com o raio da fogueira e o domínio do fogo não precedeu necessariamente a invenção da ficção, que terá nascido quando um caçador transformou o medo que o fez fugir da presa num relato oral de grande bravura e infortúnio - nesse dia, há muitos anos A.C., a acreditar na história, o tigre-dentes-de-sabre, ferido e em fuga depois de uma feroz luta, pôde salvar-se porque uma árvore de dimensões pré-históricas, enfraquecida na noite anterior por um raio, tombou sobre o caçador, deixando-o durante largas horas debaixo de uma ramada sob tensão, o que explica que tivesse as peles que o cobriam todas mijadas quando finalmente regressou para junto dos companheiros, depois de - hercúleo, se me permitem o anacronismo - se libertar sozinho - a história da literatura seria depois uma longa aprendizagem da verosimilhança. É também ouvindo que as crianças têm o primeiro contacto com a literatura e à imagem clássica do pai ou da mãe lendo até o filho se deixar tomar pelo sono, permito-me acrescentar uma outra, mais íntima mas provavelmente não tão rara assim, que é a do pai declamando poesia, but softly, diante da barriga nua da sua mulher grávida. É a tudo isto que a legitimação histórica - e até ontogénica, como vimos - se refere.
A intromissão do leitor no que deve idealmente ser apenas uma relação a dois, entre autor e receptor, apenas pode ser atenuada, mas se houver esse cuidado tudo correrá bem. Relembro, porém, que em qualquer obra traduzida a figura tradutor também se intromete e que só a habituação e um profundo desejo de acreditar explicará que seja maior o desconforto causado por um leitor, obrigado a respeitar o texto original, do que por um tradutor, obrigado a tomar opções a cada palavra que traduz, o que no caso de Guerra e Paz andará por volta das 460 000 decisões pessoais, um teste de tolerância a que nem a pessoa com quem se celebra umas eventuais bodas de prata nos sujeitaria. Assim se prova que está mais próximo do autor o ouvinte que o oiça na sua língua original do que o leitor que recorra a uma tradução. Já a audição de uma obra traduzida acumula intromissões, passando-se de um convívio a três para uma multidão de quatro (autor, tradutor, leitor e ouvinte), o que deve ser sempre um derradeiro recurso. Quais são então as grandes recomendações? Apenas três. O ouvinte deve escolher sobretudo obras lidas na língua em que foram escritas, pelo que antes se explicou, que - idealmente - não deve ser a língua materna do ouvinte, pela simples razão de sermos muitos mais tolerantes com as línguas estrangeiras do que com a nossa própria língua; mais facilmente se adopta a voz de Jeremy Irons do que a voz de Ruy de Carvalho, mesmo tratando-se de vozes com uma excelência de timbre e dicção equivalentes. O ouvinte deve também escolher um leitor que esteja tão próximo do autor quanto possível. Se o leitor for o próprio autor, a situação é perfeita (excluindo alguns casos óbvios de ruído, como Vasco Pulido Valente), para dela se ir afastando progressivamente com a dliuição dos graus de parentesco genético e social. E, por fim, o ouvinte deve escolher alguém que lhe agrade, pouco importando os motivos. A Recherche são mais de 100 horas de escuta e na compulsiva roleta-russa da acústica que vamos jogando já existem balas a mais no tambor, pois são incontáveis as pessoas de voz insuportável que temos de aturar. Não importa sequer se o gozo que a voz lhe dá resultar de circunstâncias alheias à literatura - parecenças? - e explicáveis - que Nabokov me perdoe - por conceitos psicanalíticos.
Sobra a competência. Não é uma discussão estanque ao que já se adiantou. Se forem cumpridas todas as recomendações anteriores, prometo que a obra perdurará na memória do ouvinte o mesmo tempo e com a mesma clareza que a lembrança produzida pela leitura. Aliás, arrisco-me até a dizer que a impressão é mais forte, embora não possa adiantar uma prova formal. Tal prova é impossível de se produzir a sós e implicaria recrutar dois grupos de indivíduos com o cuidado de normalização de variáveis dos bons estudos das ciências sociais, para que um grupo lesse e outro ouvisse a mesma obra, sendo os indivíduos depois testados para o conhecimento que retiveram dessa experiência. É possível que tais dados existam já e - volto a frisar - apenas posso adiantar a minha surpresa se os ouvintes ficaram aquém dos leitores.
Deixo os aspectos práticos (sites e truques) para ocasião futura. E muito mais há para contar: as dificuldades que as longas orações subordinadas e o vocabulário de Nathaniel Hawthorne colocam ao ouvinte; o amadorismo e excesso de boa vontade de alguns leitores, capaz de produzir produtos que abalam o multiculturalista mais empedernido, como este Quijote lido por um mexicano; a absurda importância que se dá ao suporte de leitura, cristalizado no confronto entre o livro de papel e o monitor, que interessará aos jornalistas, aos editores e aos bibliófilos, mas que é muito menos relevante para a literatura do que o confronto entre o livro (de papel ou digital) e o audiolivro; a fraqueza da lusofonia neste mundo novo da literatura acústica; os efeitos da curiosa aliança de circunstância entre cegos e amantes dos audiolivros; o hábito de adormecer com os headphones, que faz das proustianas voltas na cama um enforcamento em potência, embora, para meu desconcerto, este possível enleio com o meu pescoço não me preocupe tanto quanto me preocupava o outro. Boas audições.