Em Lisboa, passei por um período muito rico em cortes de relações. Cortar relações só custa à primeira e deve ser um pouco como matar, apesar das diferenças de grau - a comparação não é inusitada, pois é costume dizer-se "para mim, morreste". O cenário mais interessante no corte de relações sucede quando a vontade de cortar é recíproca. Se esta é a situação desejada para uma posteridade tranquila, levanta um problema no momento em que se concretiza o corte. A situação ideal é um corte de relações recíproco e absolutamente simétrico. Porém, é formalmente muito difícil demonstrar que a iniciativa de cortar relações partiu em simultâneo de ambos os lados e que nenhum lado reage ao anúncio de corte do opositor. Podemos imaginar um cenário em que o corte é síncrono, como quando ambos escrevem uma carta em que anunciam o corte de relações antes de receberem a carta do outro, mas este exemplo só reforça a ideia de que estamos perante um problema de crescente actualidade, pois já ninguém escreve cartas - num mundo regido por emails e mensagens de telemóvel, a sincronicidade e independência de reacções idênticas fica sempre refém da dúvida, para os outros e, sobretudo, para os envolvidos.
O diálogo seguinte ilustra o problema de a precedência no corte de relações só não ser irresolúvel na cabeça do observador omnisciente. Vamos decompor, propondo uma solução impraticável, como se as pessoas fossem electrodomésticos e o texto o mode d'emploi escrito em japonês. Fulano e sicrano têm uma altercação. Fulano decide cortar relações. Sicrano tem a mesma vontade. Fulano antecipa-se e diz "nunca mais me fales"...
Sicrano: nunca mais me fales tu, ouviste?".
Fulano: eu disse primeiro que não queria falar mais contigo, ó meu grandessíssimo cabrão.
Sicrano: pensei que tínhamos ficado por aqui.
Fulano: não. Eu é que cortei relações. Não podes cortar relações a seguir.
Sicrano: eu cortei a metade da relação que era minha.
Fulano: não há partilhas num corte de relações.
Sicrano: Claro que sim. Aliás, tu disseste para nunca mais te falar e eu pensei o mesmo, talvez até antes. Demorei foi a verbalizar.
Fulano: nem de boas relações eu acreditaria nisso.
Sicrano: então proponho ir pelo lado formal.
Fulano: o lado form... Não interessa. Cortei relações.
Sicrano: formalmente, disseste apenas para nunca mais te falar.
Fulano: querias que te dissesse também para nunca mais me escreveres e nunca mais me olhares nos olhos?
Sicrano: não, apenas pretendo evitar o cenário em que eu não falaria mas tu poderias continuar a falar.
Fulano: isso é um absurdo. Está implícito que se peço para nunca mais me falares, eu nunca mais te falarei.
Sicrano: para que esteja implícito é preciso que haja boa fé ou seja, boas relações. Por isso, uma pessoa inicia o processo e a outra deve terminá-lo. É a única forma de chegar ao corte de relações duradouro. A menos que queiras reatar? Querer reatar?
Fulano: nunca, vai à merda, escroque.
Sicrano: muito bem. Nesse caso, é importante que eu termine o que começaste e retribua com um corte de relações. Achas que consegues encaixá-lo?
Fulano: eu não preciso de encaixar nada. Eu cortei relações contigo! Tu é que não consegues encaixar, filho da puta!
Sicrano: bem, pareceu-me que havíamos ultrapassado essa fase.
Fulano: vai-te foder.