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OURIQ

Um diário trasladado

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Um diário trasladado

02
Mai10

Mucas


Eremita


 

fonte

Como sempre, nesse dia a minha mãe veio em meu auxílio. Se há algo que destaca tal dia de todos os outros, é a persistência na minha memória da sua imagem no cais da estação. Talvez a culpa seja do cinema, que elegeu e perpetua a gare ferroviária como o local mais propício para encontros e desencontros. O certo é que essa é uma das duas imagens mais nítidas que guardo de minha mãe. A outra é estival, vi-a ao longe, caminhando à beira-mar, quando um amigo que estava ao meu lado disse que a minha mãe era a mais elegante entre todas as amigas que com ela passeavam e se aproximavam. A observação pareceu-me surpreendente e logo absolutamente verdadeira. Devia ter 6 anos.

 

Estação Primeira

 

Na Gare de L´Est regressei ao útero
Não o das arcadas, dos espaços resguardados
E princípio de um fim ou não, carris são carris
Regressei ao útero, pontualmente
O que se espera da ferrovia gaulesa
Mas não de todas as mães.

01
Mai10

Da irredutibilidade da precedência no corte de relações


Eremita

 

Em Lisboa, passei por um período muito rico em cortes de relações. Cortar relações só custa à primeira e deve ser um pouco como matar, apesar das diferenças de grau - a comparação não é inusitada, pois é costume dizer-se "para mim, morreste". O cenário mais interessante no corte de relações sucede quando a vontade de cortar é recíproca. Se esta é a situação desejada para uma posteridade tranquila, levanta um problema no momento em que se concretiza o corte. A situação ideal é um corte de relações recíproco e absolutamente simétrico. Porém, é formalmente muito difícil demonstrar que a iniciativa de cortar relações partiu em simultâneo de ambos os lados e que nenhum lado reage ao anúncio de corte do opositor. Podemos imaginar um cenário em que o corte é síncrono, como quando ambos escrevem uma carta em que anunciam o corte de relações antes de receberem a carta do outro, mas este exemplo só reforça a ideia de que estamos perante um problema de crescente actualidade, pois já ninguém escreve cartas - num mundo regido por emails e mensagens de telemóvel, a sincronicidade e independência de reacções idênticas fica sempre refém da dúvida, para os outros e, sobretudo, para os envolvidos.

 

O diálogo seguinte ilustra o problema de a precedência no corte de relações só não ser irresolúvel na cabeça do observador omnisciente. Vamos decompor, propondo uma solução impraticável, como se as pessoas fossem electrodomésticos e o texto o mode d'emploi escrito em japonês. Fulano e sicrano têm uma altercação. Fulano decide cortar relações. Sicrano tem a mesma vontade. Fulano antecipa-se e diz "nunca mais me fales"...

 

Sicrano: nunca mais me fales tu, ouviste?".

Fulano: eu disse primeiro que não queria falar mais contigo, ó meu grandessíssimo cabrão.

Sicrano: pensei que tínhamos ficado por aqui.

Fulano: não. Eu é que cortei relações. Não podes cortar relações a seguir.

Sicrano: eu cortei a metade da relação que era minha.

Fulano: não há partilhas num corte de relações.

Sicrano: Claro que sim. Aliás, tu disseste para nunca mais te falar e eu pensei o mesmo, talvez até antes. Demorei foi a verbalizar.

Fulano: nem de boas relações eu acreditaria nisso.

Sicrano: então proponho ir pelo lado formal.

Fulano: o lado form... Não interessa. Cortei relações.

Sicrano: formalmente, disseste apenas para nunca mais te falar.

Fulano: querias que te dissesse também para nunca mais me escreveres e nunca mais me olhares nos olhos?

Sicrano: não, apenas pretendo evitar o cenário em que eu não falaria mas tu poderias continuar a falar.

Fulano: isso é um absurdo. Está implícito que se peço para nunca mais me falares, eu nunca mais te falarei.

Sicrano: para que esteja implícito é preciso que haja boa fé ou seja, boas relações. Por isso, uma pessoa inicia o processo e a outra deve terminá-lo. É a única forma de chegar ao corte de relações duradouro. A menos que queiras reatar? Querer reatar?

Fulano: nunca, vai à merda, escroque.

Sicrano: muito bem. Nesse caso, é importante que eu termine o que começaste e retribua com um corte de relações. Achas que consegues encaixá-lo?

Fulano: eu não preciso de encaixar nada. Eu cortei relações contigo! Tu é que não consegues encaixar, filho da puta!

Sicrano: bem, pareceu-me que havíamos ultrapassado essa fase.

Fulano: vai-te foder.

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