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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

24
Nov09

Saponácea (II)


Eremita

Segundo Calvino

 

 

O diário dos dois meses que Italo Calvino passou em Nova Iorque é a melhor prosa de estrangeiro que li sobre a cidade. Talvez esta impressão resulte de ter passado do romance de João Tordo (que concluí! - lá iremos) directamente para Calvino. Tordo também viveu em Nova Iorque, mas esse seu trabalho de campo parece apenas ter servido para confirmar as impressões que antes recolhera do cinema; em Tordo a imaginação necessita de validação empírica -  ele é a antítese de Dennis McShade, que nunca visitou a América dos seus policiais. Voltemos a Calvino. As impressões do italiano são actualíssimas (o aborrecimento que é a imposição quotidiana de mudar o estacionamento do carro para o lado oposto da rua, o peso do New York Times, os homossexuais da Village, etc.) e as suas impressões sobre os beatniks são as passagens mais hilariantes que li este ano. Aqui ficam algumas:

 

... e os boémios que agora são chamados pelo vulgo todos beaniks, mais sujos e repelentes, homens e mulheres, que todos os confrades parisienses. (pág. 33)

 

No party de Rosset está Allen Ginsberg com uma barba preta nojenta...  (pág. 40)

 

Naturalmente, os beatniks confraternizaram logo com Arrabal, também barbudo (a barba parisiense tipo coleira e a barba inculta dos beatniks) e convidaram-no para a sua casa para ouvir recitar versos. Ginsberg vive como marido e mulher com outro barbudo, e queria que Arrabal assistisse às suas cópulas entre barbudos. Encontro Arrabal ao regressar ao hotel aterrorizado e escandalizado porque quiseram seduzi-lo. O blouson noir que veio à América para escandalizar ficou todo desorientado com o primeiro encontro com a vanguarda americana e de repente revela-se o pobre rapazinho espanhol que até há poucos anos estudava para padre. 

 

Conta que em casa os beatniks são muito mais limpos, têm uma bela casa com frigorífico e televisão, vivem como num tranquilo ménage burguês e só se vestem com roupas sujas para sair.  (pág. 40-41)

23
Nov09

Não vou dizer nomes


Eremita

O desaparecimento de figuras semipúblicas vem com um acréscimo de melancolia. Por um lado, ao contrário do que sucede com as grandes figuras públicas, não há mobilização e arrebatamento suficientes para se gerar um elogio fúnebre colectivo. Por outro, falta o pudor imposto pela amizade ou os laços familiares que temos com um desconhecido do público. Este meio-termo gera um efeito terrível: as menções são esparsas, tímidas, curtas e pode inclusive haver quem aproveite o sucedido para acertos de contas. Sobra um difuso constrangimento e um demorado calafrio. Não conheço morte púbica mais absolutamente triste do que a da figura semipública.  

22
Nov09

O escritor e a cidade


Eremita

Se admitirmos que o trabalho de escritor pode ser influenciado pelo ambiente em que se efectua, pelos elementos do cenário circundante, então termos de reconhecer que Turim é a cidade ideal para o escrever. Não sei como se pode escrever numa dessas cidades em que as imagens do presente são tão subjugantes, tão prepotentes, que não deixam uma margem de espaço e de silêncio. Aqui em Tuirm consegue-se escrever porque o passado e o futuro têm mais evidência que o presente, e as linhas de força do passado e a tensão para o futuro dão concretude e sentido às discretas e ordenadas imagens do hoje. Turim é uma cidade que convida ao vigor, à linearidade, ao estilo. Convida à lógica, e através da lógica abre caminho à loucura. Italo Calvino, Um Eremita em Paris

 

Depois de uma intricada reflexão de Henry James sobre as dificuldades que uma cidade como Veneza levanta a uma escritor, dou agora com Calvino a discorrer sobre Turim. Julgo estarmos presente uma mania tipicamente europeia e mais um pretexto para reflectir sobre o acto de escrever do que uma limitação real. Ambos inventaram um falso problema e, necessariamente, não nos dão uma solução; estão nos antípodas do americano Stephen King.  King não se refere à cidade, mas sim às características da sala onde o escritor deve trabalhar. Porque também sou europeu e presunçoso, este livro de King, intitulado On Writing, não veio comigo para Ourique, mas lembro-me que tem detalhes práticos deliciosos, como o número de páginas que se deve tentar escrever por dia e até  - salvo erro - a orientação da secretária. Na altura julguei* a escrita de King demasiado pueril, mas agora, sobre este tópico, ela parece-me bem mais útil e até bem mais séria do que a de James e Calvino, embora não tão agradável.

 

* Este erro, prontamente assinaldo pelo comentador "desconhecido", tratou-se de uma mera gralha que, ao contrário do vergonhoso erro da semana passada, não nos pesa. Em todo o caso, obrigado pelo reparo.

 

 

22
Nov09

Ver casas


Eremita

 

 

Casa Térrea em Vila Alentejana situada num ponto alto avistando uma paisagem maravilhosa sobre a planície. A 1,5 km do IP1 sentido Lisboa / Algarve em estrada alcatroada. Casa composta por 4 assoalhadas com chão em azulejo, 2 cozinhas com lareira uma delas típica alentejana, WC equipado com lavatório, sanita e pequeno espaço para tomar banho equipado com esquentador, quintal e armazém muito grande. Água potável e electricidade. Fica a 45m da Costa alentejana e a 5m de uma barragem muito grande. Vende-se com ou sem algum recheio (negociável). Necessita alguns melhoramentos no telhado (telhas) e nas paredes não sendo necessário comprar material (telhas). 40000€ (negociável)

 

Uma das grandes vantagens de Ourique é a dimensão diminuta do seu mercado imobiliário. Para quem tem ambições burguesas, encontrar a casa ideal é um objectivo de vida, mas para quem acumula ambições literárias depressa a caminhada se torna mais imprescindível do que o destino final. Foi assim que me tornei viciado em ver casas.  Ourique salvou-me. No descanso da vila e com o devido distanciamento histórico, conto escrever um texto sobre esta síndrome ainda órfã de nome e descobridor; o texto será revisto por um arquitecto e inclui os seguintes subtítulos .

 

Corrupção e sublimação do ideal burguês

 

Voyeurismo de interiores


As mulheres dos outros

 

Os animais de estimação dos outros

 

O mármore de Estremoz

 

Contra o soalho flutuante

 

Deontologia de promotor imobiliário 

 

A escalada da tipologia  como exemplo de habituação

 

O grande bluff

 

 

19
Nov09

Os recibos verdes são azuis


Eremita

O Ouriquense acaba de despachar a sua primeira encomenda. Espreguiço-me. Acerco-me da janela. A vila está tranquila. Há um rafeiro ao fundo da rua. Faz frio. Sinto-me bem. Experimento algo próximo disto quando termino de lavar a loiça, só que hoje foi muito mais forte. É aborrecido concordar com certos indivíduos, mas o trabalho liberta mesmo. 

18
Nov09

O cachalote


Eremita

 

Desde que interrompi a leitura de Moby-Dick, sinto que a obra me persegue. No livro de Tordo, a personagem anda com um exemplar de Moby-Dick no bolso, para simular o volume de uma arma de fogo. É um momento competente. Mas reparem agora nisto:

 

Bloqueei; bloqueei é provavelmente a palavra com o aspecto mais estrangeiro da língua portuguesa - não sei se será permitido usar a palavra "bloqueei" na literatura de campanha do PNR; quase que voltei a respirar oxigénio ao descobrir a palavra "bloqueei" no meio destas outras caucasianas sucessões de letras; parece o nome de um arpoador polinésio no Moby Dick, Queequeeg, Daggoo, Bloqueei R. Casanova

 

Primeiro o Tordo certinho, com uma alusão a um dos seus heróis literários, e depois o desconcertante Casanova. Deus fez um plano de leitura para uma das suas ovelhas tresmalhadas.

 

 

18
Nov09

2


Eremita

Screen Shot 2019-05-04 at 10.16.00.png

(pub) A brief history of romance comics

Foi um breve instante. O inventor ausentara-se da sala por breves instantes para ir buscar o galheteiro e uma das libertinas de Lisboa comentou:

 

- Promete* que nos vamos tratar por "você" até não querermos mais ir para a cama?

- Nós queremos ir para a cama?

- Você quer, eu tenho dúvidas. 

- Como comunicam na cama as pessoas que se tratam por "você"? 

- Da mesma forma, suponho.

- Acha isso bem?

- Bem?

- Não lhe parece um absurdo?

- Não seja tonto. Nos pares onde há tensão sexual, o tratamento reverencial reforça o desejo. É um fetiche verbal. 

- Como gostar de vestir fardas?

- Isso. Você gosta de fardas?

- Deram-me como inapto quando fui à inspecção. Prefiro não arriscar.

- Mas promete?

- Prometo, claro. Ainda que você tenha dúvidas.

- Quanto ao valor da sua promessa?

- Não. Quanto ao seu desejo de se deitar comigo.

 

Quando o leitor regressou à sala, mudámos logo de assunto.

 

* meus Deus, estava aqui outro erro.

 

 

 

17
Nov09

Deontologia


Eremita

Por lapso, publiquei nesta mesma entrada uns apontamentos para um texto. Entretanto, a leitora Sal estranhou - e bem - o texto. Que fazer? No Ouriquense só censuramos comentários grosseiros ou que revelem a identidade de quem optou pelo anonimato. Por este critério, o comentário de Sal não pode ser eliminado. Porém, os apontamentos são para um texto que é, antes de mais, uma encomenda - sim, o Ouriquense vai concretizar o seu primeiro vencimento. Estamos perante um conflito, mas de simples resolução: censuramos o post e mantemos o comentário. 

 

 


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