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A minha existência de caçador-recolector com assistência durou menos do que o previsto. Planeava ficar pelas margens da barragem até meados de Agosto e a verdade é que regressei há mais de duas semanas. Gostaria de frisar que nenhuma dependência na civilização me vergou - não dependo de pessoas e ainda menos de apetrechos. Enfim, percebi que o canivete suíço goza de uma reputação exagerada e teria dado jeito dispor de outras soluções, mas após quatro dias consegui adaptar-me ao montado e a perdiz que matei com a flaubert deu-me um ânimo que sobreviveu ao repasto cinegético. Se voltei à vila foi porque incubei um medo às noites ao relento que se tornou insuportável de gerir.
À partida, o montado é uma paisagem que tranquiliza. Uma vez, a caminho do cimo do Pico, nos Açores, quando passava sozinho por uma área de floresta, a cabeça disparou uma série de imagens aterrorizadoras de selvagens dissimulados nas copas, prontos a cair sobre mim. Vieram depois imagens ainda mais assustadoras, não já com o cunho National Geographic, mas sim da cinematografia americana do subgénero "terror de bosque" - especímenes que eram variações do Bigfoot e psicopatas vários que levavam vidas saudáveis, isto é, no campo. Estive quase para arrepiar caminho, mas consegui controlar-me o suficiente antes que qualquer som real - o vasculhar de uma galinha por entre os arbustos - materializasse os produtos da minha imaginação. Porém, só recuperei a tranquilidade quando rompi a cintura de floresta que abraça o vulcão e entrei nas pastagens das terras altas. Podemos teorizar: o medo irracional é inversamente proporcional à distância a que se encontra o horizonte. Por isso a noite assusta mais do que o dia, a floresta mais do que a planície, os corredores da casa assombrada mais do que o caminho para tal morada. Por isso, o clímax em The Shining acontece num apertado labirinto e Jaws é tão assustador - no mar o horizonte pode estar a milhas, mas o que conta é o horizonte vertical do plano de água, que está sempre à beira. Havia pois motivos para confiar no montado, que é paisagem ampla e em que dificilmente se arma uma cilada.
Quem durante um ataques de pânico retém alguma lucidez, sabe que o medo alastra pelo corpo com frentes cujo epicentro é impossível de definir e que há uma altura a partir da qual não se pode reverter a tendência. Se penso em vampiros no montado, apenas inicio este processo, podendo sempre abortá-lo. Sucede que pensei em escorpiões, nomeadamente no nosso lacrau, o Buthus occitanus. O bicho é pouco venenoso, só que imaginar este predador nocturno-crepuscular a entrar no saco-cama deu-me uma noite de insónia e um cansaço no dia seguinte que me desmoralizou. O moço de recados ainda tentou animar-me, mas nessa tarde apenas recolhi as forças para poder pedalar de volta à vila. O caminho de volta custou, porque sabia que não escapava de uma morte estúpida, o que seria redentor. É importante distinguir entre a morte estúpida e a morte azarada. Francisco Lázaro, que se untou de sebo para correr a maratona, teve uma morte estúpida. David Carradine, que - tanto quanto se pôde apurar - gastou a vida numa brincadeira sexual, teve uma morte igualmente estúpida. Diferente é a morte azarada. Ser colhido por um carro que desrespeitou um sinal vermelho é uma morte azarada, tal como ser apanhado entre um tiroteio, sobretudo se for no restaurante. Por definição, a morte azarada não se evita. Logo, não se pode fugir de uma morte azarada. Mas se não desejamos a morte, temos a obrigação de evitar uma morte estúpida. Ainda senti a tentação de fazer do lacrau um bicho com veneno mortal, para simular que evitava uma morte estúpida, só que não podemos abdicar do rigor. O regresso à vila foi inglório, fruto de uma fraqueza só ligeiramente menos vergonhosa do que a fobia a baratas.
Os poucos dias de vida ao relento fizeram-me perceber que Tatiana só me complicou a vida. Que paixão é esta por uma mulher casada, que mais não será do que uma allumeuse pudica, incapaz de atraiçoar Igor e também de retrair o dedo caprichoso que roça nos meus quando me dá o recibo? Se ninguém escapa à intrínseca falta de originalidade na paixão, é imperativo exigir o máximo do ser desejado. Convenhamos que Tatiana é analfabeta em português e que amar sem uma língua comum é sobretudo um caso de iliteracia. Nada do que esta mulher fez é merecedor de devoção. O que vale eu ter sobreposto o seu corpo, quando ela caminhava, com imagens do meu arquivo? Fosse outro o ângulo com que a observava e não haveria hoje amor. Há algum sentido nisto? Se Tatiana nem beleza tem? Aquele nariz? Pertence-lhe o osso, a pele e a cartilagem, mas é meu o culto. E não detecto nela as tais redeeming features; é possível que as tenha, mas não se pode fundar um amor em tal esperança. É tempo de lhe dizer que guarde o troco. Foi embalado nestas vontades que retomei o grande desígnio adiado do Ouriquense, isto é, a leitura do cânone ocidental.
Devorar o The Great Gatsby restaurou a minha urbanidade, mas agravou o mal de amor. O livrro tem momentos libertadores: I’d been writing letters once a week and signing them: “Love, Nick,” and all I could think of was how, when that certain girl played tennis, a faint mustache of perspiration appeared on her upper lip. E a voz de Fitzgerald quase conseguiu chegar próximo, no impacto sobre o leitor, da voz de Heller nesse milagre que é o Catch-22. Mas aquela teia de relações não veio nada a calhar. E fiquei indeciso quanto à morte de Gatsby, sem saber se foi azarada ou simplesmente estúpida. Decididamente, só a literatura para rapazes me pode hoje salvar. Quero livros sobre a coragem, a camaradagem e as miragens da ambição. Lancei pois a mão aos grandes livros do género entretanto catapultados para o cânone, mas que, na sua essência, não deixam de pertencer ao género de literatura que melhor subalterniza o amor. Refiro-me a Robinson Crusoe, de Defoe, Heart of Darkness, de Conrad, e a Moby-Dick, de Melville. O primeiro é o livro da minha vida e uma nova leitura viria com o perigo de me reenviar vinte anos atrás. O segundo está num tupperware delgado de afiambrados e não me pareceu ter dimensão (física) capaz de me assegurar a purga de que necessito. Moby-dick é o calhamaço ideal e destrona o Quijote. A culpa é de Dulcineia, obviamente. Quando se remonta a uma causa esbarra-se sempre com uma mulher.