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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

24
Jun09

Que não se muda já como soía?


Eremita

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança. Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança. Do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor espanto: que não se muda já como soía. Luís de Camões

 

Isto é absolutamente belo e absolutamente falso.

24
Jun09

Devoto do silêncio


Eremita

Por vezes perguntam-me sobre os motivos que me levaram a pedalar até Ourique e por aqui ficar. Existe a suspeita de que o faço para curar um desgosto de amor, mas é um erro. A partir de certa altura, o desgosto de amor deixa de ser uma desilusão e passa a ser uma inevitabilidade. Um dos verdadeiros motivos que me trouxeram para Ourique foi a ressaca que experimentava depois de falar em público. Se no início ficava em pânico quando precisava de enfrentar uma plateia, uma vez cumprida a tarefa sentia-me bem. Mas com os anos o pânico deu lugar a uma melancolia por antecipação, pois era inevitável que iria ressacar depois da aula, do seminário ou da palestra. Nunca - mas nunca - me senti minimamente realizado com estas actividades. Uma frustração imensa apoderava-se de mim e só uma noite bem dormida era capaz de a fazer partir. A simples ideia de dar aulas regularmente, uma das poucas saídas profissionais com que podia contar, desesperava-me. Esta fobia foi depois crescendo. O que dizia aos jantares. O que respondia quando me apresentavam alguém. A troca de impressões com o sector terciário - excluindo uma rapariga que trabalhava no bar do meu local de trabalho e com quem tinha uma interacção com um subtexto de malandragem e completamente inócuo que muito nos divertia. Aqui em Ourique, um lugar em que por vezes passo dias sem abrir a boca, percebi finalmente que a exposição oral, da anedota à palestra, não é para mim e que apenas no comentário espontâneo consegui ser mediano. Sonhava em interagir com o mundo por escrito. Escrever as palestras e as aulas, em vez de as dar de improviso ou após uns ensaios. O improviso não é para qualquer um.  Por isso, só ambicionei ter um gadget na vida: o teleponto. E na vez em que visitei um familiar que tinha sido operado à língua e só podia comunicar com um bloco de notas, senti uma enorme inveja. A inveja de não ter sofrido um daqueles acidentes que legitimam as nossas mais inconfessáveis excentricidades. Bem sei que este desabafo passa por capricho e cobardia,  e é até ofensivo para quem quem realmente teve um desses acidentes, mas  fazê-lo assim - por escrito - talvez seja uma atenuante. 

 

23
Jun09

38


Eremita

"'Every life has a theme', wrote Isaac Rosenfeld in an essay on Gandhi. The theme of his own life, and of this biography, was failure. Rosenfeld was born in Chicago in 1918 and with the publication of his novel Passage from Home in 1946 was pronounced a golden boy of American letters. Yet almost nothing followed - critical essays, some short stories, true; but mainly page after page of unfinished manuscripts. Ever increasingly, Rosenfeld was overtaken by his Chicago friend-turned-rival Saul Bellow, who took his crown. Rosenfeld died of a heart attack in 1956, aged thirty-eight. Even the novel Bellow wrote about him, Charm and Death, remained unpublished...

 

(Mexiana)

 

 

 

22
Jun09

Língua e voz


Eremita

Desde que me disseram que abuso das palavras estrangeiras, tenho procurado moderar-me. Sou muito sensível a este tipo de comentários. Creio que o que as pessoas fazem com uma língua diz muito sobre a personalidade que têm. Por exemplo, tenho tendência a desconfiar de pessoas que dominam línguas estrangeiras com um sotaque perfeito, a menos que haja boas atenuantes (como ter passado a infância e/ou a adolescência a praticar essa língua). O meu ideal de domínio da língua é a competência gramatical e o conhecimento vasto do vocabulário e das expressões idiomáticas sem a perda de um sotaque forte. Quem trabalha o sotaque até ao limite da perfeição tem uma qualquer falha, talvez mesmo uma falha de carácter. Como é óbvio, não excluo a hipótese de esta ser a posição de um invejoso, já que o meu sotaque em inglês é forte. Mas em minha defesa posso adiantar que tenho um fascínio absoluto por quem consegue imitar vozes na perfeição, talento que não possuo. Aliás, já me apaixonei por alguém no momento em que ela imitava a voz de Marcelo Rebelo de Sousa. Este episódio não deve ser perpetuado na mitologia de nenhuma família, porque  causaria aflição o cenário em que um futuro filho procurasse  Marcelo Rebelo de Sousa no Youtube como quem se quer perceber, mas há aqui alguma verdade. Em suma, odeio quem imita uma língua na perfeição e sou capaz de amar quem imita uma voz perfeitamente. A capacidade de me encantar supera a de odiar, pois fico encantado com alguém que imite na perfeição a voz de um actor estrangeiro.

20
Jun09

Rui Veloso


Eremita

Têm surgido bons escritores de canções portugueses nos últimos anos e algumas aves raras curiosas. Creio que JP Simões é o mais inteligente deles todos. Superiormente inteligente. Não é muito original, mas é mesmo esmagadoramente inteligente, o que se percebe também nas entrevistas. Na escrita da letra, falta-lhe talvez a pureza do Sérgio Godinho de Espalhem a Notícia, ainda a melhor letra produzida em Portugal desde a poesia trovadoresca. Na composição, falta-lhe a inteligência instintiva de Rui Veloso. Rui Veloso é o grande músico instintivo da Pop lusa e, de certa forma, o nosso Stevie Wonder, isto é, um talento que envelheceu abaixo das expectativas - mas o erro é nosso, pois deveríamos saber que a inteligência instintiva é um filão esgotável. O Reininho? Uma inteligência nada instintiva, o que explica que esteja a envelhecer tão bem. Também JP Simões tem um futuro brilhante pela frente, porque não é insitintivo. Escreverá lindas canções, cada vez mais perfeitas. Mas será incapaz de fazer um Superstition, que na opinião de um amigo é a melhor música de sempre da Pop. Como não será capaz de escrever uma boa canção, sem ponta de sátira ou paródia, com nomes de ervas aromáticas. Para transformar uma letra dessas (de Tê) num produto inclassificável e que dispensa o estilo e a filosofia, só mesmo uma enorme inteligência instintiva, um talento puro. Se não percebem isto, paciência, mas permitam-me que remate com um exemplo didáctico. Numa canção sobre ervas aromáticas, JP Simões talvez tentasse uma dedicatória fictícia a uma certa "Rosita Mariita". Rui Veloso nunca faria isso, mas houve um fã que tratou do assunto. 

 

 

 

 

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20
Jun09

Um agradecimento


Eremita

 

 

Defendo a tese de que a generalidade das dosagens nos produtos de supermercado embalados ainda estão desajustadas do tecido social. As famílias desagregam-se e o pai divorciado é hoje uma criatura desprezada pela indústria alimentar e órfã de organização que defenda os seus interesses. Urge corrigir esta injustiça. Um pequeno passo nesse sentido, grandioso no simbolismo, parece ter sido dado pela Mimosa. Trata-se da embalagem de manteiga de 125 g, um produto desenhado para o ritmo de consumo do solteiro, divorciado ou eremita. No mercado dos derivados lácteos convivem diversas marcas. Quase todas têm as opções manteiga magra e manteiga sem sal, mas creio que apenas a Mimosa conseguiu lançar um produto abaixo dos 250 grama. A marca é pioneira na tentativa de evitar uma chicotada psicológica existencialista no consumidor, pois se a solidão tiver um sabor, será certamente o travo da manteiga rançosa a uma segunda-feira de manhã. Disso a Mimosa me salvou. E como bónus tive o sorriso terno de Tatiana, no preciso momento em que ela alinhava o código de barras da embalagem com o leitor óptico. As meninas das caixas registadoras devem vencer o tédio imaginando a vida dos clientes pela composição do que cada um compra e Tatiana pressentiu a minha vulnerabilidade, podendo por isso demorar o seu olhar no meu e até sorrir. 

20
Jun09

A honestidade como insídia


Eremita

Quem foi traído ou se atraiçoou tem duas evoluções possíveis: ou se torna cínico ou fica possuído por uma honestidade compulsiva. O cínico não é interessante. Por outro lado, o honesto compulsivo é uma figura muito curiosa e a situação do casal composto por dois honestos compulsivos deveras peculiar. Para o leitor inexperiente, este parece ser um cenário idílico. Na verdade, é um inferno. O casal estável ideal faz-se de um honesto compulsivo e de um mentiroso de talento, pois o segundo sabe abortar a escalada de honestidade sem que o primeiro se aperceba. Com dois honestos compulsivos não existe este mecanismo regulador. Cada um conta tudo ao outro, dos segredos mais inconfessáveis às dúvidas mais irrelevantes. A honestidade é vivida com fanatismo. Mais vezes juram um ao outro que jamais mentirão do que trocam juras de amor. E na exposição daquilo que lhes é mais íntimo são implacáveis. Cruéis. Como se na privacidade não houvesse direito à privacidade. Tudo em nome da honestidade que julgam ser a salvação, mas que irremediavelmente os afastará. 

 

 

19
Jun09

Voltam os pássaros


Eremita

Há meses que não acordava com os pássaros e o quarto inundado de luz. Andava a tentar dormir na completa escuridão, com as persianas corridas, os cortinados cerrados e a janela (há vidros duplos em Ourique) fechada. Não funcionou. Preciso de luz ao acordar. E dos pássaros. E do barulho da rua de imediato, para que não haja  aquele primeiro instante de vigília em que se recupera a consciência mas no fundo ainda se dorme - o terrível instante que deve ser o que há de mais parecido à vida depois da morte. Resistem os que dormem acompanhados. Resistem aqueles que, dormindo sozinhos, acordam com os pássaros. Mas só são felizes os que, dormindo acompanhados, ainda acordam com os pássaros. Sei que sou um eremita conformado. 

18
Jun09

À primeira leitura da Ler [com adenda]


Eremita

Na última Ler, Rogério Casanova escreveu que "Portugal teve algumas boas revistas, mas só uma grande revista [a Kappa]". Para fazer prova, oferece-nos um inventário pouco cavalheiresco dos colaboradores que figuram no primeiro número: "Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente, Carlos Quevedo, Leonardo Ferraz de Carvalho, Rui Henriques Coimbra, Edgar Pêra, Manuel Hermínio Monteiro, Agustina Bessa-Luís, Maria Filomena Molder". Trata-se de uma lista impressionante. Mas esta não será pior: Branquinho da FonsecaJosé Régio,  Miguel TorgaVitorino NemésioJoão Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, António Botto, Fernando PessoaMário de Sá-CarneiroAlmada Negreiros e Irene Lisboa. E se a razoável continuidade no tempo da Presença for defeito (54 números entre 1927 e 1940), podemos lembrar antes o elenco do primeiro número do cometa OrpheuLuís de MontalvorMário de Sá-CarneiroFernando PessoaAlfredo Pedro GuisadoAlmada NegreirosArmando Côrtes-RodriguesJosé PachecoAntónio Ferro e Luís de Montalvor. Mas só fiquei chocado até perceber que Casanova faz o elogio da Kappa como revista irreverente e desalinhada do grande jornalismo e da literatura séria. No  fundo, para Casanova a Kappa é a única grande revista do grupo das revistas que incluem o Inimigo Público. O que deixa o leitor atarantado é a comparação inicial à New Yorker, mas basta trocá-la pela The Onion para que o mundo fique de novo em harmonia.

 

O ideal seria ter a Ler nas salas de espera dos consultórios. Como isso não acontece, só compro a revista de 6 em 6 meses. Não sou capaz de comprar todos os números porque sempre que começo a leitura de um só o abandono quando o li por inteiro. Se a leitura avançasse da primeira à última página, com regularidade, num fim-de-semana tinha a empreitada concluída, mas o que eu faço é folhear a revista sucessivas vezes e com um grau decrescente de exigência e motivação. À primeira passagem só me detenho no Casanova, mas folheio até ao fim. A seguir vem o Viegas, e de novo folheio o número do princípio ao fim. Depois o Costa Santos, o Pitta, o Abel Barros Baptista, etc. À vigésima passagem, já depois de antes me ter concentrado na ficha técnica, leio o Reis-Sá.  Este método toma-me cerca de um mês. Se comprasse todos os números, a Ler seria uma espécie de diário e é sabido que a concorrência mais feroz aos livros não vem da televisão, nem sequer do sexo, mas sim da prosa sobre livros. É mais uma daquelas contradições estruturais e estruturantes, mas não chega a ser tão escandalosa  - pois é bem-intencionada - como quando o jornalismo sério se debruça sobre os tablóides para mais uma reflexão profunda profusamente ilustrada.

 

 

17
Jun09

Chega de Freud


Eremita

Detesto Freud. Se não fosse ele, um acto falhado seria um simples lapso, como erra uma conta de cabeça ou trocar duas síladas. Mas por causa de Freud, um acto falhado é uma manifestação genuína, sem filtros, do que nos vai na alma. Parece-me abusivo. O acto falhado pode resultar de um simples reflexo condicionado e, se assim for, apenas revela uma história e não necessariamente um sentimento residual. 

 

 

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