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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

29
Abr09

Les filles minces


Eremita

Sem troca de dinheiro não teria uma relação física com Tatiana. Pago-lhe sempre em espécie e nunca o preço certo. Despedimo-nos cordialmente, sem intimidades. Há meses que esta rotina se repete e só tenho um capricho: obrigo-a sempre a devolver-me o troco em moedas. Com uma nota é possível guardar alguma distância, basta pegar-lhe por uma das pontas, dobrá-la ligeiramente na orientação longitudinal, para que não se quebre e se projecte o máximo possível. Quem recebe a nota saberá então que deve pegar nela pela outra ponta. Mas com uma moeda os dedos tocam nos dedos, ou na palma aberta, ou a moeda cai e no mergulho das mãos dei comigo a sentir o pulso de Tatiana, um pulso tão fino que senti pela primeira vez a sua magreza e, como um cego, logo reconstruí aquele corpo até então escondido por uma bata e uma profissão mais compatível com a robustez física das operárias. Tatiana é tão frágil que as recorrentes imagens de cenas íntimas dela com Igor parecem-se agora com spots contra a violência doméstica. Mas nasceu também o desejo de eliminar as banais raparigas pulpeuses das fantasias sexuais. Uma fantasia menos banal. Uma paixão menos banal. Ainda bem que o francês não está morto, pois nenhuma outra língua faz justiça às filles minces

 

27
Abr09

Ourique é a vila mais portuguesa de Portugal


Eremita

Pela qualidade da sua escrita, António Figueira é um dos poucos lisboetas que deveríamos salvar, mas na capital ninguém escapa ao centralismo e a uma perpetuação dos mitos rurais, ainda que postos ao serviço da ironia. Diz ele que Monsanto resume Portugal. Eu diria que Monsanto apenas resume Portugal para os portugueses. Monsanto é um livrinho de salmos que só serve à beata que o decorou. Ourique é a verdadeira essência da nação, um panfleto fotocopiado que anuncia um espectáculo no Verão passado. 

 

(Explico melhor mais tarde; vou ler o Quixote)

26
Abr09

Cineclube: The International (2009)


Eremita

 

Embora frequentemente associadas, a condição de sex symbol é de algum modo incompatível com a representação. Pitt luta contra isso mascarando o rosto, Clonney engorda e ambos fazem papéis cómicos, pois o sentido de humor deixa de ser um afrodisíaco quando dissociado da surpresa. Clive Owen não precisa destas soluções. O rosto de Owen está cheio de angústia, o que faz dele um sex symbol com vida interior. Não é mérito seu, pois tudo se resume ao exterior: a esculpida estrutura óssea da sua face e a feliz sucessão de acasos que lhe deram a cor de olhos e de pele perfeitas. Basta olhar para uma foto de Owen. Porquê? Porque embora Lombroso seja hoje uma figura maldita, a verdade é que ninguém abdicou da frenologia amadora com que extrapolamos traços de personalidade a partir dos traços do rosto. 

 

The International nem com Owen se safa. Estamos  perante mais uma confirmação de que o fim da Guerra Fria inaugurou um período trágico para os filmes de acção com enredo político.

 

(Cont.)

 

(cont)

 

 

 

25
Abr09

Epidemiologia do segredo


Eremita

Está por escrever a epidemiologia do segredo. Aquele que o fizer deve guardar um segredo, de preferência terrível, deve ter competências técnicas que lhe facilitem a modelização da transmissão do segredo numa população e deve ser capaz de interpretar todo o espectro de personalidades que a humanidade compreende. A ideia, como já se percebeu, é olhar para o segredo como um vírus, uma bactéria ou até um parasita com um ciclo de vida complexo (uma ténia) e, não só extrair as regras da sua transmissão entre as pessoas, mas também prever como o segredo as pode condicionar. O estilo e a estrutura do texto ficariam ao cuidado de quem o resolvesse escrever, obviamente, mas permito-me a liberdade de sugerir que se evite um pastiche de Borges. A epidemiologia do Segredo como um sucedâneo da História Universal da Infâmia seria uma oportunidade perdida. Em vez de  impressiva, a obra quer-se ensaística; em vez de fragmentada, como um único e amplo movimento; em vez de animada por personagens, logo genérica; em vez de uma História, uma teoria. O tema é pertinente e o título excelente. Como se não bastasse, escrever tal obra ao longo de alguns anos seria uma forma segura de jamais partilhar o segredo que estivesse na sua génese. Mas talvez o melhor fosse começar por uma pesquisa bibliográfica.

24
Abr09

Contra o aborrecimento


Eremita

Estou há 14 dias sem me olhar ao espelho. O encontro acidental com o reflexo da minha imagem na montra da lavandaria não conta. Vou esquecendo a cara que tenho. A higiene facial é feita às escuras. Mas creio que nunca tive um ar tão asseado. Faço a barba todos os dias. Arranco com os dedos os pêlos mais compridos das sobrancelhas. A solidão potencia a excentricidade.

 

O homem é uma criatura visual. Há mais referências visuais do que experiências visuais. Saturamos ainda crianças. Ver é quase sempre reconhecer. Tactear deveria ser outra coisa, mas não é. O próprio tacto desperta imagens. Toco no meu rosto. Com quem me pareço? Com um irmão Metralha. Só serei bonito nos dedos de minha mãe. 

 

Ando há meses nisto. Poderia abrir um clássico da literatura, mas opto por estes jogos absurdos. Assim vou suportando a solidão. Ao incipiente transtorno de obsessivo-compulsivo que é voltar repetidas vezes a casa, quando já me encontro na rua, para confirmar que fechei o gás, junto comportamentos menos espontâneos e mais criativos, como  descer as ruas em slalom lento pelas laranjeiras, pintar os "ós" de todos os editoriais do Correio do Alentejo a esferográfica azul, descascar uma pevide a cada 10 segundos sempre que me sento à mesa do café e encontrar uma sequência de beirais em que o número de ninhos-de-andorinha forme a série de Fibonacci. O que há de absolutamente assustador nestas práticas reiteradas é a sua eficácia imediata. O momento em si parece que se eterniza, não como se o tempo pesasse, antes como o tempo deixasse de existir. Por isso, nunca me senti aborrecido em Ourique. Mas parece que este efeito se concretiza às custas de a lembrança do passado se comprimir tanto que agora julgo sempre ter chegado a Ourique só há uma semana. Por isso, tenho deixado de me sentir em paz. Começo mesmo a precisar de reler o que aqui vou escrevendo para ter mão no passado. Os dedos para ver o rosto e os olhos para tactear o tempo. 

22
Abr09

Quixostescas


Eremita

Antonio Saura

 

 

A leitura do romance de Cervantes destina-se a provar uma tese: a consagração máxima de um escritor não é ver o seu nome transformado em adjectivo (Kafka), mas o de uma das suas personagens (D. Quixote). Servirá também de pretexto para uma megalómana manifestação de iberismo (o Ouriquense contra Martin Amis). Por fim, veremos se o leitor responde ao livro da mesma forma que a personagem principal deste respondeu aos romances de cavalaria. Como a perda de rigor se justifica perante a possibilidade de perda da razão, tentarei antigir os dois primeiros objectivos antes de terminar a leitura do livro.

21
Abr09

Tatiana fuma


Eremita

Confesso que foi uma surpresa. Não resisti a esperar pela hora de saída de Tatiana e a primeira coisa que ela fez foi acender um cigarro. Tem um jeito fabril de fumar, a fazer lembrar o das empregadas da minha velha cantina. Tem também um jeito refinado de segurar o cigarro entre os dedos e é civilizada: deitou a beata num caixote do lixo, depois de se certificar que estava bem apagada (segui-a durante uns minutos, à distância).

 

Um homem de bom gosto só pode gostar de ver uma mulher fumar, mas um homem de bom gosto não pode suportar que uma mulher fume. É este o problema. Não se trata de uma preocupação com a saúde da mulher mas sim de um conflito entre gostar de ver e não gostar de sentir. Coisas demasiado subtis para as colunas de opinião. Tatiana fuma. Quem diria? 

15
Abr09

Estes lisboetas são loucos


Eremita

É sabido que a força dos ícones da liberdade de expressão é proporcional à exigência do teste a que nos submetem na defesa dessa liberdade. Por isso existe Larry Flynt. Que uso deu Flynt à sua liberdade de expressão? Imprimiu na sua revista de grande circulação uma paródia de mau gosto sobre o pastor conservador Falwell que roçava a fronteira da difamação e ainda hoje faria corar os meninos do Inimigo Público (o pastor é descrito como um bebedolas que tem uma relação incestuosa com a mãe). Por esta pérola, Flynt é mais conhecido hoje que um incontável número de pessoas impedidas de livremente expressar opiniões pertinentes e corajosas na defesa de causas justas. Mas não há aqui nenhum paradoxo. O que se louva ainda neste caso não é o acto de Flynt, antes a tolerância da sociedade e do sistema judicial. Flynt é um mero símbolo, que nem sequer chega à categoria de herói acidental. O mesmo acontece com a defesa da privacidade. Por outras palavras, a uma escala planetária ou regional, não causará espanto se os maiores ícones da defesa da privacidade forem aqueles que pior uso dão ao direito de que dispõem. 

 

07
Abr09

Em Ourique não há semanas más


Eremita

O eremita faz uma gestão de humores que não acusa os acidentes das relações humanas. As oscilações de humor do eremita são fruto das suas oscilações internas. A semana em que parece que todos nos tratam sem respeito, sem a atenção devida e sem um pedido de desculpa nunca acontece. Não há vantagem nisso. Essas semanas terríveis são essencias para se fazer o reset da existência (o que é e quem é importante) e de algum modo animam a existência. Não podendo gozá-las, o eremita depende exclusivamente das oscilações internas. Se as tiver acima de determinados limiares de frequência e magnitude, é pouco provável que chegue a velho. Mas se for estável, viverá muitos anos - também por causa dos ares do campo. Ora, como essa estabilidade interna e o seu modo de vida se traduzem numa imperturbada  rotina, o eremita que tende para a velhice experimentará um aceleramento do tempo psicológico, isto é, para ele os anos passarão como se fossem meses. O resultado final é uma mente que se julga ainda nova enclausurada num corpo envelhecido. O efeito pode ser bastante sedutor, pois dir-se-ia que estamos na presença de um idoso activo e lúcido, mas na verdade trata-se de um caso de demência associada à velhice daqueles que enveredaram pela existência de eremita.

 

 

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