Ave verum corpus
Eremita
Esta noite, em casa do inventor, deu-se uma daquelas coincidências órfãs de plateia, isto é, que dizem algo apenas à pessoa que as experimenta, sem que adiante estar a fornecer ao outro todos os elementos que julgamos necessários e suficientes para partilhar o espanto. Naturalmente, poupar-vos-ei aqui a tal proselitismo e o que se segue apenas me serve. Há uns dias coloquei no Ouriquense um vídeo com o Locus iste, de Bruckner. Trata-se de um peça para coro, muito simples, muito bela, muito popular entre os coros amadores e totalmente desconhecida do resto da população, inclusive dos melómanos. A peça diz-me muito porque em tempos cantei num coro e aqueles foram anos felizes. Há poucas experiências musicais superiores a estar dentro de um acorde e para mim o prazer de cantar no coro vinha exclusivamente da harmonia. Gozo superior só tive quando um solo de guitarra sobre uma outra guitarra me saía bem, o que não aconteceu muitas vezes. Cantar num coro é também uma experiência que, a posteriori, beneficia muito do estereótipo do "menino do coro". Pode ser que o estereótipo seja válido para meninos propriamente ditos, mas entrar para um coro aos 18 ou 19 anos é sobretudo ser posto perante a angústia de uma decisão: contralto ou soprano? Se há coristas que seguem o Ouriquense, abdico momentaneamente da suspensão do proselitismo e o conselho é inequívoco: apaixonem-se por uma contralto. Se não se conseguirem apaixonar por uma contralto, mudem de coro ou de orientação sexual, mas não cedam nunca às sopranos. Uma soprano é uma mulher má com uma voz boa e não há cá serpente, não há mais mistério. Bernard-Henry Lévy casou com uma soprano. Parece-vos um homem feliz? Justamente. Trata-se da excepção que confirma a regra.
Mas retomando: em casa do inventor, não tendo eu abandonado a janela de onde contemplávamos os baloiços da casa do meu tio, o meu anfitrião afastou-se de mim, sem que tivesse perdido o fio ao seu raciocínio (apenas subiu o volume de voz em conformidade com o afastamento), para logo voltar. Instantes depois, dir-se-ia mais atrás que detrás dele, ouviu-se uma orquestra. Era o começo do Ave verum corpus, de Mozart, uma peça muito simples, muito bela, muito popular entre os habitantes do planeta minimamente educados.
(cont)