"XXXXX, tem de cortar cabelo. Mais bonito. Mais jovem. Mais simpático."
Isto acaba de me dizer Tatiana, tinha eu as compras já dentro dos sacos de plástico. Como soube ela o meu nome? Há quanto tempo me observa? Cheguei aqui em Julho, com o cabelo cortado a pente 5. Creio que o cortei mais uma vez em meados de Novembro. Fui fazendo a barba só ao domingo, até ao fim do ano. Estou agora com barba de duas semanas, menos bonito, menos jovem, menos simpático. Tenho reparado ultimamente que as pessoas recorrem muito a tripletos - não era só o Conrad. Que coisa boa, esta revelação. Apetecia-me ficar a escrever um longo poema de amor toda a manhã. Sucede que ao acondicionar os 48 rolos de papel higiénico no armário tive uma ideia para um conto: um homem chega a casa vindo do supermercado e apenas comprou rolos de papel higiénico (48 rolos). A mulher protesta, dizendo que é um exagero. Discutem, percebe-se que há atritos antigos entre os dois. No dia seguinte, acordam com a cidade debaixo de uma tempestadade. Há um enorme nevão, que lhes bloqueia a porta (estão numa vivenda? E as janelas? Isto precisa de ser trabalhado). Passam-se dias e o nevão só se intensifica. A cidade entra em colapso (pilhagens, falta de mantimentos, etc), mas a distopia só é descrita pela janela da sala deles, que nunca chegam a saber exactamente o que está a suceder (isto para introduzir alguma subtileza e tornar também o leitor refém da claustrofobia doméstica) . O casal começa a ficar com poucos alimentos em casa. A mulher lembra o absurdo de ele ter comprado 48 rolos de papel higiénico e não haver comida em casa - passam ideias horríveis pela cabeça do homem. O casal começa a tentar comer partes da mobília (usar aqui algum humor negro, recriar a cena das solas dos sapatos, de Chaplin, brincar com "arroz de caruncho" e afins). Mais dias. O homem faz pirâmides na sala com os rolos de papel higiénico (e aqui entraria uma reflexão algo pedante sobre o fim do mundo, temperada pela ironia da própria personagem, que mistura a escatologia dos excrementos com a da teologia - "Ah, eis que consigo finalmente uma compressão da polissemia!", dirá ele, já perto da loucura). O conto acaba com a mulher ainda viva, enrolando o corpo do marido nos 48 rolos de papel higiénico (nota: fazer dela uma egiptóloga, com conhecimento das técnicas de mumificação; falar de óleos com alguma propriedade e um léxico rico, para contrastar com a banalidade do único óleo que ela tem à mão, que é o Fula). Houvesse justiça no mundo e este conto seria publicado na revista Ficções, para quem há filhos, enteados, bastardos.
*"tripleto" não existe em português, mas "trio" não capta o sentido que pretendo. A proximidade com a vila de Odemira (37.3 km) pode ter sido determinante para esta escolha.