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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

31
Jan09

PDA


Eremita

Falta-nos o pudor de uma cultura protestante para fazer uma força criadora  da inibição do public display of affection. Os americanos falam insistentemente nisto, ao ponto de terem inventado uma sigla (PDA), sendo que a mania é sobretudo francesa (que outro povo se lembraria de, tanto por escrito como verbalmente, transformar "Patrick Poivre d'Arvor" em "PPDA"?) Em rigor, PDA refere-se sempre a manifestações físicas de afecto: dar as mãos, beijar, abraçar. Mas até os americanos sabem que o PDA de grau mais elevado é feito com palavras. Isto levanta alguns problemas. Ao contrário de um linguadão em público, acto que só tem uma leitura possível, as palavras são polissémicas e os textos admitem níveis de leitura. Torna-se pois possível discutir um PDA verbal como se o PDA não estivesse lá e é até de bom-tom que assim seja. Neste jogo existe sempre uma vítima e só os seus interlocutores menos avisados não estarão a experimentar a trip que é ter um gozo tanto maior e mais perverso quanto mais rigoroso se for na manifestação pública de respeito. Há poucos momentos destes na vida e percebe-se a tentação, mas já não estamos perante uma força criadora. Traduzido em cinema,  o actor de rosto digno (Henry Fonda)  só poderia ficar com o papel da vítima, mesmo que se trate de uma dignidade de circunstância. Ou não. 

29
Jan09

Spread shit


Eremita

 

 

A rotina dos jornais tem um lado divertido. Tal como os místicos andam a sondar o futuro nos sítios errados - as entranhas de animais, os búzios, os horóscopos - ,  também procuro reparar em que notícia Maria se alivia. Esta tarde cagou sobre a cara de Vasco Pulido Valente e fiquei com sentimentos contraditórios. A ideia de alguém cagar sobre um colunista era-me impensável até hoje. Vitupérios? Sim. Um esgar de desprezo? Certamente. Mas cagar? Não. Nem sequer limpar-me a uma coluna de Luís Delgado, sendo que há uma diferença vectorial entre cagar sobre o jornal e pegar no jornal para limpar o rabo. O episódio teve pois o louvor de me deixar a pensar sobre questões novas e isso é enriquecedor.  Mas veio depois alguma frustração. Ter sido logo o Vasco Pulido Valente, quando havia um Baptista Bastos a três palmos e me é cada vez mais difícil gostar de Baptista Bastos? Isto já para não falar de Vasco Graça Moura, o único cronista que a partir de agora me leva a querer ver Maria de diarreia e que estava fortuitamente protegido por pequeno recipiente de plástico que já despertou mais o interesse da cadela. As medidas a tomar são simples. Primeira: evitar que a última página de O Público se sujeite a estas vergonhas, mesmo que para isso tenha de dexar a penúltima página virada para cima e expor o Miguel Esteves Cardoso. Um capricho antes da segunda medida: acumular editoriais de O Público e atapetar um dia a cozinha só os de José Manuel Fernandes (Maria defeca em média 4 vezes a cada 24 horas). Segunda: começar também a usar o Expresso, por um critério de pluralidade, que do jornal também faz parte um vasto leque de cronistas. Não compro aquele semanário há anos mas, se ainda tiver aquele formato spreadsheet, vai-me simplificar a vida. 

 

 

27
Jan09

Um serão com Maria


Eremita

 

Chego a casa, recolho os jornais sujos por ela, limpo ainda a tijoleira da cozinha com papel higiénico, reponho os níveis de leite e ração no seu comedouro, brincamos enquanto preparo o meu jantar, falo com ela como as velhas falam com os gatos e o senhor Manel, pastor, falava com as vacas. Mas não atiro pedras a Maria, como o senhor Manel apontava às vacas, para as encaminhar. Os vizinhos do andar de baixo devem já ter notado a novidade, porque quando venho para a sala com o meu jantar sou obrigado a fechar Maria na cozinha e o bicho farta-se de guinchar. É mesmo impressionante o espectro de emoções que esta criatura desperta, com o devido respeito que todos os cágados merecem. Por vezes apetece-me recolhê-la entre os braços, mas se insiste nos guinchos há um prenúncio de violência doméstica em mim, uma raiva a nascer-me nos dentes e uma força a crescer-me nos dedos quando abro a porta da cozinhaque depois desce pelas pernas e enquanto desce se vai civilizando, transformando-se no mero empurrão que dou na cadelinha com o peito do pé e ela toma por brincadeira. Na ressaca, aqueles guinchos chegam a dar dó, mas o declínio da higiene doméstica devido aos animais de estimação é algo que me perturba e esta é uma das poucas manifestações de retenção anal que tenho. Ainda hoje sinto o cheiro a mijo de gato entranhado nas alcatifas de um apartamento mobilado ao estilo possível da aristocracia decadente, um lugar onde não entro vai para mais de  quinze anos e que devia ter aproveitado para grandes deboches e não trabalhos de grupo sem brilho que renderam boas notas. Por isso, como ontem, lavei hoje as patinhas do animal no lava-louças. Maria tem o tamanho ideal, põe-se de quatro lá dentro e as suas patas ficam cobertas por três dedos de água morna com detergente muito diluído. Preciso de substituir o detergente por um produto mais adequado, para poder aumentar a dose, mas o bicho  sai de lá limpo. E parece gostar de água, embora não tenha as membranas interdigitais do pai, do Daffy Duck, do  Patrick Duffy. Sonho já com caminhadas de Inverno na praia da Arrifana. Só nós dois. 

27
Jan09

Também tenho algo a dizer sobre a seta do tempo


Eremita

A propósito de The Curious Case of Benjamin Button, tenho um texto que junta uma reflexão sobre  F.Scott Fitzgerald, Martin Amis, H.G. Wells, Alan Lighman e Zemeckis. O texto inclui ainda uma reflexão sobre um conto meu, se me permitem a arrogância. Como se não bastasse, o conto não está publicado, nem sequer escrito. Digamos que o conto viria citado como uma personal communication que seria também uma autocitação, o que me parece um conceito curioso e levemente irónico neste contexto das brincadeiras com o tempo. Também o facto de estar aqui a referir-me a um post que só existirá a 7 de Fevereiro tem a sua graça. O texto é muito bom - ainda não o escrevi mas já li as críticas.

 

26
Jan09

Maria


Eremita

 

 

Há uns meses, já em Ourique, postava: quem consegue ser mais convincente a escrever sobre o amor dos cães, Houellebecq ou Manuel Alegre? É uma pergunta retórica. Não li Cão como nós, mas consigo imaginar. Houellebecq é mais pungente e ganha ao poeta porque nele é maior a diferença entre a forma como  se refere às pessoas e ao cão ou, pelo ar de burguês bem mimado de Alegre e a acreditar no que escreve o francês, é maior neste a diferença entre o carinho que as pessoas e o cão lhe dão. Houellebecq pode ser um poseur, só que resiste ainda e sempre à sua fama. Em parte, por ser feio. Agualusa não seria credível, mas Houellebecq nem sequer precisa de insistir na entrevista performance, com um olhar se percebe que há neste homem um défice de carinho que nem a fama planetária nem a conta bancária  astronómica remedeiam. São por isso belas, ainda que triviais e até de uma lucidez desencantada, as palavras que dedica ao cão em La Possilité d'une île. O cão é mesmo a mais perfeita das máquinas de amar, o que gera outras questões. Será lícito fazer dele um substituto de um filho que não se teve? Um filho é uma máquina bastante imperfeita de amar, basta ter tido um ou convivido com os progenitores para se concordar. Um cão terá então de ser de outra coisa qualquer. Talvez um rafeiro alentejano. 

 

Postei como quem aposta e ganhei, mesmo se não é um rafeiro alentejano. Contente? O meu eremitismo está agora ferido de morte; se sobre o  Ouriquense nunca chegou a pairar a sombra do ciúme, paira agora, monstruosa, a sombra do puppy blog; adio os russos, que a minha vida hoje é limpar o chão da cozinha dos cagalhotos da Maria. Mas aceito por fim que um cão desperta no dono sensações mais ricas do que um cágado. Não falo de cor. Tive um destes répteis em criança, de resto um cágado alentejano apanhado na ribeira do Cotovio e levado depois para Lisboa. O animal desapareceu tragicamente - queda da varanda - e nunca mais foi encontrado, nunca se fez o seu luto. Poderia ainda pairar nos meus sonhos, como pairam por aí Elvis, Morrison, Maddie. A verdade é que nunca despertou em mim qualquer compaixão. Já não ter dado com a Maria logo que hoje entrei em casa induziu uma forte sensação de culpa e ansiedade. Afinal o bicho estava só escondido debaixo da roupa estendida e não havia ligado o gás, saltado para dentro do forno, fechado a porta (esta coisa dos tripletos é viciante). 

 

 

 

23
Jan09

Tripletos*


Eremita

 "XXXXX, tem de cortar cabelo. Mais bonito. Mais jovem. Mais simpático."

 

Isto acaba de me dizer Tatiana, tinha eu as compras já dentro dos sacos de plástico. Como soube ela o meu nome? Há quanto tempo me observa? Cheguei aqui em Julho, com  o cabelo cortado a pente 5. Creio que o cortei mais uma vez em meados de Novembro. Fui fazendo a barba só ao domingo, até ao fim do ano. Estou agora com barba de duas semanas, menos bonito, menos jovem, menos simpático. Tenho reparado ultimamente que as pessoas recorrem muito a tripletos - não era só o Conrad. Que coisa boa, esta revelação. Apetecia-me ficar a escrever um longo poema de amor toda a manhã. Sucede que ao acondicionar os 48 rolos de papel higiénico no armário tive uma ideia para um conto: um homem chega a casa vindo do supermercado e apenas comprou rolos de papel higiénico (48 rolos). A mulher protesta, dizendo que é um exagero. Discutem, percebe-se que há atritos antigos entre os dois. No dia seguinte, acordam com a cidade debaixo de uma tempestadade. Há um enorme nevão, que lhes bloqueia a porta (estão numa vivenda? E as janelas? Isto precisa de ser trabalhado). Passam-se dias e o nevão só se intensifica.  A cidade entra em colapso (pilhagens, falta de mantimentos, etc), mas a distopia só é descrita pela janela da sala deles, que nunca chegam a saber exactamente o que está a suceder (isto para introduzir alguma subtileza e tornar também o leitor refém da claustrofobia doméstica) . O casal começa a ficar com poucos alimentos em casa. A mulher lembra o absurdo de ele ter comprado 48 rolos de papel higiénico e não haver comida em casa  - passam ideias horríveis pela cabeça do homem. O casal começa a tentar comer partes da mobília (usar aqui algum humor negro, recriar a cena das solas dos sapatos, de Chaplin, brincar com "arroz de caruncho" e afins). Mais dias. O homem faz pirâmides na sala com os rolos de papel higiénico (e aqui entraria uma reflexão algo pedante sobre o fim do mundo, temperada pela ironia da própria personagem, que mistura a escatologia dos excrementos com a da teologia - "Ah, eis que consigo finalmente uma compressão da polissemia!", dirá ele, já perto da loucura). O conto acaba com a mulher ainda viva,  enrolando o corpo do marido nos 48 rolos de papel higiénico (nota: fazer dela uma egiptóloga, com conhecimento das técnicas de mumificação; falar de óleos com alguma propriedade e um léxico rico, para contrastar com a banalidade do único óleo que ela tem à mão, que é o Fula). Houvesse justiça no mundo e este conto seria publicado na revista Ficções, para quem há filhos, enteados, bastardos. 

 

*"tripleto" não existe em português, mas "trio" não capta o sentido que pretendo. A proximidade com a vila de Odemira (37.3 km)  pode ter sido determinante para esta escolha.

 

21
Jan09

Ave verum corpus


Eremita

 

Esta noite, em casa do inventor, deu-se uma daquelas coincidências órfãs de plateia, isto é, que dizem algo apenas à pessoa que as experimenta, sem que adiante estar a fornecer ao outro todos os elementos que julgamos necessários e suficientes para partilhar o espanto. Naturalmente, poupar-vos-ei aqui a tal proselitismo e o que se segue apenas me serve. Há uns dias coloquei no Ouriquense um vídeo com o Locus iste, de Bruckner. Trata-se de um peça para coro, muito simples, muito bela, muito popular entre os coros amadores e totalmente desconhecida do resto da população, inclusive dos melómanos. A peça diz-me muito porque em tempos cantei num coro e aqueles foram anos felizes. Há poucas experiências musicais superiores a estar dentro de um acorde e para mim o prazer de cantar no coro vinha exclusivamente da harmonia. Gozo superior só tive quando um solo de guitarra sobre uma outra guitarra me saía bem, o que não aconteceu muitas vezes. Cantar num coro é também uma experiência que, a posteriori, beneficia muito do estereótipo do "menino do coro". Pode ser que o estereótipo seja válido para meninos propriamente ditos, mas entrar para um coro aos 18 ou 19 anos é sobretudo ser posto perante a angústia de uma decisão: contralto ou soprano? Se há coristas que seguem o Ouriquense, abdico momentaneamente  da suspensão do proselitismo e o conselho é inequívoco: apaixonem-se por uma contralto. Se não se conseguirem apaixonar por uma contralto, mudem de coro ou de orientação sexual, mas não cedam nunca às sopranos. Uma soprano  é uma mulher má com uma voz boa e não há cá serpente, não há mais mistério. Bernard-Henry Lévy casou com uma soprano. Parece-vos um homem feliz? Justamente. Trata-se da excepção que confirma a regra.

 

Mas retomando: em casa do inventor, não tendo eu abandonado a janela de onde contemplávamos os baloiços da casa do meu tio, o meu anfitrião afastou-se de mim, sem que tivesse perdido o fio ao seu raciocínio (apenas subiu o volume de voz em conformidade com o afastamento), para logo voltar. Instantes depois, dir-se-ia mais atrás que detrás dele, ouviu-se uma orquestra. Era o começo do Ave verum corpus, de Mozart, uma peça muito  simples, muito bela, muito popular entre os habitantes do planeta minimamente educados. 

 

(cont)

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