Pausa II
Eremita
Reparei hoje que a escrivaninha do meu quarto tem uma gaveta. É tempo de recuperar o velho hábito de escrever para ela. A gaveta.
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Eremita
Reparei hoje que a escrivaninha do meu quarto tem uma gaveta. É tempo de recuperar o velho hábito de escrever para ela. A gaveta.
Eremita
Salvo uma críptica e fugaz referência, a minha ida de bicicleta à Praia da Galé, em Agosto, não ficou aqui registada. Cheguei com J., pouco depois da hora de almoço e ele partiu no dia seguinte. Pernoitámos num quartos-rooms-chambres-zimmer com direito a pequeno-almoço. A senhora era simpática e o seu filho também, uma criança de 12 anos, que não parou de nos mostrar os seus brinquedos. A certa altura, trouxe uma cana de pesca e eu fui invadido por uma vontade louca de pescar. Já depois de J. se ter despedido, perguntei à senhora onde poderia comprar uma cana e isco. Disse-me que não sabia, mas sugeriu que levasse a cana do filho e os seus apetrechos. A criança correu a ir buscar uma caixa de plástico e fitou-me depois com incontido orgulho, fazendo uma pausa. Só então abriu a tampa. Elevando-se como dois palhaços preguiçosos de uma caixa-surpresa, os azóis, as bóias, os iscos de plástico e as chumbadas apareceram meticulosamente dispostos nos diferentes compartimentos de 3 níveis desencontrados. Ficou combinado que iria ao fim da tarde. Felizmente, a mãe teve o bom senso de contrariar o desejo do miúdo e quando voltei a casa, por volta das seis, depois de uma tarde de leitura na praia, foi para sair sozinho, só com a cana e os apetrechos.
(cont.)
Eremita
O toque de Tatiana não deixou cheiro. Farejei a minha mão à saída, discretamente, mas como um rafeiro que se afasta da rua principal para poder vasculhar no lixo a toques de focinho. Nada. Tatiana é inodora. Ou então apenas acusei um excesso de expectativas e a culpa é da terrível aliança entre a indústria de perfume e a cosmética. Repare-se na evolução do batom. Começou por ser um simples pau de carmim, que coloria os lábios e deixava marca na pele que a mulher beijava. Veio depois o avanço técnico que servia uma necessidade premente: beijar sem deixar rasto. O beijo secreto deixou mesmo de ser coisa pública. Mas a seguir alguém se lembrou de juntar ao batom sabor e, sobretudo, cheiro. Um cheiro com um raio de acção de centímetros e que tem no lugar do beijo o seu epicentro. Por outras palavras, como o cheiro é um poderoso mobilizador de memórias, o beijo continua presente na cabeça de quem foi beijado quando já ninguém dá por isso. Mesmo rodeado de familiares idosos ou até ao lado de um pároco, não se fica então a salvo dos pensamentos mais pecaminosos. Por causa da evolução do batom, o beijo privado deixou de ser público, o que é útil, mas o simples beijo público na face passou a ser privado, o que é terrível.
Eremita
Estive uns dias a evitar a Tatiana; não me sentia bem. Mas como a melancolia não acabou com o vício do gaspacho, continuei a ir ao Pingo Doce, embora me fosse aviando numa caixa que não era a dela. Quando o ânimo voltou e a vontade de estar com a Tatiana também, notei que estava mais solícita. A minha melancolia acabou por funcionar como uma acidental manobra de charme. Foi agradável. Só hoje, ao pensar sobre o assunto, me dei conta de que estas manobras de charme ou são consequentes, ou então devem prescrever, sob o risco de se transformarem numa insuportável rotina. Foi talvez um refluxo de melancolia e Tatiana nem sequer merece esta ansiedade, pois apenas nos tocámos nos dedos e foi por acidente, quando ela me entregava um talão.
Eremita
Não havia rosto mais complexo na rotina de Lisboa do que o do peão que me fixava nos olhos quando parava o carro diante da passadeira. Uns pareciam agradecer-me, mas com a altivez de quem reconhecia estar a usufruir de um direito. Outros pareciam indignados, mas com a autocensura de quem sabia que eu cumpria o meu dever. E havia uns terceiros, que pareciam estar agradecidos e indignados ao mesmo tempo, sem que nem estes dois sentimentos nem as suas respectivas modulações intrínsecas se anulassem. Eram rostos que exprimiam quatro estados de espírito em simultâneo e levar com isto todas as manhãs era um confronto demasiado recorrente com a humanidade.
Eremita
Não leio o jornal todos os dias, mas hoje voltei a encontrar evidências de que a profusão de gralhas nas colunas de opinião do Público é a sua marca de água. Na coluna de José Manuel Fernandes, Garibaldi entra na máquina do tempo e é em 1949 que se dirige aos seus soldados, dizendo: "não prometo um soldo, nem quartéis, nem mantimentos. Ofereço fome, marchas forçadas, batalhas e morte". Na última página, a coluna de Pulido Valente também cumpre - e é pena, pois hoje temos um belo texto sobre Cardoso Pires e não a recorrente prosa catastrofista sobre a nossa pequena política. Podemos então ler: "até porque no fim da vida o esquecerem mais do que ele merecia" e "aguentou impassível uma absurda crítico a o Anjo Ancorado, que publiquei num jornal universitário". A gralha tem um charme particular porque nos remete sempre para o instante em que terá sido escrita e para as circunstâncias que fizeram com que pudesse ter escapado às revisões. É como se a língua imaculada fosse um espelho de água e a gralha uma súbdita e discreta onda, que se imagina concêntrica e provocada por uma pedra que gostaríamos de recuperar do fundo.
Eremita
Ao íntimo comum associo um pudor que está para lá do receio da simples exposição. É sobretudo uma reverência. Não quero ser a rapariga que anuncia às mais velhas o seu primeiro sangue como uma revelação, o que só despertaria piedade, cólera ou riso.
Eremita
A estrangeira de Ourique dirigiu-me a palavra quase sem abrandar o passo, como se soubesse à partida que eu não seria capaz de articular uma resposta. Fiquei a vê-la, até dobrar uma esquina. Alguns transeuntes começaram então a barafustar com o barulho que vinha da minha janela - e eu pensei: " quando tocar o Mixtur 2003, na versão retrogradada, vão-me apedrejar os vidros". Mas só por ali ficou o bêbado da vila, que trocava grunhidos com as vozes fantasmagóricas. Quando iniciei o Mixtur 2003, que é um tema electro-orquestral, o bêbado protestou. A estrangeira voltou a passar pela rua e teria sido sublime e cómico se o tivesse feito em caminhada retrogradada, o que implicaria descolar-se em passadas para a rectaguarda, mas parecia inclusive ignorar-me. Ainda me dediquei ao jogo de apostar que ela me iria oferecer um olhar antes de desaparecer da minha vida. A instantes de perder a aposta, praguejei baixinho por não ter um CD do David Bowie nem saber cantar em inglês.
Eremita
O chador - creio que também lhe chamam burka afegã - é aquela mortalha para vivos que oculta a totalidade do corpo, uma peça de roupa que é o cúmulo da ortodoxia. Ao invés, a burka sensu latu é uma peça de vestuário que cobre apenas a cabeça, deixando uma tira destapada, por onde espreitam os olhos. Literalmente e por comparação ao chador, a burka revela alguma abertura. Mas para atingir o grau de ocultação do chador, a burka só precisa de um acessório de roupa, geralmente tido como um símbolo de sofisticação, conforto e autonomia: os óculos escuros. Dito assim, detestar óculos escuros é quase um imperativo ético. A estética é segundária; quem quer ficar bem de óculos escuros, em vez de que procurar um modelo caro deve antes vazar um olho. Tudo o resto é fraqueza.
Quando nos encontrámos pela primeira vez, lembro-me que lhe tirei os óculos escuros e logo ela se livrou da roupa. Da última vez, ela não tirou os óculos e eu evitei olhá-la. Para que não a descobrisse ainda nua e esta fraqueza não se esgotasse num derradeiro efeito de óptica, o jogo dos espelhos - as lentes dela e os meus olhos - a reduzir aquela nudez a coisa microscópica e a sua génese a uma incerteza, por causa da velocidade da luz. Se tivesse ficado em Lisboa, o mais provável teria sido ceder e comprar uns óculos escuros. Mas aqui na planície tenho um olhar duro, como o Clint Easwood dos Western Spaghetti. Não custa fitar os sobreiros e as rugas são bem-vindas.
Eremita
Informa-se que o novo livro de Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo – súmula e inédita, esgotou no armazém da editora e não será reeditado. Estão disponíveis, portanto, apenas os exemplares colocados nas livrarias". Luís Guerra Salvo erro, o livro mais antigo que tenho de Herberto Helder diz na badana que o autor deixou de escrever em 1969. Bardamerda. Também Lobo Antunes está sempre a ameaçar que o próximo livro será o antepenúltimo - fórmula de largo espectro, pois assusta os seus fãs e os seus e detractores. Marketing? Flirt com a eternidade? Caprichos, seguramente. Mas fonte segura informa-me que Herberto Helder tem mesmo esta mania. Mais: que Helder, o vagabundo saltimbanco, é... accionista da Assírio & Alvim, a sua editora. Deve ser mesmo verdade. Mano! FNAC, esta noite, por favor... Herberto Helder accionista. Ninguém percebe mesmo o mercado.
Envelhecer é uma merda! Estava com saudades tuas, ...
Saúdo vivamente o regresso dos textos de O Ourique...
Nem eu...
Ignoro com que sensação o Eremita publicou estas 1...
Significado de Imbecil ... adjetivo Desprovido de ...