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Eremita
Optei por lhe dizer que fim contava dar aos tupperwares porque gozo de um capital de tolerância junto da família para estas excentricidades. Creio que sempre os respeitei por isso, nunca chegando a abusar da excentricidade ou - o que seria grave - a tornar-me um falso excêntrico só para os impressionar. É claro que ele me perguntou depois sobre o (desem)emprego, onde eu morava, quanto pagava de renda e se já tinha feito as contas à herança - uma coisa é tolerância, outra falta de interesse. Discuti estes tópicos com ele no café, perto da Mó - não quero levar ninguém a minha casa. Procurei sossegá-lo e menti, sabendo que era uma mentira com limite de validade, isto é, capaz de a prazo se tornar uma verdade. Creio que esta é a forma mais nobre de mentir, muito mais do que fazê-o por piedade, mentira que tarde ou cedo acaba por revoltar alguém, enquanto a outra cedo ou tarde incita o próprio a usar o futuro para corrigir o passado e com uma taxa de sucesso apreciável, apesar da ligeira sensação de vertigem. É por isso que vou agora ter de começar a enviar o currículo às revistas de viagens que disse já ter contactado. O meu plano é usar a liberdade de que um eremita goza em Ourique para me tornar escritor de viagens. Admito que isto não seja sonho de eremita, mas o paradoxo é apenas aparente. Não conto sair da vila, as viagens serão inventadas. Enganar futuros turistas não me causa grandes problemas de consciência. Estar desempregado, curiosamente, perturba-me. Por muito que me custe concordar com nazis (que se apropriaram da expressão, faço notar), o trabalho liberta.
O mano despediu-se ao fim da tarde. Com uma pilha de tupperwares ao lado, fiquei a acenar até o carro dele desaparecer de vista. Chegou a apetecer-me pedir-lhe que me levasse de carro até à barragem. De bicicleta é uma estucha, mas a principal razão é que com ele ao volante sinto-me mais seguro do que um filho a ser conduzido pelo seu pai. Os irmãos mais velhos exercem seus estranhos poderes sem disso se darem conta.