O BICHO Pensei em fazer esta viagem com umas sete ou oito pessoas diferentes. É mania que dura há anos, talvez desde o Thelma & Louise. A primeira parceira foi Geena Davis, só que a moça depois cresceu um bocadinho demais e para todos os lados, como se um soprador de vidro a tivesse insuflado pelo umbigo. Logo a troquei pelos meus amigos. S., T., H., um pequeno alfabeto de homens e mulheres, promessas reiteradas, sonhos partilhados. Ninguém. É difícil sincronizar o desejo e poupem-me ao exemplo do orgasmo simultâneo, esse truque fácil para o reforço da empatia. Sobrei eu e o bicho. Fui passeá-lo ontem de madrugada. Fiz a FDR com o vidro aberto, gozando no rosto a aceleração aparente desta atmosfera quente e estagnada. As superfícies metálicas, como os corpos suados, gozam da propriedade ambígua que é rechaçar a luz deixando marca. São reflexos com direito de autor. Relembro-o por causa do anúncio gigantesco da Coca-cola em letras encarnadas de néon do outro lado do rio, ali na fronteira entre Queens e Brooklyn, que não passa cartão aos táxis amarelos mas gostou do azul-escuro do bicho e andou a brincar pelas arestas da carroçaria, mesmo se o East River - não sendo um rio - é caudaloso e em tempos quase afogou um surfista australiano (factual).
A cidade muda quando se guia, o que ontem aconteceu pela segunda vez em 5 anos. Na primeira, andei por aí com uma carrinha de mudanças desconjuntada que fui buscar ao Harlem. Agora foi de Mustang. Dá ares de sonho americano, só que é tudo uma ilusão, como ilusório parece ser arrumar o carro na East Village, uma zona da cidade que só atrai estudantes e remediados mas que deve ter moradores em número suficiente para saturar os lugares de estacionamento. Ignoro se a regra de ter de mudar o carro de sítio todos os dias ou ao segundo dia ainda existe, mas às duas da madrugada as ruas estavam lotadas e não havia movimento. Voltei a casa sem sair do carro. Enfim, serviu o passeio para me acostumar ao bicho, tomar-lhe as medidas. Ganhei o golpe de vista necessário e experimentei no fim um certo orgulho por não o ter riscado, sobretudo porque me cruzei com vários taxistas paquistaneses.
Já em casa, não resisti a descer à rua uma última vez, sob pretexto de verificar se havia recolhido o espelho reflector. O que queria era sentir o bicho mais uma vez. Coloquei as mãos perto motor, senti um vestígio de trepidação e a chapa morna. O bicho parecia um mamífero de verdade.