Um homem sob suspeita
Eremita
Ainda não vos falei de Adriano. Não estava nos meus planos, pois pensei que ele fosse um conhecido do Judeu e que estaria apenas de passagem. Afinal é filho dele, o que só vim a saber durante o nosso terceiro jantar a três. Adriano tem um discurso críptico e quando abre a boca parece que lê o que momentos antes inscreveu na memória. Como já lhe topei o tique de fechar os olhos antes de começar a falar, tenho conseguido gravar algumas das suas declarações no telemóvel. Como esta:
Aprende-se a olhar no escuro. A luz é para ser gozada da penumbra para fora. Comecemos pelo reverso de uma pálpebra de súbito fechada. Há ali mil imagens que nos fogem: cornucópias efémeras de um psicadelismo discreto e círculos excêntricos que lembram fogos-de-artifício. De onde surgem estas visões? Provarei um dia que são as sombras em negativo das imagens da memória. Que são sinais de rebelião. Dentro da cabeça comandamos as imagens como marionetas, menos o espectro delas, que brinca no reverso das pálpebras e parece querer rasgá-las.
Só no fim abriu os olhos, que ficaram parados. Perguntei-lhe depois se queria um chá de menta, mas não tive resposta. Foi o Judeu a comentar: "ele foi sempre assim, um inútil. Fica aqui a aturá-lo, pois tenho uma retorta a destilar".