A educação pornográfica de Inácio Ramalho
Eremita
[republicação]
Foi na qualidade de cadete do colégio militar que Inácio Ramalho se iniciou na pornografia. Porque o desejo antecedeu em dois meses a competência para a masturbação, a data precisa depende do critério que se considere relevante, mas na primeira e na segunda foi usada a mesma revista, o mesmo número e até o mesmo exemplar. Como sempre acontece nos colégios, um colega empreendedor dominava o mercado negro da distribuição do material. Este rapaz cedo percebeu que o verdadeiro negócio estava no aluguer, mas optou por não plastificar o seu espólio, pois o papel autocolante transparente era caro e aplicá-lo sem deixar bolhas de ar uma tarefa difícil para quem tivera negativa na disciplina de trabalhos manuais. A sua solução foi penalizar quem não devolvesse a revista como a recebeu; de início a penalização foi pecuniária, mas a dado momento passou a ser uma interdição de novos alugueres durante um mês, fórmula que vingou. Foi assim que Inácio desde o início adquiriu hábitos de higiene rigorosos, primeiro com papel higiénico e a seguir com guardanapos descartáveis, que têm uma folha mais absorvente e o tamanho certo.
A primeira namorada tocava-lhe como se ele não existisse da cintura para baixo, o que acentuou o consumo de pornografia. Livre das restrições do colégio, Inácio havia aderido com entusiasmo à filmografia centro-europeia, que consumia em vídeo, depois de uma experiência desagradável numa sala de cinema. O namoro durou pouco tempo.
Inácio perdeu a virgindade e o vício da pornografia com a segunda namorada, que viria a ser a sua primeira mulher. Por comparação, o sexo verdadeiro parecia-lhe mais satisfatório, inclusive quando acabava. Na pornografia, Inácio experimentava sempre uma ressaca de culpa, que atribuía à disciplina militar e à catequese. Com a sua mulher essa sensação de ressaca desaparecera e dera lugar a uma satisfação muito próxima da felicidade, sobretudo ao sábado de manhã, se o céu estava limpo, o esquentador não falhava e não haviam usado preservativo. Era um prazer tão intenso e compensador que Inácio só voltaria a cruzar-se com a pornografia ao surpreender o filho adolescente de calças desapertadas no sofá da sala, diante do televisor, num dia em que voltou do trabalho mais cedo do que era habitual.
A mulher de Inácio acabaria por sair de casa para ir viver com o amante. Inácio não aceitou bem a separação e depois de umas aventuras inconsequentes acabou por voltar a cair no vício da pornografia. De início, recuperou as velhas rotinas e na aparência lembrava um adolescente. Mas se a pornografia começa por ser uma cábula da imaginação, tende a transformar-se num antídoto da memória. Assim foi. Inácio procurava expulsar as imagens eróticas que a sua ex-mulher lhe deixara e o mobilizavam insistentemente. Daí a escalada que começou na contemplação da rotina onanista de uma mulher asseada e ao fim de algumas semanas já envolvia uma loira oxigenada numa estrebaria. Seria a futura segunda mulher de Inácio a salvá-lo desta via de perdição e ele não voltaria a consumir pornografia nas duas décadas seguintes.
A viuvez de Inácio chegou devagar. A mulher fora diagnosticada com um cancro e logo ficou acamada. No início da doença, pedira a Inácio que procurasse junto de uma profissional a satisfação sexual que ela já não lhe podia assegurar. A proposta supreendeu-o vindo de uma mulher tão doce e recatada, dando-lhe coragem para sugerir a opção da pornografia, que de súbito lhe pareceu muito pouco desrespeituosa. A mulher esboçou um sorriso fraco. Viria a falecer meses depois.
O luto de Inácio incluiu o nojo da pornografia. Por a ter consumido enquanto a mulher definhava, a culpa, que antes vinha na ressaca, instalou-se a montante e passou a ter um efeito dissuasor. Assim se passaram muitos anos, em que o natural acumular de tensão sexual foi sendo dissipado pela progressão da velhice, num equilíbrio dinâmico. Até ao dia em que Inácio deu com uma publicidade a um detergente de máquina.
A alteração do papel desempenhado pelo homem no lar levara a mudanças na publicidade. De exclusivo dos anúncios das cervejeiras e das marcas de carros, a publicidade com figuras femininas carregadas de sexualidade extravasou para outros mercados, como o dos detergentes de roupa e amaciadores, que antes tinham por público-alvo donas de casa, tias e avós. Mas Inácio era de outro mundo e o confronto com a modelo peituda espojada sobre uma pilha de toalhas turcas veio com um misto de surpresa e excitação, num contexto redentor, pois nem um mamilo se topava. Gozar o sorriso maternal da modelo na garrafa de amaciador passou a ser o momento alto das manhãs de Inácio. Depois também das tardes. E das noites. Inácio reencontrava um fulgor sexual e, pela primeira vez, não se sentia culpado, nem a montante, nem a jusante. Esta liberdade de consciência conduziu-o à obsessão, embora seja impossível estabelecer, com rigor médico, se Inácio efectivamente se masturbou até à morte. Em todo o caso, quando o filho forçou a porta de entrada da casa do pai, que andava desaparecido, deu com o cadáver na casa-de-banho e uma garrafa de amaciador na cama. Por não ter levantado a tampa da sanita, o filho não chegou a saber que um guardanapo, até então preso à louça da retrete acima do nível da água, seria arrastado pela descarga de água do autoclismo para os esgotos da cidade.