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Eremita
Sempre que alguém revela ter descoberto uma parecença, seja no campo da fisionomia ou das artes, avanço com indisfarçável curiosidade, porque é como se uma alma alheia se expusesse por uma fresta. No caso presente, não tive dificuldade em encontrar paralelos entre as melodias recorrentes na banda sonora Letters from Iwo Jima e Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, sem que por isso tivesse experimentado aquela frustração sadia que tantas vezes se exprime por um "como é que não me lembrei disto?". É verdade que as melodias têm uma extensão semelhante, só que a de Letters é ligeiramente mais longa, e os arcos que descrevem, inicialmente sobreponíveis, acabam depois por se afastar. Talvez a associação resulte do intervalo inicial (uma terceira menor) - que na Promenade tem uma nota de passagem - mas ainda me parece fraca, pois a melodia de Mussorgsky é muito assertiva, contrastando por isso com a fluidez da de Letters, que lhe vem dos elementos sincopados, e também com a sua toada contemplativa, dada pelas notas longas. Creio que mais depressa a associo a uma Gymnopedie de Satie que aos Quadros de Mussorgsky. Enfim, não se trata de rebater a associação nem sequer de sugerir que as notícias de certos furtos são algo exageradas, entrego-me apenas a um passatempo. Nós aqui no campo temos sempre muito tempo.
Adenda: esta melodia ficou a ecoar umas horas na cabeça e foi simpaticamente ao encontro de um fragmento que retive de um dos programas musicais de rádio de um rapaz que escuto sempre com atenção, o compositor e intelectual Pedro Amaral. Ouviu-se então a Missa L'homme armé super voces musicales, de Josquin des Prés. E não é que o Agnus Dei, por volta do minuto dois, segundo trinta e tal arranca assim?
Só ouvido, mas garanto-vos que não se encontra naco de melodia mais parecido ao Letters em todo o Quadros de uma Exposição.