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Eremita
Do triplo salto ganhador de Nelson Évora só se assistiu em directo à aceleração, em segundo plano, e depois ao aparecimento do resultado - 17.67 - num mostrador prestes a sair do enquadramento. Foi um grande grande momento de televisão, olimpicamente ignorado pelos comentadores de serviço. Aqui no café também vibrámos com a medalha, mas isso é mais banal. Apetece agora sugerir a este senhor que aspire com uma palhinha e pela boca todos os grãos da caixa de areia da pista, depois de ter desprezado Évora para provar um supostamente supremo e impoluto gosto pelo desporto, alheio a coisas primárias como o sentimento patriótico. Palermices. Évora saltou mais e melhor, com uma técnica e elegância superiores às do inglês dos penteados ridículos que entusiasmam pessoas com um gosto supremo e impoluto pelo desporto. Como se não bastasse, Évora é um homem bonito, o que é bom para a publicidade, para Portugal e para os portugueses.
Adenda: ouvi na rádio que o tal inglês disse antes da competição ter tanta certeza que iria ganhar que apostou dinheiro nele próprio. Disse também que se sentia o Super-homem. Este estilo é muito apreciado em certos sectores e tende a ser usado para minar o espírito olímpico por aqueles que seguem a interpretação literal do desporto como ritualização do combate tribal. Esta gente tende também a desprezar o fairplay e episódios lindos como este, que manifestamente é incapaz de perceber. Uma velha discussão. Mas com a vitória de Évora houve pior. Involuntariamente fiel ao espírito olímpico, Henrique Raposo conseguiu ser ainda mais cómico, mais ridículo, mais inoportuno. Raposo é um marcialista, óculo que lhe serve para interpretar e formar o gosto em tudo neste mundo, da política internacional ao Russell Crowe, passando pela música pesada. Discípulo insitintivo de Spencer, qualquer dia descobre a Origem das Espécies e a "struggle for existence" cairá sobre ele como uma revelação. Enquanto isso não acontece, aborrece-se com os atletas simpáticos e porreiros. Depois de ter teorizado sobre o assunto, precisava de um exemplo fresco. E descobriu-o num fotograma do rosto de esforço e concentração de Nelson Évora, que de repente deixa de ser o moço das declarações simpáticas e do sorriso desarmante. Perguntaram ontem ao campeão se também ele se sentia o Super-homem e ele terá dito que era apenas o Nelson Évora. Henrique Raposo, que manipula os acervo fotográficos como um lacaio de Estaline mas para benefício próprio, não deve ter gostado.