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Eremita
Dois elementos a usar recorrentemente: os estendais de roupa e o baloiço da casa do tio. Não me convém a fama de tarado por roupa interior - até porque seria injusta - e delegar a missão numa personagem que ninguém conhece e que actua pela calada é uma solução. A tara desta criatura não é por roupa interior feminina, o que seria aborrecido, mas sim por boxers e outras cuecas. Acompanhar-se-á depois a génese de um mito na vila, de dinâmica comparável ao mito urbano, apenas diferente na escala: o homem roubaria as cuecas para curar um desgosto de amor, agravado por ter respondido à convocação para que fosse buscar as suas cuecas a casa da namorada. Impossibilitado de corrigir esse erro diplomático, vergado pela imagem das cuecas lavadas, dobradas e entregues com a solenidade de quem devolve um estandarte que deixou fazer sentido hastear naquelas paragens, só resta a esta desequilibrada criatura roubar todas as cuecas nos estendais da roupa enquanto rosna baixinho: "sou um frouxo, o Chamberlain da cueca". Trata-se de um gesto vingativo, de quem pretende perturbar a harmonia doméstica que lhe foi negada, mas também profundamente idiota, de quem confunde causa com efeito, algo que em antropologia se designa por cargo cult - passo o academicismo.
Quanto ao baloiço da casa do tio, o melhor é fazer dele um objecto com propriedades hipnóticas ou então um mero artifício para a analepse. Explorar também a possibilidade de o baloiço ser usado por um inventor da vila, mistura do cigano Melquíades (Márquez) com o velho Atílio (telenovela O Casarão) que pretendia fazer ouro a partir do esterco que remexia numa banheira. Este inventor julga que a solução para a máquina de movimento perpétuo é um lubrificante feito à base de um azeite por ele muito alterado, obtido a partir de umas oliveiras que só crescem nas redondezas. O homem actua também pela calada, embora os seus propósitos sejam mais nobres e aparentemente menos idiotas. Noite sim noite não, galga o muro da casa dos meus tios para lubrificar os 3 baloiços de forma distinta, imprimindo-lhe depois exactamente o mesmo movimento. Apressa-se a deixar a casa e é da rua principal que mede o tempo que cada baloiço demora a parar. Noite não noite sim, trabalha até de madrugada com base nas observações feitas na véspera. Evitar ao máximo falar da rapariga que muitos anos depois se suicidou e com quem baloucei tantas vezes.