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OURIQ

Um diário trasladado

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02
Jan17

Viver vicariamente


Eremita

Quase todos os grupos de amigos e famílias incluem um elemento que não casou, nem vive em união de facto, nem "constituiu família". Os estereótipos abundam, do amigo que se fez seminarista, ao tio gay, passando pela amiga que sofreu um grande desgosto de amor e nunca mais quis saber dos homens. Bem sei que estes exemplos são anacrónicos, pois há uma crise de vocações, os gays já podem casar e encontraram formas de viver a parentalidade, e nestes tempos de hedonismo e individualismo, em que o grotesco "ama-te" do life coaching é o novo slogan, o amor romântico só existe na ficção. Mas o fenómeno persiste e apenas precisamos de seleccionar ou actualizar os estereótipos. Um  estereótipo que persiste e tem sido tonificado é o do amigo solteirão que entendeu apostar nos amores passageiros e vive picos de paixão sucessivos. Este amigo - dizem-me - é o terror dos casais dele amigos, pelo potencial desestabilizador da sua presença. Já outros defendem o inverso, pois o amigo solteirão, ao contar as suas paixões, oferece uma experiência vicária que atenua as frustrações da monogamia perene. Não me reconheço em nenhum destes cenários contrastantes. Tenho um amigo que se apaixonou recentemente e o prazer que retiro do que ele me conta é bem inocente; não me desperta qualquer inveja, nem me faz sonhar. O meu problema é outro.

 

Tenho um amigo que vive na Alemanha e me visita no Natal. Não lhe conheço vida passional, nem o assunto é tema das nossas conversas. Este amigo organiza a sua vida profissional para poder andar um mês inteiro de férias, viajando quase sempre sozinho. Mesmo quando não acabou de vir de um sitio exótico como a China, o que ele conta desperta-me o interesse, como a sua recente viagem da Alemanha a Portugal num daqueles carros carismáticos que pedem nome próprio, uma velha carrinha Volkswagen que chega a dar 80 km/h, mas, como ele diz, "apenas no meu conta-quilómetros". Ao cair da noite, o meu amigo "virava na primeira à direita", procurava um sítio tranquilo onde estacionar a carrinha, comia qualquer coisa e praticava as partes de clarinete da peça que a banda apresentará no princípio do ano, para depois se deitar no colchão que leva na parte de trás da carrinha. Para que se perceba onde quero chegar, convém que não nos fixemos em detalhes como o astado de asseio do colchão e a logística da higiene matinal. O importante é o meu amigo virar na primeira à direita ao cair da noite. Há quanto tempo o leitor não vira na primeira à direita apenas porque acabou de escurecer, sem querer saber a que lugarejo foi dar? Há quanto tempo não pratica um instrumento à beira de uma estrada? Imagine um som de clarinete ao lusco-fusco escapando-se do interior de uma carrinha Volkswagen; não precisa de ser o Adagio do  K.622 de Mozart,  Gershwin ou um tema Klezmer de grande virtuosismo, servindo até uma passagem aborrecida de marcha militar para compor a harmonia, sem melodia que se queira assobiar. O meu amigo fez paragens perto de Marselha e de Málaga, para praticar escalada. O que importa aqui reter: na escalada, tem-se a vida literalmente por um fio, pois é um colega de escalada que segura o cabo de segurança. Ora, viajando o meu amigo sozinho e sem nada ter combinado sobre encontros nos arredores de Marselha e Málaga, concluímos que entregou a sua vida à consciência de um estranho. Isto sucede connosco todos os dias, bastando andar na rua, mas não com a teatralidade da escalada. 

Continua. 

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