Um fanático calculista
Eremita
Hoje, no Expresso, Henrique Raposo volta a esmagar o leitor com a sua fé e as suas citações da Bíblia, usando como pretexto a reconversão de Clara Ferreira Alves. Raposo não é um reconvertido, é um ateu que se converteu aos 35 anos. Como bom católico, o cronista dá provas de uma pungente humildade, ao diminuir a sua fé quando comparada com a fé de quem foi doutrinado desde a infância. Diz ele que lhe falta o "sexto sentido", que a sua fé é muito intelectualizada. Não surpreende. Raposo já tinha dado vários sinais de que chegou à fé por calculismo, para compor o seu boneco mediático, porque o catolicismo fica a matar num jovem conservador de origem humilde que procura o contraste extremo com o egoísmo e a arrogância ateístas da pós-modernidade. Num país culturalmente católico, que junta meio milhão de pessoas em Fátima e gera uma cobertura mediática só equivalente à de um Europeu ou Mundial de futebol, que ainda não aprendeu a separar bem a Igreja do Estado, que tem uma estação de rádio e uma universidade católicas (ambas influentes), intelectuais católicos a perorar de todos os púlpitos mediáticos, incluindo padres (como o estimável Anselmo Borges, o ubíquo e venerado Tolentino Mendonça, o simpático Bento Domingues ou o inenarrável* Gonçalo Portocarrero de Almada), e em que algumas das mais relevantes figuras públicas são católicos convictos (o Presidente da República e Fernando Santos, por exemplo), Raposo, que escreve no Expresso e fala na Renascença, consegue ver-se como um "cultural warrior" (expressão cara a Bill O'Reilly, ex-apresentador da Fox News) e imagina-se um herói ao afirmar-se em público como católico. Naturalmente, esta percepção explica-se pela perda de influência do catolicismo, que é inegável mas exacerbada por Raposo para criar uma fantasia conveniente, pudesse ele livrar-se do ridículo e da constatação de que é incapaz de aceitar mundividências diferentes da sua, por ele sempre caricaturadas em jeito de desafio.
Enfim, admito com embaraço o meu fascínio pelo pensamento esquemático e reactivo desta criatura. Há umas semanas, num longo texto, Raposo escreveu que não sente o apelo de Fátima e que a lógica contratual do pagamento de promessas o irrita, para depois nos dizer que aceita Fátima como uma porta de entrada no catolicismo que ele estima, que é o do Livro, sem lhe ocorrer que a lógica contratual sempre foi a essência de uma organização que publicita a vida eterna e inventou o confessionário, um guichet em se compra o alívio de consciência pela prática de uns rituais.
Talvez a grande diferença entre o reconvertido e o convertido não esteja no "sexto sentido". O reconvertido parece-me alguém pacificado com a sua decisão, enquanto o convertido, eventualmente pressionado pela síndrome do impostor, ganha uma insuportável pulsão evangelizadora. Que alguém explique a Henrique Raposo o seguinte: no peito dos ateus também bate um coração; eles têm angústias que vão além do materialismo e pressentem algum "mistério", mas percebem que seria contraproducente congregar gente em torno da ideia da inexistência de Deus, uma figura que lhes parece supérflua como mediador da solidariedade e empatia entre os homens, e facilmente manipulável por alguns em proveito próprio, pelo que não se deixam conquistar por explicações confortáveis e preferem carregar o peso da finitude da existência a abdicar da razão, sem que por isso sejam escravos de algum cientismo. Expliquem-lhe, mas sem grandes esperanças, pois o Raposo, deformado por anos de colunismo, não se dá bem com as nuances e continuará a exibir o seu catolicismo de conveniência e a sua biografia ficcionada.
* Sugestão de Xilre.