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Ele era um trendsetter, um opinion-maker e mais do que isso: um life coach, um guru, até um sacerdote laico. Reverenciado pelos progressistas e odiado pelos conservadores, a sua reputação atingira o patamar em que qualquer acção sua assumia enormes proporções. Presença ubíqua nos media com impacto transversal a todas as classes sociais, era já conhecido apenas pelo nome próprio: Daniel. Também o seu programa de rádio, antes intitulado, "Vibrações Boas", também a coluna no jornal, a que chamara "Sexo à Sexta", também a sua longa série televisiva, "O Ponto G", também "A Posição do Missionário", o ciclo de palestras dadas por todo o país a cada Primavera, enfim, toda a sua produção acabara de ser rebaptizada com o mesmo nome: Daniel. Naturalmente, a sua biografia não escapou a este baptismo, apesar da pequena variante: "Eu, Daniel". Foi um bestseller que bateu todos os recordes de venda, promovido com grande mestria pela empresa que também geria a imagem de Daniel nas redes sociais e criou para o efeito uma campanha assente no neologismo "danielizar", sendo "E tu, danielizas?" o slogan que lançou o mote. O criativo da agência convencera Daniel com a seguinte argumentação: o nome próprio de um homem grande pode bastar para o identificar, o nome de um homem extraordinário pode pode dar origem a um adjectivo, como "maquiavélico", "aristotélico", "platónico", "marxista" ou "kafkiano", mas são raríssimos os casos de homens cujo nome passa a verbo, apenas lhe ocorrendo "pasteurizar" (de Louis Pasteur), apesar de "gongorizar" (de Luís de Góngora) e galvanizar" (de Luigi Galvani). Daniel acedeu, como antes concordara com a aposta no seu nome próprio.
Como muitos dos homossexuais de São Francisco sexualmente activos nos anos oitenta que sobreviveram à devastadora epidemia do VIH, Daniel pensava que esgotara a sorte quando decidiu emigrar. Estava enganado. Tudo lhe correu de feição no novo país. Foi bem recebido e depressa encontrou trabalho e uma comunidade. A sua língua nunca o prejudicou, antes pelo contrário, mas esforçou-se por aprender a língua local e poucos anos foram precisos para se impor pela palavra. A voz de Daniel, máscula mas calorosa, habitada por uma ressonância que parece reproduzir o eco da nossa voz interior, era irresistível, inclusive para os seus críticos que o escutavam na esperança de ouvir uma inflexão efeminada, que nunca surgia; nos momentos de maior entusiasmo, a voz de Daniel ameninava-se, mas era a voz de um rapazinho, capaz de cativar pela nostalgia o mais empedernido e veterano heterossexual. Também o discurso lhe saía fluído e com grande noção do grau de dificuldade do que estava a comunicar, como se se desdobrasse numa presença extra-corpórea que, logo que algum conceito precisasse de ser esclarecido, lhe segredava ao ouvido: "Daniel, dá um exemplo!" E os exemplos eram sempre luminosos e inspirados, com um entrelaçado de alta e baixa cultura originalíssimo, dito com um ligeiro sotaque e um pudor no uso das expressões idiomáticas - parecia pedir licença por delas se apropriar - que o tornavam irresistivelmente afável.
Daniel estreou-se na imprensa como perito em sexualidade, sem outra qualificação além de ser norte-americano e homossexual. Digamos que se foi fazendo especialista, primeiro muito focado na mecânica e hidráulica do orgasmo, e a partir de certa altura cada vez mais centrado na natureza das relações sexuais e amorosas, bem como na política. Já era uma celebridade quando começou a propagandear a ideia de monogamia intermitente. A intermitência era uma suspensão breve e idealmente regular para se poder gozar o sexo em todas as suas possibilidades aritméticas e geométricas, com ou sem a participação do parceiro. Os conservadores criticaram-no pelo apelo à promiscuidade e entre os admiradores houve alguns desconfiados, pois muitos consideraram a expressão "monogamia intermitente" inútil, por já existir o conceito de "relação aberta". Aos primeiros Daniel respondeu com desprezo, reforçando o ataque ao catolicismo, e aos segundos explicou que na "monogamia intermitente" se valorizava a monogamia, estando o sexo fora da relação reduzido à categoria de passatempo. A expressão vingou, sobretudo entre os menos novos, passando a ouvir-se com frequência nos jantares burgueses, entre elogios ao estilo de vida de Daniel, como uma aspiração que muitos confessavam ser incapazes de pôr em prática.
O companheiro de longa data de Daniel, um indígena apolíneo quase vinte anos mais novo do que o americano, não era uma figura pública. Pouco se sabia sobre este homem inúmeras vezes fotografado pelos paparazzi, com ou sem Daniel, em deambulações pela cidade e a desaparecer atrás de portas de onde só saía na manhã seguinte, sendo estas pernoitas interpretadas pelos tablóides como sessões de deboche e pelos fãs de Daniel como "intermitências", um termo que também pegou. Nas entrevistas à imprensa de referência, Daniel não dava grandes detalhes sobre as suas "intermitências" e mostrava-se um acérrimo defensor da privacidade, não perdendo uma oportunidade para criticar os "profissionais do mexerico". Mesmo no seu círculo mais íntimo, Daniel poucas vezes falava das intermitências, sendo sobretudo óbvio o carinho e desejo com que olhava e ouvia o seu companheiro, cuja voracidade sexual era já lendária entre a comunidade homossexual.
Alguns entre os mais próximos desconfiaram, mas havia as fotografias, ocasionalmente alguém segredava ter já estado com Daniel e o seu companheiro era de poucas falas. O rumor nunca cresceu. As intermitências do casal passaram a imagem de marca da cidade entre as elites, tornando-se icónicas as fotos em que Daniel é visto a sair de madrugada, sempre de óculos escuros, sozinho ou poucos segundos após a saída do companheiro. "Daniel esteve aqui" foi uma frase que durante uns tempos apareceu escrita a tinta branca em alguns prédios. Nos seus programas, Daniel promovia o seu estilo de vida, insistindo na sua superioridade moral face à monogamia corrompida pela infidelidade e no seu valor social quando comparada com as vidas daqueles que apenas buscam o efémero. A seguir à sua biografia, "Monogamia intermitente", misto de ensaio e guia prático, veio a ser o livro de Daniel mais vendido.
Chegou a pagar o sexo que não teve e a comprar o silêncio de alguns. Houve madrugadas em que saiu para a rua em lágrimas, atrás do companheiro. Houve noites em que não saiu sequer, ficando sozinho em casa, bebendo e ouvindo tangos, consumido pelo ciúme, cansado do teatro que montara e odiando-se por ter implorado que ele não saísse naquela noite. Não foi durante um desses serões que começou a escrever o panfleto "Contra a Hipocrisia Patriarcal", que viria a ser bestseller.
Nota: Daniel é uma personagem inspirada em Dan Savage (enquanto figura pública).