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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

17
Mai19

Sandra (4)


Eremita

[Publicado a 25.4.2017]

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Sandra lê com irreprimível gozo que na Malásia, ao abrigo da Sharia, um homem pode divorciar-se da mulher pelo SMS, desde que a mensagem seja clara. Comenta a notícia com a mãe, que se indigna com a reacção da filha e aproveita para lhe dar um sermão sobre a violação dos direitos das mulheres “nesses países”. A resposta sai-lhe lacónica - "Mas têm telemóvel, mãe..." – antes de sair porta fora. Sandra crescera com as novas tecnologias e via no SMS uma forma de comunicação única. SMS enviada era SMS recebida e lida naquele preciso momento, nisso se distinguindo da carta, do postal, do bilhete escrito e até do correio electrónico. Nem extravio, nem tempos de espera. Uma certeza instantânea. Por mais voltas que o destinatário desse, a mensagem chegaria ao seu bolso ou à mala e, para Sandra, era natural partir do princípio de que seria lida de imediato, mesmo na ausência de resposta. Tal entendimento pode gerar ansiedade, mas para Sandra trazia uma vantagem. Ela namorava um homem mais velho, divorciado, com muitas responsabilidades profissionais e que gostava de se deitar cedo. Sandra tinha ternura pelo seu homem, apreciava o conforto emocional e material, bem como o que ele lhe ensinava. Ele amava-a, pelas razões que levam um homem a amar uma mulher. Pernoitavam amiúde, embora com irregularidade, e muitas vezes ela enfiava-se na cama sem o acordar. Sandra apreciava a noite e sabia-se cortejada. Rara era a semana em que, na escuridão de um bar ou numa pista de dança, não se sentia tentada a ceder à tentação. E raro era o mês em que não concretizava esse desejo.

 

Na cronologia fina do desejo, há um derradeiro lampejo de lucidez que precede o momento em que o impulso vence. Sandra aprendera a reconhecer esse instante e a certificar-se de que, onde quer que estivesse, não lhe faltaria rede. Enviava então uma SMS ao seu namorado, sempre a mesma mensagem, em que pensara aturadamente: "É melhor estarmos afastados por uns tempos. Adoro-te. Beijo". Parecia-lhe a fórmula ideal, que interrompia o namoro sem fechar portas e demonstrava respeito pelo companheiro, por ser redigida sem abreviaturas. Enviada a mensagem, entregava-se livremente aos prazeres que antecipara. Ainda de madrugada, regressava a casa do namorado, abria a porta com cuidado, descalçava-se, entrava no quarto, procurava o telemóvel dele, certificava-se com alívio de que a mensagem não havia sido lida e apagava-a. Deitava-se então sem a habitual carícia terna e suave no namorado, guardando algum lençol de distância. Assim se passaram vários meses e só uma noite de insónia do seu namorado quase deitou tudo a perder. Ao chegar a casa, ele tinha os olhos inchados de tanto chorar, mas parecia já recomposto e envergando a armadura do orgulho. Percebendo tudo, cabisbaixa, a rapariga pediu que ele a aceitasse de volta. Foi quanto bastou para que a armadura caísse por terra sem interrogatório. Só já cama ele acusou receio: "estavas a brincar, não estavas?", ao que ela respondeu: "não, querido, mas hoje de madrugada já tinha mudado de ideias. Foi uma precipitação minha". Havendo na sua frase duas verdades a flanquear uma omissão, o saldo na consciência de Sandra era positivo. Com saldo positivo e o anúncio nessa semana de cobertura de rede total para o país, o futuro dos dois parecia ainda mais promissor.

15
Mai19

Júlio e Patrícia (7)


Eremita

[publicado a 28.4.2017]

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Júlio, 32 anos, julgava que ter estado com oito mulheres a impressionaria, pois faria dele alguém experiente aquém de promíscuo. Mas ao olhar para a perversa beleza angelical dela, teve um momento de hesitação e disse: "Sete". Ela mostrou então algum embaraço, que não era propriamente decepção, mas que também o deixou mais nervoso, brotando da sua axila esquerda uma gota de suor que foi escorrendo muito lentamente, como que esticando ainda mais o tempo psicológico criado pela pausa dela. O número lá saiu, bruscamente, só que, em rigor, era uma estimativa: "60 e tal". Júlio encontrara Patrícia numa festa de amigos comuns e ficara siderado com a beleza dela. Alta e esguia, quase sem peito e ancas, era no rosto que se concentrava todo o seu encanto. Um amigo comentou com ele que ela parecia vinda de um quadro de Botticelli, mas Júlio afastou o amigo com delicadeza e nem procurou que ele o ouvisse enquanto avançava para ela e murmurava: "Botticelli, Botticelli o caralho... desde quando a Vénus de Botticelli dá tesão?". Dois dias depois tomavam café juntos. Júlio era bem-parecido e divertido; ela escolhera-o entre a mão cheia de outros homens desemparelhados que na festa também lhe lançaram olhares.

 

 

 

29
Out17

Gonçalo (12)


Eremita

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O arquitecto Gonçalo projectou a sua casa para que tivesse um cofre embutido na parede contendo um segundo cofre dentro do qual se encontra um terceiro cofre. Neste último cofre, ainda amplo, ele guarda vários dossiers com informação organizada segundo a ordem alfabética dos apelidos dos visados. Há fotografias tiradas com teleobjectiva, facturas de despesas variadas, nomeadamente as relacionadas com lazer e oferendas, mensagens de correio electrónico impressas e alguns telemóveis. Os cofres estão numa divisão da cave que não aparece no projecto da casa e à qual se acede por uma porta dissimulada entre painéis móveis que cobrem uma das paredes de um dos corredores, sendo este apenas mais um dos vários pormenores de arquitectura lúdica espalhados pelas áreas sociais da casa. A divisão é ampla, mas sem janelas, e lembra o gabinete de Sigmund Freud, pois tem um divã, almofadas confortáveis e bons tapetes orientais. 

 

Quando chega a casa a altas horas da noite, Gonçalo abre a porta com cuidado, para não acordar ninguém, e fecha-se durante cerca de uma hora na cave, antes de subir até ao quarto e se deitar junto da sua mulher. Na cave, ele abre os cofres com algum vagar e retira um dossier, segundo um critério qualquer. Deitado no divã, percorre depois com o olhar aquela informação, sem se deter em nenhum elemento em particular, embora deixe as fotografias para o fim. Nem Gonçalo percebe bem o conforto que encontra naquelas fotografias. Custam-lhe bom dinheiro, pois gosta de as ter actualizadas e inequívocas, mas chantagear os seus amigos ou pedir-lhes explicações são possibilidades que apenas considera para as poder descartar de imediato. Para se tranquilizar, talvez lhe baste a prova de que não se distingue dos outros. 

12
Set17

Jaime (11)


Eremita

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Jaime mantém a namorada à custa de doze quase-namoradas. O número denuncia a sua megalomania e um certo anseio de legitimação histórica; doze, como os Apóstolos ou os Cavaleiros da Távola Redonda. Mas Jaime inspira-se sobretudo em alguns rudimentos de geometria. Ele sabe que pode fazer daquelas 12 mulheres uma armadura, se as pensar em volta dele e da sua namorada como vértices de um icosaedro. A tarefa de Jaime é manter o icosaedro estável, evitar que alguma das 12 conheça outra e todas cortejar com o cuidado e empenho de um jardineiro ou outro profissional responsável por uma estrutura precária, como um jardim ou um recife de corais. Basta a Jaime permanecer no centro do campo libido-passional criado pelos 12 vértices do icosaedro, cujas forças trespassam a namorada de Jaime sem que ela se aperceba, como um campo magnético perpassa um corpo livre de metais. No centro do icosaedro ele sente-se seguro, ainda que algo cambaleante, pois o equilíbrio das atracções a que o seu corpo está sujeito não é absolutamente estável e precisa de reajustamentos sucessivos. Este equilíbrio instável permite-lhe encarar a fidelidade como uma possibilidade provisória e impedi-lo de cometer uma argolada que comprometa a boda, cada vez mais próxima. Mas Jaime planeia já no futuro e uma solução que não o deixe tão vulnerável a súbitas oscilações de humor de uma das quase-namoradas que perturbem o campo libido-passional. No seu caderno de apontamentos, vemos já o esboço do isosaedro truncado, com os seus sessenta vértices.

10
Set17

Daniel (10)


Eremita

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Ele era um trendsetter, um opinion-maker e mais do que isso: um life coach, um guru, até um sacerdote laico. Reverenciado pelos progressistas e odiado pelos conservadores, a sua reputação atingira o patamar em que qualquer acção sua assumia enormes proporções. Presença ubíqua nos media com impacto transversal a todas as classes sociais, era já conhecido apenas pelo nome próprio: Daniel. Também o seu programa de rádio, antes intitulado, "Vibrações Boas", também a coluna no jornal, a que chamara "Sexo à Sexta", também a sua longa série televisiva, "O Ponto G", também "A Posição do Missionário", o ciclo de palestras dadas por todo o país a cada Primavera, enfim, toda a sua produção acabara de ser rebaptizada com o mesmo nome: Daniel. Naturalmente, a sua biografia não escapou a este baptismo, apesar da pequena variante: "Eu, Daniel". Foi um bestseller que bateu todos os recordes de venda, promovido com grande mestria pela empresa que também geria a imagem de Daniel nas redes sociais e criou para o efeito uma campanha assente no neologismo "danielizar", sendo "E tu, danielizas?" o slogan que lançou o mote. O criativo da agência convencera Daniel com a seguinte argumentação: o nome próprio de um homem grande pode bastar para o identificar, o nome de um homem extraordinário pode pode dar origem a um adjectivo, como "maquiavélico", "aristotélico", "platónico", "marxista" ou "kafkiano", mas são raríssimos os casos de homens cujo nome passa a verbo, apenas lhe ocorrendo "pasteurizar" (de Louis Pasteur), apesar de "gongorizar" (de Luís de Góngora) e galvanizar" (de Luigi Galvani). Daniel acedeu, como antes concordara com a aposta no seu nome próprio. 

 

Como muitos dos homossexuais de São Francisco sexualmente activos nos anos oitenta que sobreviveram à devastadora epidemia do VIH, Daniel pensava que esgotara a sorte quando decidiu emigrar. Estava enganado. Tudo lhe correu de feição no novo país. Foi bem recebido e depressa encontrou trabalho e uma comunidade. A sua língua nunca o prejudicou, antes pelo contrário, mas esforçou-se por aprender a língua local e poucos anos foram precisos para se impor pela palavra. A voz de Daniel, máscula mas calorosa, habitada por uma ressonância que parece reproduzir o eco da nossa voz interior, era irresistível, inclusive para os seus críticos que o escutavam na esperança de ouvir uma inflexão efeminada, que nunca surgia; nos momentos de maior entusiasmo, a voz de Daniel ameninava-se, mas era a voz de um rapazinho, capaz de cativar pela nostalgia o mais empedernido e veterano heterossexual. Também o discurso lhe saía fluído e com grande noção do grau de dificuldade do que estava a comunicar, como se se desdobrasse numa presença extra-corpórea que, logo que algum conceito precisasse de ser esclarecido, lhe segredava ao ouvido: "Daniel, dá um exemplo!" E os exemplos eram sempre luminosos e inspirados, com um entrelaçado de alta e baixa cultura originalíssimo, dito com um ligeiro sotaque e um pudor no uso das expressões idiomáticas - parecia pedir licença por delas se apropriar - que o tornavam irresistivelmente afável. 

 

Daniel estreou-se na imprensa como perito em sexualidade, sem outra qualificação além de ser norte-americano e homossexual. Digamos que se foi fazendo especialista, primeiro muito focado na mecânica e hidráulica do orgasmo, e a partir de certa altura cada vez mais centrado na natureza das relações sexuais e amorosas, bem como na política. Já era uma celebridade quando começou a propagandear a ideia de monogamia intermitente. A intermitência era uma suspensão breve e idealmente regular para se poder gozar o sexo em todas as suas possibilidades aritméticas e geométricas, com ou sem a participação do parceiro. Os conservadores criticaram-no pelo apelo à promiscuidade e entre os admiradores houve alguns desconfiados, pois muitos consideraram a expressão "monogamia intermitente" inútil, por já existir o conceito de "relação aberta". Aos primeiros Daniel respondeu com desprezo, reforçando o ataque ao catolicismo, e aos segundos explicou que na "monogamia intermitente" se valorizava a monogamia, estando o sexo fora da relação reduzido à categoria de passatempo. A expressão vingou, sobretudo entre os menos novos, passando a ouvir-se com frequência nos jantares burgueses, entre elogios ao estilo de vida de Daniel, como uma aspiração que muitos confessavam ser incapazes de pôr em prática.

 

O companheiro de longa data de Daniel, um indígena apolíneo quase vinte anos mais novo do que o americano, não era uma figura pública. Pouco se sabia sobre este homem inúmeras vezes fotografado pelos paparazzi, com ou sem Daniel, em deambulações pela cidade e a desaparecer atrás de portas de onde só saía na manhã seguinte, sendo estas pernoitas interpretadas pelos tablóides como sessões de deboche e pelos fãs de Daniel como "intermitências", um termo que também pegou. Nas entrevistas à imprensa de referência, Daniel não dava grandes detalhes sobre as suas "intermitências" e mostrava-se um acérrimo defensor da privacidade, não perdendo uma oportunidade para criticar os "profissionais do mexerico". Mesmo no seu círculo mais íntimo, Daniel poucas vezes falava das intermitências, sendo sobretudo óbvio o carinho e desejo com que olhava e ouvia o seu companheiro, cuja voracidade sexual era já lendária entre a comunidade homossexual.

 

Alguns entre os mais próximos desconfiaram, mas havia as fotografias, ocasionalmente alguém segredava ter já estado com Daniel e o seu companheiro era de poucas falas. O rumor nunca cresceu. As intermitências do casal passaram a imagem de marca da cidade entre as elites, tornando-se icónicas as fotos em que Daniel é visto a sair de madrugada, sempre de óculos escuros, sozinho ou poucos segundos após a saída do companheiro. "Daniel esteve aqui" foi uma frase que durante uns tempos apareceu escrita a tinta branca em alguns prédios. Nos seus programas, Daniel promovia o seu estilo de vida, insistindo na sua superioridade moral face à monogamia corrompida pela infidelidade e no seu valor social quando comparada com as vidas daqueles que apenas buscam o efémero. A seguir à sua biografia, "Monogamia intermitente", misto de ensaio e guia prático, veio a ser o livro de Daniel mais vendido. 

 

Chegou a pagar o sexo que não teve e a comprar o silêncio de alguns. Houve madrugadas em que saiu para a rua em lágrimas, atrás do companheiro. Houve noites em que não saiu sequer, ficando sozinho em casa, bebendo e ouvindo tangos, consumido pelo ciúme, cansado do teatro que montara e odiando-se por ter implorado que ele não saísse naquela noite. Não foi durante um desses serões que começou a escrever o panfleto  "Contra a Hipocrisia Patriarcal", que viria a ser bestseller

 

Nota: Daniel é uma personagem inspirada em Dan Savage (enquanto figura pública). 

 

 

09
Mai17

Manuel (9)


Eremita

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Manuel, fiel, era assaltado pela dúvida de saber se a masturbação seria uma zona franca para a libertinagem. Nunca pensava na namorada de longa data durante tais práticas, uma exclusão que começou por lhe parecer sensata, para não associar o seu amor às lembranças traumáticas da puberdade, como as inquirições matutinas sobre as manchas nos lençóis ou os exercícios masturbatórios colectivos em que apenas participara devido à pressão dos pares, e que depois de entrar em Direito passaria a interpretar como uma prova de respeito, por ter concluído que estaria a abusar da imagem dela, o que configuraria uma violação do direito à imagem, algo impensável para ele; punheteiro, sim, mas formalista. Perguntar à namorada se o autorizava nunca foi parte da solução, porque pertencia ao grupo de homens para quem perguntar era um sinal de fraqueza. Com o passar dos anos, a sua explicação deixou de funcionar e, apesar de cada vez menos frequentes, cada masturbação no duche deixava-o moralmente ressacado. Foi então que, durante um serão entre colegas, sem que tivesse procurado o conselho, ouviu um aparte durante uma disputa de fanfarronices: "A infidelidade em pensamento só acontece quando se pensa em alguém em concreto". No caminho para casa, foi trabalhando a teoria e na manhã seguinte tinha apurado um conceito, que parecia manejar na cabeça com o mesmo prazer com que o garimpeiro roda nos dedos a pepita retida pela peneira. Com alguma pompa, apelidou a sua ideia de "diluição de responsabilidade por quimerização do objecto de desejo". Nesse dia, o duche foi mais longo do que era habitual, mas executou as restantes rotinas domésticas com um voluntarismo e ânimo tais que acabou por recuperar os minutos perdidos, chegando ao emprego a horas.

 

A quimerização do objecto do desejo parecia funcionar. Manuel punha em prática a sua ideia com o zelo de um criador que sente uma obra-prima entre as mãos. Ia buscar à Nouvelle Vague um corte de cabelo, da publicidade extraía um par de pernas e lábios polposos, um olhar de alguém com que se cruzou podia aparecer de repente, como um relâmpago inofensivo. Quando estava cansado e com pressa, recorria às nádegas e mamas da pornografia soft, mas ao fim-de-semana investia na construção de quimeras surpreendentes, verdadeiras criações que fundiam as imagens do cinema e da rua com as do retrato fotográfico, da pintura dos grandes museus, da estatuária em mármore, da banda desenhada francófona e da manga japonesa. As suas mestiças em mosaico sublimes e nunca repetidas entre masturbações, cuja diferente matéria  se harmonizava na cinética do corpo, eram, no fundo, mulheres sem personalidade jurídica, com uma biografia sem passado nem futuro, que se esgotava na fantasia que Manuel criava. O seu apuro atingiria um virtuosismo impensável, sobretudo na anonimização do rosto e na quimerização de segundo e superiores graus. O primeiro processo consistia na produção de uma imagem de fusão de múltiplas caras, fosse em composição cubista, síntese computurizada de uma simetria matemática ou por um efeito de estroboscópio, em que de múltiplos rostos acelerados surgia um rosto de uma placidez lasciva indescritível. O segundo consistia no uso de quimeras de fantasias anteriores como matéria-prima para a construção de novas quimeras, método em que, pela reiteração sucessiva, Manuel apostava, pois a libertação só lhe parecia possível no dia em que atingisse a completa abstracção do acto masturbatório.

 

Passaram-se anos sem história. Um dia, uma velha quimera bate à porta do quarto de hotel de luxo que Manuel fantasiava e a ménage à trois que se segue deixa-o apreensivo. Na vez seguinte, surgem mais velhas quimeras, que o perseguem com uma sofreguidão ninfomaníaca. Manuel sente-se refém das suas criações, sem lhes conseguir resistir. Cada fantasia transforma-se primeiro num bacanal, depois num enredo de contornos sadomasoquistas e a seguir num autêntico ajuste de contas com as quimeras a revelar consciência de classe, aguentando Manuel como podia, sem nunca deixar de reincidir, até ao momento marcante da desquimerização de um dos objectos de desejo, que o põe em confronto com imagens de múltiplas mulheres de existência real e o leva a abandonar para sempre a masturbação matinal no duche. 

 

 

 

04
Mai17

Paulo e André (8)


Eremita

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Por confiar nele, o seu grande amigo de infância, filho do grande amigo do seu pai, Paulo confessou a André que era infiel à sua mulher. André não acusou surpresa, como se já o soubesse. E aproveitou para se gabar de que era fiel à sua mulher praticamente desde que se tinham casado. Explicou assim: "É essencial que cometas a pior das infidelidades quanto antes e que o teu remorso te iniba de reincidires, mesmo nas pequenas escapadelas. Ficas condicionado, percebes?” No seu caso, a solução fora enrolar-se com uma das madrinhas entre o copo de água e a primeira noite de núpcias. Desde então, a simples tentação em pensamento angustiava-o e chegou mesmo a dar-lhe vómitos. Paulo ficou tão abalado que nem se lembrou que a madrinha em questão era a sua irmã; perturbava-o mais saber como poderia ele, já casado e tão necessitado de se livrar do adultério, aplicar o ensinamento do amigo. Como que adivinhando a sua angústia, André despediu-se rematando: "E lembra-te que este método, embora concebido originalmente como profilaxia, a julgar pelo que me contam alguns amigos, também é terapêutico". Durante dias, várias ideias desfilaram pela mente de Paulo, sempre lhe escapando a justa medida, porque todas lhe pareceram demasiado inócuas (a colega de trabalho) ou horrendas (a sogra). A oportunidade surgiu com a gravidez da sua mulher. Logo na noite após o parto, Paulo procurou uma antiga amante. Na manhã seguinte, era um saco de remorsos e jurou nunca mais ser infiel à sua mulher. A verdade é que o estratagema não funcionou. Desesperado, pediu o divórcio, sem nunca lhe contar as suas  aventuras. E logo procurou novo casamento, mostrando na escolha das madrinhas um interesse que a noiva interpretou como prova do seu amor. Tamanho apego ao protocolo é raro, inclusive nas profissões mais exigentes.

28
Abr17

Bruno (6)


Eremita

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Bruno, 40 anos, professor primário zeloso e curioso compulsivo, acumulava um conhecimento enciclopédico na vastidão mas de supercifialidade amadora, embora se distinguisse dos diletantes pelo genuíno prazer e nenhuma intenção de impressionar. Achava-se gormand, melómano, cinéfilo, literato, desportista, activista, poliglota, viajante e um bom gestor de condomínio. Frequentava agora um curso de introdução ao Direito. Na semana anterior terminara as aulas de desenho e tinha já em mente a arquitectura paisagista, sempre no mesmo instituto, sempre às Quintas. Na sala de aula, Bruno partilhava a mesa com uma senhora da sua idade, que fazia esquissos de vestidos no caderno de apontamentos, dando mostras de grande aborrecimento. Ele rotulou-a logo de ociosa da vida e concluiu que o curso lhe fora sugerido e pago pelo marido. Não era uma mulher deslumbrante e só começou a sentir-se tentado quando as pernas de ambos se tocaram por acaso. Atraía-o o estatuto de amante. Bruno tinha demasiados interesses para manter uma namorada e trocava de esposa alheia com escrupulosa regularidade, apenas para não se criar uma cumplicidade excessiva que pudesse colocar em risco os seus passatempos. Uma sequência de três mulheres era-lhe menos interessante do que o Desenho, o Direito e a Arquitectura Paisagista. A sua colega de carteira aparecera-lhe quando a rendição da amante já tardava e a proximidade que o curso possibilitava tornara tudo muito fácil; Bruno, tão voluntarioso para a vida quase toda, era um conquistador preguiçoso. Ao fim de umas semanas, ela deu o primeiro sinal claro, quando fingindo brincar com a aliança fez do anel um minúsculo aro que rodou equilibrado pelo tampo da mesa até embater no mostrador do relógio dele, com um clique e depois um rufo em decrescendo. Ele teve então uma hesitação breve, mas decidiu-se por dar ares de não ter reparado em nada. Foi ela que com mão a cair pesada sobre a mesa recuperou o anel. Nessa noite não se despediram como já vinha sendo costume.

 

O circuito de manutenção sempre o ajudara a pensar. O ritmo da passada certa e a respiração controlada disciplinavam-no, ajudado pelo desfilar regular dos troncos das árvores, tão próximas do carreiro por onde seguia que lhe davam uma ilusão de velocidade e a sensação de urgência. A mente ia fazendo pausas retemperadoras à custa das visões rotineiras que o animavam: a rapariga encorpada em roupa lycra (à segunda), o velho em esforço no fato de treino Adidas (terça), o gordo que corria sempre em sentido contrário (quarta), dois amigos a correr lado a lado enquanto discutiam empreendedorismo (quinta), os lobitos muito pouco disciplinados, desequilibrando-se mutuamente na travessia da trave de madeira (sexta). Naquela sexta sentia-se muito agitado. Estava quase ofegante e ainda não conseguira perceber a sua recusa da véspera, na aula de introdução ao Direito. Fora um instinto de sobrevivência, mas que devia obedecer a uma lógica por revelar. Tal mistério obrigá-lo-ia a dar uma volta extra ao circuito. E foi só ao crepúsculo que encontrou um princípio de explicação: a chave do enigma estava nas matérias leccionadas durante o curso, em como lhe causara surpresa o artigo 133. Aprendera que os 8 a 16 anos da pena de prisão por homicídio, agravados nos actos mais perversos ou especialmente censuráveis para 12 a 25 anos, são reduzidos nos casos de homicídio privilegiado. Num feito raro de memória conseguiu resgatar uma versão quase fiel do tal artigo e disse-o em voz alta: “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a culpa, será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”. Para ele, o artigo 133 era revoltante. Imaginou as cenas de cama com as suas várias amantes, subitamente interrompidas por um homem desvairado que os fulmina a tiro de caçadeira. Um cenário de horror. Ele e ela esvaziando-se em sangue e o assassino livre ao fim de 5 anos. De onde vinha este absurdo? Da ideia de paixão, claro. Sorriu discretamente, como quando alguém se deixa seduzir pelo seu próprio pensamento. A paixão, na lei como na mentira, tem a mesma valoração e semelhante efeito: tanto atenua a pena do criminoso, como a má reputação e os remorsos do mentiroso; comparada com outras desonestidades, a mentira passional é facilmente acomodada pela consciência de quem a comete e pela sociedade que julga. Uma pessoa apaixonada pode matar e pode ser desonesta, quase impunemente. A paixão é um estado de loucura passageira que perdoamos aos outros, para que a seu tempo também a possamos gozar sem hipocrisia. Mas o epíteto “passional”, atenuante para o assassino e o traidor, funciona como uma agravante para as vítimas. Desde logo, porque existindo uma atenuante à partida, aumenta probabilidade de haver dois cadáveres na cama ou um traído. E a seguir porque a indignação e dor dos familiares e amigos das vítimas, vítimas em segundo grau, tal como as do traído, são imensas, em contraponto com a cumplicidade da lei e da sociedade com o assassinto e o traidor, como se houvesse uma qualquer lei geral da conservação da indignação e as atenuantes se alicerçassem no sofrimento acrescido das vítimas. Perante estas conclusões novas, Bruno começou a encarar um desafio que havia até então adiado por manifesta falta de tempo: a construção de uma caravela de fósforos.

27
Abr17

Sónia e Artur (5)


Eremita

 

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Artur estava tão fora de si que mais parecia ter surpreendido a mulher no quarto em intimidades com dois vizinhos. Afinal, limitara-se a abrir uma das gavetas da mesa-de-cabeceira. Se para Sónia já era bizarro que Artur mostrasse ciúmes de um objecto, a acusação de traição parecia-lhe inconcebível. Como sucede com tantos ex-seminaristas, Artur não era uma criatura normal. Para mais, ele sentira o apelo da fé e não o da elevada empregabilidade. Abandonou o seminário quando Sónia engravidou e ainda se penitenciava pelo pecado cometido e a vocação perdida. Ela fizera-se uma mulher despachada e lia as revistas femininas. Amava Artur mas o que ele lhe dava pontualmente nas manhãs de sábado não chegava. O dildo foi uma revelação, que chegou pelo correio. Vinha com livrinho de instruções e os esquemas eram muito didácticos. Sónia  iniciou-se em segredo e com grande satisfação no onanismo assistido. Com o correr dos anos, foi-se tornando menos cuidadosa e passou a não fechar a gaveta da mesa-de-cabeceira à chave. Naquele dia, Artur procurava aspirina para uma dor de cabeça.

 

Primeiro tentou ver-se livre do seu inimigo pela retrete, mas de cada vez que descarregava o autoclismo, o pénis reemergia lentamente, ora pelos testículos, a lembrar o focinho de um enorme rato de água, ora pela cabeça, como uma moreia que sai do buraco. Seguiu-se uma sessão de Judo culminando na imobilização do pénis no colchão da cama, com um testículo a parecer espapar sob o lombo de Artur e a cabeça do pénis sufocando numa chave de braços improvisada, enquanto Artur lançava para o ar perguntas num crescendo de ansiedade, pouco faltando para  dizer as falas do pénis e criar um número de ventríloquo. Chegou depois à sala, perseguindo o pénis que atirava violentamente contra o chão e fazia ricochetes caprichosos, e o espaço mais amplo da divisão despertou nele um deslocado reflexo lúdico, que o surpreendeu a tentar atirar o pénis contra a parede para depois o tentar recuperar sem que caísse ao chão. E veio, por fim, a trágica sessão na cozinha, transformada em sala de tortura, com o objecto a revelar uma resistência notável. Só ao ver o bico de gás aceso Sónia resolveu intervir. Cada um puxou então o pénis para seu lado, que ficou ligeiramente mais delgado e comprido, com uns quase imperceptíveis veios esbranquiçados, mas logo retomando a cor e forma originais quando Sónia cedeu. A resiliência do material estava a par da obsessão de Artur. Legitimado pela força, ele encheu-se de coragem e quis atirar o maldito objecto do nono andar para a rua, não reparando que a janela estava fechada. O pénis fez embate e rachou o vidro, ficando imóvel no axadrezado dos ladrilhos da cozinha. Artur ainda se aproximou embalado pela raiva, mas depois estacou: subitamente, o bicho movia-se e emitia um zumbido! Perante tão inesperada manifestação de animismo, Artur cedeu aos nervos, as suas pernas fraquejaram e também ele se deixou ficar pelo chão, chorando como um menino. Sónia não hesitou em quem socorrer; foi com habilidade que esticou a perna e usando os dedos do pé desligou o dildo, sem folgar o abraço com que consolava o seu homem.

 

Nunca chegaram a aprofundar as causas últimas, mas Sónia tratou de resolver o problema. A solução viria também pelo correio e as instruções eram explícitas, excepto para Artur. Ele não percebia nem a lógica de funcionamento da boneca, nem a lógica da sua mulher. Ela explicou-lhe então que se ele também gozasse o seu brinquedo sexual, talvez viesse a tolerar o brinquedo dela. Foi tal o alívio de Sónia ao reparar na reacção de Artur que não se apercebeu da natureza do seu súbito entusiasmo. Sabendo-o pudico, Sónia saíu do quarto, para que ele explorasse o brinquedo sem inibições. A vida dos dois restaurou-se. Continuaram a fazer amor apenas ao sábado, sem que ela tivesse notado qualquer acrescento de fantasia ou motivação da parte de Artur, mas ele não mais a incomodou por causa do pénis de borracha, que ela continuou a usar. Também Sónia não lhe fazia perguntas sobre a boneca, mas sabia que ele mexia nela. Nunca veio foi a perceber a razão da paz de Artur. Quando se trancava no quarto para brincar com a boneca, Artur usava apenas o brinquedo de Sónia. Aquele exercício restaurava a harmonia doméstica, por lhe dar a estranha sensação de ser ele o único homem da casa que era fiel à sua mulher.

26
Abr17

Mário (5)


Eremita

 

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Ah, as mamas fartas ou juvenis, marmóreas ou acolchoadas, em ninho de andorinha ou geotrópicas, de mamilos indolentes ou voluntariosos, com suas auréolas rosadas ou escuras, quando não indistintas, as mamas que aprisionam odores velhos junto ao tronco ou sempre frescas e asseadas, as mamas em soutiens pensados por engenheiros ou então soltas no trote de alcova, as mamas que são seios para boca e tetas para as mãos, as mamas fartas ou juvenis. Mário apreciava tanto mamas que lhe dava vergonha. Diz-se que gostar de mamas é de homem, mas temia que o seu caso fosse distúrbio. Queria as suas namoradas inteligentes, cultas, dinâmicas, carinhosas, íntegras, simpáticas, e com boas mamas. Queria-as com sentido de humor, diligentes, sensuais, corajosas, e com boas mamas. Ele sabia que a única condição necessária, embora não suficiente, era o par de mamas. Envergonhava-se da inclinação, que interpretava como um atavismo do cérebro primitivo e um resquício do impulso do recém-nascido. Jovem quadro superior vindo de boas famílias e com os contactos certo no partido, maxilar viril e têmporas que daí a três décadas ficariam perfeitas de tom grisalho, receava que tamanha obsessão por mamas comprometesse o seu futuro político promissor. Como manter um casamento? Como evitar um escândalo sexual divulgado em todos os jornais? Como contratar uma secretária segundo os critérios de meritocracia e exigência tão essenciais à imagem de um governante, ao desenvolvimento do país e à convergência europeia? Ainda longe dos holofotes, na intimidade do quarto já ele fazia de paparazzo de si próprio, dispondo sobre a colcha da cama, como cartas de uma paciência, as fotos de todas as namoradas antigas, e compondo na cabeça os títulos boçais com que as revistas de mexericos fariam alusão à característica partilhada por todas aquelas mulheres. Passava o tempo a imaginar cenários, denunciando uma certa megalomania. Pressentia-se ministro. Perdido em tais pensamentos, Mário ia nas nuvens, na verdade, sobre as nuvens, cadeira 23A do voo Lisboa-Nova Iorque-Los Angeles. A viagem surgira na pior altura. Julgava-se apaixonado pela primeira vez e custava-lhe ausentar-se. A sua namorada despertava-lhe uma imensa ternura, um alvoroço tranquilo que para ele era novidade. Sabia que estava perante a mulher da sua vida, a sua companheira. Sabia-a uma preciosidade, uma mulher de aguda consciência social e com um sublime par de mamas. Talvez por isso, preferiu omitir o destino final da sua viagem. Ia para Las Vegas, a uma despedida de solteiro de um amigo norte-americano que conhecera na adolescência durante um curso de Verão. A mentira por omissão não lhe causava grande transtorno e era até um bom treino para a sua vida profissional. Não conseguia era deixar de pensar na ida ao clube de striptease que fazia parte das festividades. Como seria capaz de resistir a tais encantos? E se houvesse por ali portugueses que o viessem a reconhecer numa campanha futura? Uma lap dance é sexo? Sentia-se atraiçoado pelas próprias questões que colocava, derrotado moralmente, indigno de ser uma figura de proa da democracia representativa. E então o amor? Não o deveria preocupar mais o respeito que a sua namorada merecia? Era também uma questão, talvez não a prioritária. Entristecia-o chegar a tal conclusão. Mas talvez a amasse de verdade, um amor só ultrapassado pelo seu patriotismo. Como se esta explicação nem o próprio convencesse, adiou o problema com dois comprimidos para dormir.

 

Mário entra decidido no clube. A sua primeira impressão é de desilusão e alívio. Nada do deboche que imaginara,: salão amplo e moderno, asseado, a meia-luz, muitos neónes, alguns espelhos, sofás espaçosos, muitos obesos e carecas isolados, raparigas seminuas ao balcão, dois gorilas de tuxedo em pontos estratégicos. Não havia música, mas logo percebeu que tinham chegado entre dois actos. Instalam-se todos, começa a tocar Madonna e uma rapariga sobe ao palco para iniciar o seu número. Mário resolve testar-se olhando de imediato para ela. Nada. Nenhuma excitação incontrolável. Seios perfeitos, sim, mas o que lhe chama a atenção é o extremo enfado com que ela dança. “Uma última réstia de orgulho”, pensa Mário. Em vez de excitação, ele sente empatia, compõe-lhe uma biografia trágica e apetece-lhe salvá-la. A noite começou bem, mas as mulheres circulam agora pelos sofás, metendo conversa. Uma preta de olhos verdes e seios hirtos pergunta-lhe de onde ele é. Mário responde a medo e ela afasta-se sem insistir, talvez à espera que a bebida faça efeito, ignorando que ele beberica uma gasosa. Alguns dos seus companheiros não perdem tempo e Mário observa com detalhe uma lap dance. Um dos seus companheiros de farra requisitara os serviços de duas mulheres ao mesmo tempo. Mário via-as de costas, debruçando-se sobre o homem que parecia agrilhoado, pois nem perante os movimentos mais insinuantes delas levantava as palmas das mãos do sofá. Apesar das nádegas proeminentes e das costas nuas das profissionais, a Mário a cena evocava sobretudo um episódio de necrofagia em que duas criaturas debicam um cadáver. Só mesmo ao seu lado não pôde deixar de reparar que o joelho de uma rapariga friccionava o escroto de um outro companheiro. “Lap dance é sexo”, apressou-se a concluir, no preciso momento em que cruzava as pernas. A noite foi avançando, as raparigas viam-no defensivo e deixavam-no em paz. Aos poucos vai dando conta de que ao excesso de oferta não correspondia um estímulo proporcional, antes pelo contrário. Tanta mama à solta desmotivava-o. Mário volta inclusive a pensar na primeira rapariga, que lhe apetecera salvar e não mais voltou a ver. Os seus valores cívicos levavam a melhor sobre os instintos. Nem a pressão dos outros homens o levaria a ceder – não que alguém se preocupasse com ele. E quando a preta dos olhos verdes veio de novo em sua direcção, Mário engoliu a seco mas sentia-se preparado. A sua preocupação não é resistir-lhe, antes não a magoar. Ele sente o seu instinto politico a emergir, preocupa-se em agradar, mesmo diante das franjas excluídas da sociedade. A mulher senta-se com languidez no braço do sofá. Mário toma a iniciativa e apenas lhe diz, quase segredando: és muito bonita, mas eu sou… sou gay, percebes? Só estou aqui por causa dos meus amigos". Ela agradece-lhe o elogio, mas foi a explicação que lhe restaurou o brio. Uma desculpa perfeita. Mário olha para os lados, procurando alguém a quem contar o seu triunfo, mas todos estão ocupados, inclusive o noivo. Opta então por comemorar sozinho, vai até ao bar e pede um Jack Daniels. Finalmente descontraído, protegido pelo seu estatuto forjado e pela língua materna, ao terceiro copo começa a comentar em voz alta as raparigas que sobem ao palco - “sublimes”, “um pouco exageradas”, “boas, mas falsas” – e acaba por ser o último a sair do clube. Adormece dentro do táxi e só acorda com o embate do trem de aterragem na pista. Acabara de aterrar.

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