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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

02
Ago11

Tábua de personagens [actualização]


Eremita

 

 

Tenho conhecido algumas pessoas desde que aqui cheguei de bicicleta.

 

 

PERSONAGENS

 

Tatiana

 

Tatiana, uma ucraniana caixa no Pingo Doce, é uma mulher de anatomia e personalidade imprecisas. A indefinição dos seus contornos físicos e psicológicos é essencial para que seja camaleónica e assim cumpra as funções de passe-partout passional que recolha as características dos objectos passionais do seu criador, reais ou fantasiosos, e de todos os tempos. Mesmo em relação ao seu nariz, que foi já descrito com grande precisão, o leitor atento ficará com dúvidas, pois há uma contradição: Nariz à Rosemarie DeWitt ou "nariz fino, pouco comprido, mas muito nobre? E, afinal, se não há rosto passível de ser amado no local de trabalho de Tatiana, quem era aquela mulher que lhe terá dado um rosto provisório? Não se sabe. 

 

Tatiana vai engravidando em tempo real. Primeiro nasceu "1", depois "2", em breve haverá "3". Os filhos de Tatiana terão um nome, mas aqui são apenas "1", "2", "3"... "n". São sempre de homens diferentes e nunca do narrador, mas "sempre" e "nunca" são aqui menos redundantes do que contraditórios. Ou talvez não. 

 

 

Igor

 

Igor, marido de Tatiana, é uma besta e também um idiota. Por uma vez, a falta de densidade psicológica é da exclusiva responsabilidade da personagem. Igor não chega sequer a representar o contraponto de Tatiana, um passe-partout de todos os ódios, porque em regra acumulamos menos ódios do que paixões e o ódio tolera-se muito mais facilmente, dele podendo até vir algum ânimo. Igor existe apenas para criar alguma tensão e fazer de Tatiana uma mulher inacessível. O plano em construção para assassinar o ucraniano pontua a primeira fase do Ouriquense, se possível no registo de comédia negra. Fisicamente avantajado mas destituído de qualquer brilho ou bondade, o amor de Tatiana por este homem é um dos grandes mistérios desta trama e só a complexidade das mulheres nos livra de termos aqui uma inverosimilhança.

 

Na segunda fase do Ouriquense, Igor é dado como falecido, na sequência de uma série de eventos com final em aberto - sobretudo por preguiça do autor, mas também conveniência - que levam o eremita até Espanha, de onde traz o relato Quem Matou Igor? , o primeiro policial com spoiler warning, que tem publicado muito lentamente. A verdade é que, com base na informação disponibilizada até agora no Ouriquense, o corpo ainda não foi encontrado.

 

Judeu, aka "o inventor"

 

O  inventor da vila é uma mistura do cigano Melquíades (Márquez) com o velho Atílio (telenovela O Casarão) que pretendia fazer ouro a partir do esterco que remexia numa banheira. Este homem julga que a solução para a máquina de movimento perpétuo é um lubrificante feito à base de um azeite por ele muito alterado, obtido a partir de umas oliveiras que só crescem nas redondezas. Noite sim noite não, galga o muro da casa dos meus tios para lubrificar os 3 baloiços de forma distinta, imprimindo-lhes depois exactamente o mesmo movimento. Apressa-se a deixar a casa e é da rua principal que mede o tempo que cada baloiço demora a parar. Noite não noite sim, trabalha até de madrugada com base nas observações feitas na véspera.

Possui uma boa biblioteca e uma qualquer relação com as libertinas de Lisboa, que ficará por desvendar. Exerce uma estranha atracção sobre o autor, que o próprio não consegue explicar.


Em 2011, o Judeu atravessa o monitor e começa a escrever os seus próprios posts, também no Ouriquense.

 

 

Ricardo Chibanga

 

De onde vem Ricardo Chibanga? O Ouriquense é o desenvolvimento possível de um texto fundador, Ourique 1979, que trago para aqui, ligeiramente modificado:

 

Tudo rodopia em torno de um cartaz de touradas, não sei se pelo vermelho tauromáquico, o negro do touro ou o olhar intenso de Ricardo Chibanga. A impossibilidade física de edificar uma vila a partir de um cartaz desaparece dentro da cabeça. No fundo, trata-se de uma reconstrução que tem muito de restauro. Imagine-se no cinema. O cartaz aparece a voar, depois a rebolar amarrotado pelos montados, até parar num descampado com a certeza dos pioneiros, porque pressentiu a frescura de um riacho ou uma futura concentração de caminhos. O cartaz abre então como uma flor e fica a pairar à altura dos olhos, a pedir parede. E logo surge a parede, depois a casa que a justifica, a rua, dez ruas, o reservatório de água, mais ruas, antenas de televisão, a câmara municipal ao cimo da avenida que ainda não nasceu. Os reflexos de luz na pela de Chibanga são animados pela canícula das três da tarde de Agosto, vencem o branco incandescente da cal e permanecem como o centro geométrico da vila, que alastra em todas as direcções. O desabafo do médico da vila-"Ah! Chibanga, o grande Otelo do redondel"- ecoa ainda, primeiro ampliado pela ignorância de quem levou muitos anos a entender tais palavras, e depois renovado, não em eco, antes como se o médico se tivesse cruzado comigo outra vez, ainda com o jornal debaixo do braço e a umas dezenas de metros do café: "Ah! Chibanga, o grande Otelo do redondel". Não fora pelo médico e Ourique podia ser uma vila de surdos, rica apenas nos sons dos animais: o latido do cão, o guincho final do porco a estilhaçar o frio de Dezembro, o chilreio das ninhadas das andorinhas nos beirais. O tempo passava e Chibanga, curtido pelo Verão e ensopado pelas chuvas, parecia agarrar-se ao cartaz com a tenacidade dos náufragos numa jangada à deriva. Mas a vila morreu aos poucos: primeiro os avós, depois a romãzeira, a pocilga sem porcos, a casa a acumular varizes, a distância que não parou de crescer. A morte de Chibanga está ainda envolta em algum mistério: teria sido uma criança a descolar o último farrapo de cartaz? Teria sido o desleixado dono da casa, quando ao fim de vinte anos voltou a caiar as paredes? Ou terão colado um cartaz por cima a publicitar algo alheio à planície (o circo Cardinalle)? Nunca mais voltei a passar naquela rua. Às vezes penso que Chibanga não teve um final inglório. Imagino o matador a morrer de pé, no momento em que a parede ruiu e não me apetece ir ver se tenho razão.

 

Chibanga é a única personagem do Ouriquense animada de algum realismo mágico. Ele aparece na vila como um fantasma condenado para sempre a procurar os pedaços rasgados do seu cartaz. Curiosamente, se todas as outras personagens são inventadas ou estão efectivamente mortas, no mundo real Ricardo Chibanga existe e gere um negócio de arenas desmontáveis. A errância da profissão do Chibanga de carne e osso torna possível o confronto na arena entre um Chibanga sessentão, à paisana, e o seu fantasma trinta anos mais novo, de traje de luzes, naquela que será a única cena do Ouriquense em que, periclitantemente sentadas na bancada da praça montada sobre andaimes, todas as personagens vão interagir, nem que seja por uma simples troca de olhares. A trama desembocará nesta cena e então o Ouriquense repousará em paz.

 

As libertinas de Lisboa

 

As libertinas de Lisboa existem para manter a pureza da relação com Tatiana. O autor faz com elas tudo aquilo que tem vontade de fazer com Tatiana mas julga adequado censurar. A iminência de um ménage à trois é a cedência do Ouriquense que lhe retira o estatuto de objecto artístico puro, isto é, alheio a propósitos mercantilistas. Mas na verdade, embora sempre descritas como um par, o autor interage  apenas com uma ou a outra e nunca as duas ao mesmo tempo (excepção feita ao primeiro encontro). Tal como o narrador, também o autor as trata como uma única pessoa. Daqui decorrerão algumas situações rocambolescas.

 

As libertinas de Lisboa foram abandonadas sem honras de morte trágica. Desapareceram simplesmente de Ourique, dado o insucesso do folhetim que animavam, os Diálogos Eróticos.

 

 

Jaime, o moço de recados

 

O único surfista vivo de Ourique é o elemento de charneira, embora tenha sido até agora muito poupado. Existe no Ouriquense um desejo de bucolismo, só que assistido por veios capazes de bombear alguma civilização na vila. Esta incapacidade de assumir o interior em toda a sua esplendorosa desolação perdeu entretanto alguma espectacularidade - houve a melhoria dos retransmissores, dos satélites e depois a extensão das redes de televisão por cabo; ainda assim, vem com a lucidez desencantada de quem sabe que a cidade chega hoje à vila com o que tem de bom e também a porcaria que lhe é característica, porque só o correio asseguraria que recebesse em Ourique apenas o tal "génio elegante". Nisso - e no português diminuído - o Ouriquense se distingue de A Cidade e as Serras. Não se acredita aqui que só o campo fosse capaz  de recuperar Jacinto, nem se acredita que Jacinto fosse capaz de viver só do campo.

O moço de recados traz a civilização.  Na era da tecnologia, ele é mais do que um capricho, é uma excentricidade que corporiza a função redentora do estilo. Porque a tecnologia só encanta quando ainda não existe - os cenários futuristas  - ou quando deixou de existir - o "teatrofone" que fazia as delícias de Proust.

 

As capacidades cognitivas de Jaime são um dos mistérios que animam o Ouriquense. É possível que estejamos perante um idiot savant. A partir de 2011, Jaime começa a ganhar alguns dos traços de personalidade do adorável Mario Incandenza, do romance Infinite Jest.

 

Emília

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Emília é a mais importantes das quatro personagens que realmente existiram em Ourique e a que tem já um papel definido na cena final: ela trará uma limonada a Ricardo Chibanga e preferirá saciar a sede ao Chibanga fantasma, deixando o Chibanga real a morrer de sede. Emília aparecerá quase sempre acenando com o afinco daquelas pessoas que imaginamos ficarem ainda a acenar muitos minutos depois de termos saído do seu campo de visão. Este capricho narrativo colocará enormes problemas técnicos ao autor, pois o narrador, ao contrário da criança que foi, quase nunca abandonará Ourique.

 

Honório

 

É a segunda das personagens reais em importância. Bêbado e com lugar cativo na taberna do Mira, Honório é uma das tentações negras do narrador, pois chegará a cúmplice e executor nos planos para a morte de Igor. Mas se a consciência do narrador acusa o fardo de Honório, o único peso que este sente - e que apenas lhe aflora o cachaço - é o do gume da espada de Dâmocles com que um juiz em tempos o sentenciou.

 

Luís

 

A terceira personagem real em importância, Luís é o menino que nunca viu o mar e com quem o narrador percebe os limites da sua capacidade de expressão, em tentativas reiteradas de lhe explicar por palavras e sem outros meios a sensação de fazer carreirinhas, uma cena decaldada do momento de Children of a Lesser God em que William Hurt tenta explicar a uma surda o que é a música.

 

Torpes

 

A quarta personagem real em importância, Torpes, irmão de Emília, é o homem com quem voltamos à pesca na barragem e que manifesta uma notável veia aforística sempre que trespassa um peixei-rei com o anzol. Na edição em livro, muitas das Lições da Planície farão parte das intervenções de Torpes.

 

Gaspar, o cinéfilo, aka "o rapaz do cineclube"

 

O rapaz do cineclube representa o Ourique positivo, embora acuse também uma rebeldia a espaços niilista. O cinéfilo, que gere um cineclube alimentado por cópias de filmes roubadas nos cinemas da capital, está para a oferta cultural em Ourique como Robin Hood estava para o alívio fiscal das populações mais carenciadas de Nottingham.

 

Maik Magic (e Rosy)

 

Maik Magic (e Rosy) marcam um instante fundador no Ouriquense.

 

 

O ladrão de cuecas

 

Trata-se da única personagem resgatada a pedido dos leitores e servirá de pretexto a uma trama policial. Desaparecido durante mais de um ano, o ladrão de cuecas animará em breve um folhetim escrito ao jeito do blogger António Figueira, um especialista no género que traça a bissetriz entre o romance policial e o jornalismo de investigação criminal.

 

Adriano

 

Filho do Judeu. Não sabemos que futuro lhe dar.

 

Fausto

 

Inventando em Janeiro de 2011, para conter a contaminação das outras personagens com o desejo de intervir e reagir à actualidade, Fausto é o responsável pelo braço politicamente armado do Ouriquense, até 2011 um blog de pendor niilista-blasé, ateísta-não-praticante e melancólico-estóico. Fausto é o veículo para expressar ideias que o autor tem por válidas, mas que o envergonham pela ingenuidade, que lhes reconhece , e a possível estupidez, que admite.

 

Nuno Salvação Barreto

 

Ao contrário de Ricardo Chibanga, o fantasma de Nuno Salvação Barreto não tem qualidades mágicas, nem faz parte do enredo. No ecossistema estratificado que compõe o Ouriquense, O eremita está no topo, depois o Judeu, quando escreve na primeira pessoa, depois Salvação Barreto, quando censura o que foi escrito, depois as personagens, que ignoram a existência do Ouriquense.

 

Rita Pinamona

 

O segundo grande amor do Eremita e uma paixão epistolar. Rita Pinamona nasce na Primavera de 2011 e não chega ao Verão desse ano, mas em três meses acumula-se um acervo de cartas que a manterá como personagem até ao fim do Ouriquense.

 

 

LUGARES

 

A vila

 

Um sítio feio e onde não acontece nada.

 

O supermercado

 

Tatiana trabalha num Pingo Doce e é aí que o narrador normalmente se cruza com ela. A descrição já foi feita: "trata-se de um espaço sobredimensionado, à entrada da vila, que reproduz em Ourique a mesma sensação de total insignificância que experimentei nas grandes superfícies comerciais das cidades americanas. Curioso isto de ter sentido pela primeira vez a angústia da pequenez cósmica naqueles enormes supermercados, no IKEA de Nova Jersey, numa farmácia na periferia de algum subúrbio de alguma cidade de um certo estado (Florida?),  e não no planetário nacional onde me levavam quando criança, nem no que depois visitei pelo meu próprio pé, em Nova Iorque; só mesmo no Pingo Doce de Ourique recuperei a escala cósmica. Enfim, de lá trago também os dois litros diários de gaspacho de pacote - vivo a gaspacho e pão, o meu tracto intestinal é como uma viela de Buñol em perpétua última quarta-feira de Agosto (a Tomatina). Mas não trouxe ainda a Tatiana. Das 5 ou 6 empregadas com quem me cruzei, nenhuma tem um rosto passível de ser amado"

 

 

O cineclube

 

Por motivos óbvios, não estou autorizado a revelar a localização do cineclube, local onde se assiste à mais recente oferta cinematográfica, bem como a clássicos e obras entretanto esquecidas, num ambiente de clandestina cumplicidade e em que é permitido fumar. Os filmes são projectados sobre uma parede que é caiada todos os anos pelo rapaz do cineclube.

 

Cotovio

 

É no monte arruinado, à sombra de um plátano, que o narrador lê os grandes clássicos e obras de menor alcance, guardadas em tupperwares. É também no monte que se dedica disparar com uma espingarda de pressão-de-ar sobre comprimidos de composição conhecida e posologia incerta. As alterações no caudal da ribeira do Cotovio, uma espécie de rio Sado incipiente, servem para marcar a passagem do tempo.

 

O cemitério

 

O cemitério de Ourique lembra uma pedreira de mármore graffitada com as típicas inscrições fúnebres. A compilação dos nomes de todos os ouriquenses falecidos é um dos passatempos do narrador, que inspecciona e fotografa todas as campas, mas evitando sempre o confronto com o jazigo da sua família. Será Ricardo Chibanga que o levará pela mão a perfilar-se diante dos seus antepassados, obrigando-o depois a proferir umas quaisquer palavras simpáticas.

 

A taberna do Mira

 

Com mulheres nuas  nas paredes e copos de vinho ao balcão, na taberna do Mira todas as dimensões do espaço eram preenchidas por tentações masculinas, vigiadas por uma enorme cabeça de touro. A luz escasseava e entrava sobretudo pelas portas, criando uma atmosfera muito difícil de reproduzir num estúdio de cinema. A luz rasteira acentuava o escavado dos rostos e o contraste do vidro translúcido sobre o mármore opaco. A memória desta taberna, hoje encerrada e nas mãos de uma imobiliária, é imprecisa - não é seguro que o balcão fosse de mármore. O primeiro encontro com o fantasma de Ricardo Chibanga terá lugar diante da porta fechada da taberna e o narrador fará uso de todos os seus recursos para provar que lá dentro se encontra a prova perdida de que Ourique foi vila tauromáquica.

 

A casa dos avós

 

Um casarão a apodrecer no centro da vila e onde o autor passou férias na infância. 

 


 

Castro Verde

 

É a vila rival, o instrumento a que o autor recorre para limitar a simpatia que os nativos poderão sentir pelo Ouriquense.

 

A romãzeira

 

É a única árvore do quintal dos avós que resiste à reconquista do quintal abandonado pela natureza. 

 

LINHAS DIRECTRIZES

 

O amor a Tatiana

 

O amor a Tatiana é a grande força motriz do Ouriquense, na sua primeira fase. Mas a cada sucessiva gravidez da ucraniana esse amor vai esmorecendo e há até razões para pensar que o ódio a Igor é uma sensação mais completa e fundamentada. 

 

Actividade remunerada


O narrador não trabalha desde Julho de 2008 e a sua conta bancária vai minguando a olhos vistos. Essa pressão leva-o a tentar encontrar uma fonte de rendimento, mas sempre sem sucesso.

 

Vasco Graça Moura

 

Um dos poucos traços comuns a BW, o projecto ultra-secreto, e o Ouriquense é o fascínio por Vasco Graça Moura, o tradutor, poeta, romancista, intelectual do cavaquismo e defensor da língua e do património. A partir de 2011, o narrador fica obcecado com os métodos de trabalho do prolífico autor e pretende saber se ele fez efectivamente todos aqueles versos decassílabos ou se tem uma equipa que trabalha na obscuridade. 

 

Carreira de Tiro

 

A carreira de tiro, em rigor, mais não é que uma zona no monte com uma azinheira de ramos cansados, bons para suportar garrafas e outros alvos, nomeadamente comprimidos e drageias. Simboliza a tensão latente com o universo dos psicofármacos.

 

OFICINA LITERÁRIA

 

O projecto ultra-secreto de código "BW"

 

O Making of de um grande romance luso, que também tem a sua tábua de personagens

 

Um tributo a John Coplans


Uma autobiografia do corpo, entre a puerilidade do ginásio e a dificuldade de domar a Apercepção de si e Corpo em Maine de Biran.

 

O livro de todos os desportos

 

Uma colecção de histórias de desporto, a lançar em volumes de quatro em quatro anos, coincidindo com os jogos olímpicos: "Ases, para que vos quero?" (ténis), "O benjamim dos Rasmussen" (tobogan),"Uma namorada para Kim Myong-Guk" (halterofilismo), "A revolta dos fiscais de linha" (futebol), "A décima primeira maratona de Samuel Makau"(atletismo), "O nosso antídoto é o teu veneno" (futebol)...

 

Viagens

 

Relatos de viagens inventadas: Mustang (um coast to coast), uma visita ao Gana  e Machu Picchu y nada más. Ainda não as consegui vender. 

 

Lições da Planície

 

Aforismos e afins, com ligação a uma qualquer experiência que não está a mais de 48 do acto da escrita. Periodicamente, é feita uma selecção em séries de 10, os Decálogos da planície.

 

Quem matou Igor?

 

Um policial com spoiler warning e um pretexto para visitar Espanha.

 

Geodésicas

 

Uma tentativa de dar ao impulso inicial as condições necessárias para mais nada ser preciso, atribuindo a um lugar propriedades sobrenaturais:

 

"Só que no outro dia, quando descia do monte encimado pelo marco geodésico e caminhava ladeado de arbustos que se enchem de flores brancas na Primavera, flores grandes, capazes de atrair abelhas e até apicultores, senti ali, ali mesmo, não uma promessa de Primavera mas algo que, à falta de outro termo, eu diria, sem mais demoras, poder ser descrito como "inspiração". Se sempre pensara que a inspiração descia sobre os homens vinda dos céus, experimentei algo distinto: a minha inspiração subiu-me pelas pernas e vinha tão carregada do cheiro aos actinomicetos da terra molhada que, em rigor, também me entrou pelas narinas. Estaquei logo, como se fosse um  descobridor de água por radiestesia que, de súbito, sente vibrações no seu graveto em forquilha. Sentei-me num pequeno afloramento xistoso, senti a pedra quente, etc., tirei o bloco de notas e comecei a escrevinhar impacientemente, freneticamente e depois obsessivamente (...). Nunca nada assim me havia acontecido. Há homens que têm dias triunfais; eu tive umas boas 3 horas triunfais. E materializou-se uma história no fim. Uma história em que não havia sequer pensado até então, nem mesmo quando estava junto do marco geodésico, mas que não é filha da escrita automática. A história não tem qualidade para se apresentar ao público e só a sua génese importava contar".

 

A verdade é que só ainda foram paridas duas geodésicas: A Educação Pornográfica de Inácio Ramalho e Ainda há Tubarões na Ponta do Sol.

 

Leituras sob o plátano

 

Moby Dick, Cartuxa de Parma, Guerra e Paz, Infinite Jest, Quijote, Recherche, Pais e Filhos.

 

21
Mai11

Aconteceu uma coisa extraodinária


Eremita

Creio que foi Miguel Esteves Cardoso quem sugeriu que o esforço investido na escrita de uma carta deve ser inversamente proporcional ao número dos seus prováveis leitores. Esta formulação é muito inteligente, porque o seu carácter contraintuitivo cria uma tensão que só se resolve a contento de todos quando pensamos no exemplo da carta de amor. Não estamos diante da simples excepção que confirma a regra, mas que a salva, que lhe dá sentido. É como se houvesse uma descontinuidade tão abrupta na função, que acaba por ser a sua essência. É como se o problema deixasse de ser o da falta de universalidade da regra, mas o seu contrário, isto é, o da desadequação do universo à regra. Em suma, é como se apenas interessasse o amor.

 

© Rita Pinamona

 

Sendo de uma generalidade apenas aparente, nem por isso a aplicação directa da teoria geral de Miguel Esteves Cardoso à carta de amor resulta necessariamente redundante. Em concreto, quando usada para captar a essência da carta de amor perfeita, chegamos a conclusões que recuperam o carácter contraintuitivo da teoria geral, mas agora também dentro do universo restrito e tido por excepção, pelo que as conclusões são novas.  Ressalvo que a aplicação não visa definir um tipo de carta de amor, o que seria uma infantilidade; pretende-se apenas identificar um critério que permita avaliar uma tendência e que apenas compara, não define. Ora, construindo a partir da teoria geral, mas num esforço simultâneo de dedução e indução, creio que o caminho para chegar à carta de amor perfeita é dado pela aproximação assimptótica a zero do número dos leitores sobre o tempo investido na escrita.  É um rácio, mas podemos simplificar: vale mais uma carta que demorou 1 mês a ser escrita do que a que foi feita em 5 minutos e vale mais a carta que for apenas lida pelo destinatário do que aquela que entra de imediato no domínio público.

 

 

Aqui, a tensão é menos óbvia, mas está ainda presente. E não subsiste como mera recapitulação fractal do caso geral. A tensão é criada entre o valor dado à privacidade e o valor social das celebrações públicas de amor. Como não nos parece que se resolva o paradoxo relembrando que uma carta de amor é apenas um dos tipos de cartas,  que são objectos da esfera privada, devemos procurar outra explicação.

 


 

 

 

Continua

09
Abr11

Joni Mitchell


Eremita

 

 

Se a memória não me falha, Gonçalo M. Tavares tem uma frase que não andará muito longe desta: a minha religião é o novo. Gosto muito. Porque ando a ler as mais famosas confissões (Chesterton, Tolstói, Santo Agostinho...) e a imagem que fica do pensamento religioso é a de um raciocínio fracturado em cuja fissura se injectou fé. Reduzida a cola, só snifada a fé pode inspirar. Guardo para o fim a teodiceia positiva de Sampaio Bruno, que já folheei e me pareceu escrita de um homem superiormente inteligente, mas se até Kant não conseguiu, o que devo esperar de uma celebridade local e hoje esquecida de quase todos? Daí que uma saída possível seja a transformação da religião em algo de idiossincrático, isto é, em algo inatacável. Pode ser o novo, o velho, o repetido; o importante é que seja genuíno e que a explicação não sobreviva ao seu autor. Nesse sentido, a minha religião é o acaso. Não haverá grande idiossincrasia nisto, bem vistas as coisas, mas convém esclarecer que não ando fascinado com o mistério da coincidência. O fascínio pela coincidência tem uma explicação racional. Também não fiz de Paul Auster o meu profeta - haja amor-próprio. O paralelo que encontro é com o que Herberto Helder escreveu sobre o conforto espiritual que retiramos de um estilo (vem no Os Passos em Volta, creio, mas não vou abrir o tupperware). Agora por minha conta e risco: o estilo tem três momentos; no primeiro, a criança descobre por imitação o estilo da espécie; no segundo, o adolescente procura por necessidade o estilo de um grupo; no terceiro, o homem encontra por acaso o estilo de um indivíduo. A salvação é isto. 

 

Continua (é a propósito daquela carta que chegou há uns dias).

02
Abr11

Arctic Monkeys


Eremita

 

 

 

Faz quase um mês que a carta chegou e não tenho pensado noutra coisa, querendo com isto dizer que, sem deixar de lado outros assuntos, é sempre à carta que o pensamento regressa. Não era para mim, vinha endereçada a uma mulher de nome próprio escandinavo e apelido italiano. O endereço estava certo, não foi extravio, e andei uns dias sem saber o que fazer. O mais correcto teria sido perguntar ao dono da casa que aluguei se ele conhecia aquela mulher e se sabia onde ela agora se encontrava. Foi o que fiz, mas só quando me convenci da improbabilidade de ele me poder esclarecer; a vontade de ler aquela carta era já tão grande que ia apenas tentando erguer umas barricadas para resistir à cavalgada do remorso. Não abrir a correspondência alheia é um dos grandes ausentes dos dez mandamentos e até mais importante do que um outro ausente, o "não desperdiçarás comida", porque este ofende genericamente e aquele ofende destinatário e remetente. Ensinam-nos isto quando somos crianças, antes de termos escrito ou recebido a primeira carta, e nem nos passa pela cabeça que um dia seremos postos à prova. Vivi até ontem sem violar essa regra. 

 

O dono da casa soube apenas informar-me que a mulher de nome italiano tinha alugado aquela casa em 2007, durante uns meses, saindo em Agosto ("queixava-se do calor e o ar condicionado foi ela que comprou e instalou, você devia agradecer-lhe"). Como calculei, ele mais nada sabia sobre ela. E com alívio confirmei que ele não ficara com o seu contacto telefónico (perguntei-lhe pelo número  baixando a voz, enfiando a pergunta entre duas frases desconexas) e que mais ninguém na vila a conhecia ("ela era um pouco estranha no modo de vestir... não falava com ninguém. Creio até que era vegetariana"). A conversa só me animou durante alguns dias. Nunca duvidei que o gesto certo teria sido meter a carta dentro de uma carta, que endereçaria ao remetente e a que juntaria um bilhete explicando o meu esforço para a ajudar, rematado  com uma frase simpática e pouco indiscreta. Se há alturas em que falhamos por falta de lucidez ou de uma imaginação que encontre a solução mais justa, esta não foi exemplo.

 

Para me demover,  tentei imaginar o conteúdo que mais implicações nefastas me trouxesse, se dele tomasse conhecimento. Um bilhete suicida que me obrigasse a tomar medidas rápidas, contactar os bombeiros de Brighton, explicando-lhes de Ourique o que estaria prestes a acontecer; a confissão de um crime; o anúncio do assassínio iminente de alguém conhecido...  Afinal, talvez me tenha faltado imaginação, porque estes cenários só aumentaram a tentação. Abri o envelope com o máximo cuidado, para que o pudesse voltar a fechar sem sinais de ter sido violado. Lá dentro encontrei uma fotografia e uma única folha, manuscrita de ambos os lados numa caligrafia de mulher que não me impressionou. O texto vinha em português e inglês, não como uma edição bilingue, antes passando de uma língua à outra com facilidade, segundo um princípio que me pareceu logo óbvio: as partes em que mais se exaltava estavam em português e as partes mais descritivas e reflexivas em inglês. Não havia palavrões, nem sequer insultos educados, embora fosse uma carta de desgosto de amor e rompimento. Não retive o essencial, perdi-me logo nos pormenores: era escrita automática ou fluxo de consciência (nunca percebi a diferença, a primerira parece-me um caso extremo da segunda), cheia de interrupções no raciocínio e múltiplas referências, algumas que me eram completamente estranhas.  Para um contexto tão estereotipado, pareceu-me uma escrita invulgar,  em contraste com o gesto de separar os amantes rasgando a fotografia. Lá se via então apenas uma mulher a sorrir, abraçada pela que tinha desaparecido. Fiz como o Ray Charles: a partir do perímetro do pulso que se via tentei imaginar-lhe o corpo. Porque embora não houvesse uma forma lógica de perceber se a que ficara na foto era o remetente ou o destinatário, eu já fizera uma escolha e preferia não conhecer a cara de quem escrevera o que tinha acabado de ler, para poder gozar a curiosidade. Tudo isto aconteceu ontem.

 

Hoje, pela manhã, resolvi escrever-lhe. Senti-me um pouco Zelig, pois notei que lhe imitava o estilo, não como se tentasse um pastiche, nem sequer um pastiche falhado, era só aqui e ali um detalhe, uma escrita mais acelerada e livre, que não é a minha. Talvez fosse só por estar a ouvir os Arctic Monkeys, banda que ela conhece e cujo nome na minha cabeça soa sempre a Attic Monkeys, corruptela que deve ter a sua inevitável explicação freudiana, embora a associação a "macaquinhos no sótão" me pareça embaraçosamente infantil. Também lhe dizia mais do que se esperaria num primeiro contacto. Senti necessidade de lhe contar a verdade, mesmo sendo fácil ter deixado eliminado os vestígios do meu acto.  Não o fiz por desejo de descansar a consciência, estava ciente de que era tudo parte de um plano. Um plano que passava por me colocar em situação de inferioridade moral, que mais depressa lhe provocará uma reacção do que um gesto de civismo. É verdade que agora não me sinto muito bem e precisei de desabafar, mas a carta já está no marco do correio e os dados estão lançados. Brighton. Chovia muito no dia em que cheguei a Brighton.

 

 

 

 

 

 

 

 

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