Inés Sastre e a farmácia de El Granado
Eremita
11. Creio que também gosto de farmácias pela feliz extensão do vocabulário que oferecem. Quase todas as palavras que descrevem esse mundo são belas, a começar por "alquimia" e "boticário". Já não há por lá retortas, nem almofarizes, outras duas belas palavras. Gosto de "drageia" - poucos a utilizam. E a palavra "bula" tranquiliza-me tanto que nunca a digo uma vez sem a repetir logo outras duas vezes, com alguma musicalidade. Mas não vem daí o meu fascínio por farmácias. As farmácias são lugares mágicos porque nelas o tempo desacelera. Nunca a farmácia será palco para série de TV de sucesso. O seriado televisivo prefere a esquadra de polícia, o escritório de detective, os tribunais e as urgências de um hospital, porque é aí que encontra as situações de vida ou morte e os conflitos morais mais agudos, em ritmo sempre apressado. Na farmácia estamos um passo atrás ou um passo adiante desses enredos, caminha-se para lá ou de lá se saiu e tudo acontece então a um ritmo de câmara lenta, acordos tácitos, um don't ask, don't tell público que muito me agrada. Certa noite, numa farmácia de serviço, dois heroinómanos que suavam queriam comprar seringas e fizeram-no sem o menor desespero, esperando na fila, não por mérito deles, que suavam mesmo muito, antes imbuídos da dignidade do espaço envolvente, que absorveram por difusão passiva, apesar do fluxo de suor contrário. Naturalmente, o mercado tem vindo a corromper esse espaço cada vez mais e as farmácias estão hoje pejadas de uma publicidade agressiva. Daí ter desejado, quando ia a caminho, ver o rosto familiar de Inés Sastre nos anúncios dos produtos anti-rugas. Teria a Sastre começado os trabalhos de restauro ainda antes de completar 40 anos?
Descobri Inés Sastre na revista ¡Hola! quando era adolescente e nunca mais me voltarei a cruzar ou serei capaz de imaginar uma mulher mais bonita. Fiquei tão acantonado nesse veredicto que, logo desde então, quanto mais megalómano era o título do concurso de beleza, mais irreprimível era o meu gozo. As tais Miss Mundo, Miss Intergaláctica, Miss Universo, Miss Homo sapiens sapiens of All Times, enfim, todas essas mulheres eram joguetes ao serviço de interesses comerciais e davam mais pena do que tesão. Não que Inés desse tesão. Inés era tão bela e distinta que impedia qualquer aproveitamento onanista. Contemplava as fotos dela demoradamente e cada piscar de olhos meu fazia-me ver uma mulher com a mesma cara mas uma genealogia diferente. Ela era a figura perfeita para vender produtos para outras mulheres. Roupa, perfumes e cosmética, mas nunca um carro desportivo. A Inés viria a escolher a Sorbonne, não foi para Hollywood. E nessa escolha se percebeu que envelheceria com dignidade. Daí a sua previsível evolução para os cremes anti-rugas e a curiosidade com que franqueei a porta da farmácia.
A farmácia de El Granado pertence ao grupo em que o moderno dialoga com a tradição. Falta-me agora outro tipo de vocabulário, o de um decorador ou arquitecto de interiores - é a classe profissional com o discurso mais interessante, sobretudo ao nível do verbo, por misturar a tensão cómica de uma forma demasiado elaborada para a previsibilidade do conteúdo, a lembrar a conferência de imprensa de um treinador de futebol. Sem tal instinto e formação, limito-me a indicar o tal diálogo de gerações entre um austero móvel - mogno? - de altas portas envidraçadas e cornija bem trabalhada, que ocupa duas paredes, e as prateleiras amplas e brancas, creio que de contraplacado forrado por umas folhas de um material indescritível, mas branco. Atrás do balcão, a farmacêutica, com um ar credível de dona do estabelecimento, e ao seu lado um rapaz muito menos credível, que terá porventura beneficiado de algum nepotismo. Como clientes, uma velhota muito mirrada à frente de todos, que, viria a perceber mais tarde, era escoltada por uma quarentona de grande caixa torácica e ar de lésbica camionista, talvez sua familiar, e uma outra mulher, também idosa mas não tão mirrada, acompanhada por um homem com ar de medíocre e que ela repreendia com autoridade de mãe, tentando explicar-lhe que se tosse em público trazendo a palma da mão à boca. Não cheguei a perceber o que cada um destes casais comprou, pois passei a maior parte do tempo à procura de Inés Sastre. Não a vi nos grandes painéis publicitários, um que mostrava umas nádegas anónimas salvas da celulite e outro com o rosto de um homem de cabelo grisalho e rosto impecável, uma criatura que sabemos ter ainda menos anos do que os que aparenta a figura que pretende representar, a de um homem rejuvenescido com um qualquer produto desse mercado em expansão que é o da estética masculina. Não a vi depois em nenhuma das embalagens que inspeccionei de longe, na certeza de que o seu rosto simétrico, ainda que minúsculo, se destacaria, nem naquelas em que depois peguei, já sem pudor e talvez acusando a ansiedade de quem quer muito alguma coisa, embora pudesse ser a impaciência de quem está apenas farto de esperar. Muito se demoram as velhas nas farmácias.
Saí da farmácia com aspirinas efervescentes de 500 g e com o meu emplastro. Ainda vinha a sorrir por ter corado quando o pedi. Creio que o farmacéutico não notou, como teria notado se fosse um rapaz a pedir preservativos. Mas eu senti o rubor na face e gozei depois essa inside joke, ganhando a cada passada vontade de a partilhar com Lucinha e tentando até que o rubor não desaparecesse antes de chegar à pensão, embora evitasse correr, para que fosse o rubor original; ela foi violada e passou a merecer verdades absolutamente verdadeiras. Quando pedi a chave do quarto, fui informado de que Lucinha tinha feito o checkout, deixando-me um envelope. Encontrei lá dentro o dinheiro que lhe dei para que fosse a uma ginecologista. Abandonado pela nobre Lucinha e ignorado pela distinta Inés Sastre, experimentei então uma súbita vontade de acelerar até San Silvestre de Guzmán e, com dinheiro daquele inesperado bónus, alugar a puta da Consuela até não poder mais.