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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

24
Jul20

11


Eremita

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A mulher já entrara hesitante na sala, mas diante de Julião ficou mesmo muda. Em poucos meses, ele passara de desconhecido a activista mediático e gozava agora do maior dos luxos, que é a opção de escolha. De todo o país chegavam relatos de discriminação que a sua equipa hierarquizava segundo o grau de injustiça e ele rapidamente reordenava na sua cabeça de acordo com as noções de marketing político. Só assim se explica que viesse a pegar no caso trazido por esta mulher e não no de dois miúdos que ainda levavam reguadas do professor de uma remota localidade quando apanhados a escrever com a mão esquerda. A mulher, que se habituara a ver Julião na televisão e, apesar da timidez, caminhava a passos largos para a radicalização, não só era mãe solteira como telegénica. Julião percebeu de imediato que tinha de armar um esândalo por causa de uma ficha de avaliação do terceiro período em que a condição de canhoto não é enunciada mas apenas deduzida. 

Continua

 

 

 

 

11
Nov19

11


Eremita

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fonte

Procurámo-la para que a pudéssemos esconder como a arma de dissuasão proibida. Andámos pelos bairros dos desfavorecidos, colocámos anúncios nos placards dos supermercados e das lavandarias, criámos rumores como quem lança redes ao mar, mas nada. Nem sei hoje por que razão não nos lembrámos da solução óbvia mais cedo. Para encontrar a mais rara das criaturas, nada bate um casting. Com alguma preocupação, o nosso homem dos números, um génio do Técnico, tinha avisado: "no país calculo que 0.3 pessoas reúnem essas características. Admitindo algum grau de correlação entre as características, talvez existam 5 a 25 pessoas". Entre nós, passámos a tratar a raridade como o unicórnio da interseccionalidade. 

Continua

10
Nov19

10


Eremita

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fonte

"Handedness, a consistent asymmetry in skill or use of the hands, has been studied extensively because of its relationship with language and the over-representation of left-handers in some neurodevelopmental disorders." BioRxiv

A biblioteca de Julião foi sendo substituída por uma base de dados, a sua curiosidade pela ideologia, o capricho displicente por uma disciplina férrea. Escreveu que passou a retirar da patologização do canhotismo uma indignação capaz de o resgatar dos momentos de desânimo, mas talvez fosse sobretudo ressentimento.

Continua

27
Jan19

9


Eremita

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fonte

Nona entrada de Canhotismo: a Coligação das Minorias ou simplesmente A Coligação das Minorias... ou A Educação de um Revolucionário... ou Julião: um Percurso Político... ou outro título qualquer. A nona entrada é primeira revelação dos manuscritos de Julião censurados pelo próprio. Julião escrevia o seu pensamento político à mão, usando uma caneta de tinta permanente que estava na família há duas gerações e, obviamente, tinha um aparo destro. A desadequação da caneta tornava a escrita penosa e não melhorava a caligrafia, mas era uma forma de Julião se motivar para a luta política. Curiosamente, Julião escrevia as suas cartas de amor ao computador, em Times New Roman, 12-point, por vezes pondo todo o texto em itálico, porque acreditava na grafologia e não gostava de se expor em demasia. Das várias bengalas que caracterizam o estilo de Julião, muito parco no uso de vírgulas, destacamos os termos e expressões da literatura científica e o "Companheiros" com que inicia muitos parágrafos, mesmo que nenhum destes textos tenha alguma vez sido proferido em público, pois Julião falou sempre de improviso. 

 

A nossa luta   [data ilegível por causa de uma mancha de manteiga]

 

Companheiros, os reaccionários liberais querem assustar-nos quando nos dizem que, levada às últimas consequências, a interseccionalidade tende assimptoticamente para o liberalismo. Nós estaríamos numa etapa primitiva do caminho que eles já percorreram. Mas os liberais apenas inadvertidamente nos lembram que a nossa luta, a nossa arte, é encontrar a justa medida, saber travar a dinâmica da interseccionalidade no momento certo, muito antes da atomização da sociedade no indivíduo e da promoção do livre arbítrio ilusório em que eles marinam - o livre arbítrio terá de ser uma ilusão circunscrita ao Direito, não pode continuar a contaminar a política. Mas retomo: que momento é esse? Que ninguém se engane: o momento em que o canhotismo estiver ao nível da cor da pele, do género, da orientação sexual e da confissão religiosa. Não está; veja-se como nos ignora o intelectual público. O cúmulo da interseccionalidade não pode ser @ transexual homossexual negr@ que se ajoelha diante da estatueta de uma qualquer divindade exótica. O cúmulo, a figura caricatural de sketch humorístico terá de ser @ transexual homossexual negr@ que se ajoelha com o joelho esquerdo. Só o canhoto ainda traz no corpo a tensão virgem da revolta. Não é o negro que já se rebeliou. Não é a mulher que foi perdendo força vital a cada  vaga feminista. Não é o homossexual que tão depressa conquistou direitos sociais nas sociedades ocidentais. Não é sequer o transexual, que começa a ganhar protagonismo na luta pelos seus direitos. Somos nós, companheiros, nós os canhotos, a minoria que transitou de uma opressão milenar para a invisibilidade sem um pedido de desculpas ou recompensas, sem dúvida devidos dado o sofrimento da nossa gente, mas que nos anulariam. Nós somos a minoria silenciosa e, por isso, o único núcleo capaz de unir todas as minorias. Quem julgar ridículas as nossas pretensões só nos dará mais força, pois o consenso que se criou foi forjado para nos manter dominados ao nível da consciência, onde estão as grades mais grossas. Menos Marx e mais Gramsci, companheiros. Nós somos antes de tudo revolucionários da ideologia.

 

Companheiros, seria um erro exigir desculpas, seria um erro lutar pelo nosso direito ao reconhecimento. Nós não queremos reconhecimento, queremos o poder. As outras minorias falharam duplamente. Falharam primeiro quando não exibiram a magnanimidade do oprimido, não a coisa cristã de dar a outra face, antes o instinto da união, a capacidade de ver além da condição de cada um. O canhoto não pode lutar em nome dos canhotos, ele tem de se transcender e lutar por todas as minorias. Os outros falharam depois ao deixar que as suas parcas conquistas os neutralizassem. O canhoto nunca esgotará a sua força, por maior que seja o seu sucesso. O canhoto nunca renegará a sua condição em troca da integração na sociedade. O canhoto nunca se vitimizará, pois a sua condição de vítima é um recurso esgotável. Por não ser absolutamente genética, como a cor da pele, nunca a condição biológica fará de nós uma linhagem marginalizável e exposta aos ciclos de perpetuação de pobreza e ao estigma. Por ser congénita e imutável, nunca o canhoto cederá à tentação da hegemonia demográfica, ao impulso expansionista, à propaganda. O canhoto emerge quando menos se espera em qualquer família, seja qual for a condição social e a interseccionalidade. Por isso, somos naturalmente feitos para liderar num tempo em que não há regime alternativo à democracia liberal e o populismo cresce como ameaça. Nós somos  a personificação do antídoto populista. Nós somos - perdoem-me a provocação -  o verdadeiro povo eleito, filhos de um acaso legitimador com regras invioláveis, que estabelece um paralelo óbvio com os sorteios tão essenciais à Democracia Ateniense. Nós não somos apenas a minoria silenciosa, fomos até agora a minoria abstracta, sem cultura e sem identidade, mas vítimas de estigmatização. É esta a quadratura do círculo que nos legitima. Não caiamos no erro identitário, companheiros. Que nenhum de nós exija uma História e uma cultura. Sabemos que existiu, mas a nossa identidade terá sempre a força da dissuasão, não é para ser usada, sob pena de perdermos para sempre a nossa autoridade moral. Temos de saber recusar a narrativa identitária e vitimizadora,  temos de recusar publicamente a identidade canhota, pois trocamos a identidade pela liderança. O canhoto que lembrar canhotos célebres é um canhoto idiota. Não seremos apenas mais uma minoria nesta longa cadeia das conquistas sociais, seremos o cimento que federará todas as minorias. 

24
Nov18

Identidade


Eremita

Bibliografia gratuita [em construção]

Metacanhotismo

A série Canhotismo: a Coligação das Minorias ou simplesmente A Coligação das Minorias ou ainda A Educação de um Revolucionário (talvez um subtítulo) ou Julião: um Percurso Político, enfim, esta coisa será sobre a política identitária. A ideia pareceu-me boa e não podia ser mais actual: um canhoto megalómano faz do canhotismo uma identidade e ataca o poder pela via democrática coligando todas as minorias esquecidas. Cheguei aqui pela vontade de escrever sobre a biologia do canhotismo sem repetir o que já se encontra na literatura estrangeira, tendo ainda presente que muita divulgação científica é  aborrecida e irritante por se basear no pressuposto pateta de que a ciência é interessante. A sátira política pareceu-me um exercício útil, em parte por tornar mais difícil a divulgação científica - ainda não descobri a fórmula para o fazer de modo orgânico, mas talvez passe pelo estratagema usado por Coetzee no romance Elisabeth Costello. A outra dificuldade é: como ir além da caricatura óbvia a que a interseccionalidade e a última regurgitação de Foucault se prestam? Como ter sempre presente que um cromo como o blasfemo Vitor Cunha não poderá nunca ser o narrador, mas merece ser uma personagem? Não faço ideia, para ser franco. Entretanto, tenho acumulado leituras, links e pdfs. Continuo surpreendido com a facilidade de acesso à melhor e mais actual informação. É verdade que algumas vias serão ilegais e uma discussão sobre a ética do leitor levar-nos-ia por caminhos tortuosos, mas não deixa de me surpreender que em segundos consiga aceder sem qualquer custo a um artigo do Fukuyama, à útlima diatribe de John Gray contra Fukuyama e até ao pdf de um livro do conceituado Kwame Anthony Appiah publicado em 2005 e que certamente não passou ainda para o domínio público. 

05
Jan18

8


Eremita

Oitava entrada de Canhotismo: a Coligação das Minorias ou simplesmente A Coligação das Minorias... ou A Educação de um Revolucionário... ou Julião: um Percurso Político... ou outro título qualquer. A oitava entrada é a primeira prolepse. Tem ainda a particularidade de pertencer à série Canhotismo e também à série Leituras de Cabotagem, que acabo de criar e me obrigará a um trabalho de catalogação de muitos posts antigos.

 

[prolepse]

 

Julião avançava com rapidez pelo corredor definido, à esquerda e à direita, por quinze secretárias perfeitamente alinhadas, cada uma equipada com um computador. Trinta membros do partido trabalhavam ao teclado e mexiam em papéis e dossiers, não parecendo mais atarefados do que nos instantes que precederam a entrada de Julião. O pé-direito era alto, através do picotado das persianas já se percebia o lusco-fusco da rua e, no interior, a luz ambiente vinha apenas dos trinta candeeiros de secretária, modelos cromados de braço em manga maleável, vintage mas baratos. A atmosfera do longo salão só parecia kafkiana no mobiliário, porque as roupas eram modernas e os treze ou quatorze que não trabalhavam com auscultadores chegavam para criar algum burburinho jovial. Depois de estacar diante da quinta secretária da direita e de pegar numa folha, Julião teve de elevar a voz para que os três que o seguiam com o olhar ouvissem o que lia: 

 - "Anaïs era larga de corpo, morena e atlética, delicada de feições excelente ouvinte, assistente social de profissão, canhota, irónica, paciente até ao infinito, porém implacável com os sonsos e com os presunçosos." Gosto. Mata alguém?

- Ainda não acabei a leitura, mas duvido; é uma personagem simpática. 

- Com força moral?

- Sobretudo bondosa e justa; serve a causa. Mas devo precisar que talvez trabalhe em publicidade, não se percebe bem...

- Não é excessivamente grave.

- De quem é?

- De Alexandre Andrade. O livro chama-se O Leão de Belfort

- Não conheço. É dos nossos?

- Ainda não excluí essa possibilidade, mas até agora nada parece confirmá-la. 

- O costume...

- É um físico, autor de culto.

- Já temos um retrato da... Anaïs?

- Talvez amanhã. 

- Façam-na bonita. 

 

Longe iam os tempos em que, sozinho, Julião passava os serões no seu quarto a compor biografias épicas dos  grandes canhotos da História e a catalogar todas as personagens canhotas que encontrava nos livros, filmes, séries, peças de teatro, quadros, fotografias e banda desenhada. Ele não se contentava com as costumeiras listas de canhotos famosos, incompletas, sem critério nem enquadramento. Queria abarcar o mundo inteiro, compor uma História Universal segundo os canhotos, sobre canhotos e para todos, definitiva pelo rigor, o alcance e o aparato teórico, que precisasse apenas de actualização periódica. Sonhava também com "o panteão dos esquerdinos". 

Continua

 

 

 

19
Mai17

A minoria silenciosa


Eremita

É chato ser canhoto porque o mundo está feito contra nós. Não é só a tesoura que não dá jeito: também não corta e, se nos esforçarmos para conseguir cortar, magoa a mão e corta tudo torto, sem que possamos ver o que estamos a fazer.

Para um destro ter uma ideia do que é ser canhoto seria preciso que, durante uma semana, se amanhasse com uma faca de pão para canhotos, um abre-latas para canhotos, um apara-lápis para canhotos, um saca-rolhas para canhotos, um descascador de batatas para canhotos, uma régua para canhotos, uma caneta de tinta permanente para canhotos e um bloco para canhotos. Qual é o destro que já passou por isso?

Acrescente-se, já agora, a gracinha de nem sequer saber porque é que estas utilidades são todas tão inúteis e o sacrifício, por uma questão de sobrevivência, do direito de estar sempre a queixar-se. Para não falar na despesa de substituir as coisas (como o abre-latas) que fatalmente destruirá.

Toda a orientação dos livros, deste jornal, deste website, é anticanhota. Não há neutro: é esse o problema. Se fossem para canhotos, sofreria a grande maioria dos leitores, que são destros. A companhia anythinglefthanded.co.uk fez um valioso vídeo em que mostra as dificuldades concretas dos canhotos, começando pelas crianças.

Não basta simpatizar com elas: é preciso compreender as causas físicas das frustrações delas com as coisas concebidas para os destros. É simples e insolúvel: para os canhotos as coisas (e as pessoas) direitas é que estão ao contrário.  Miguel Esteves Cardoso

 

Não conheço pessoa mais canhota do que eu. Só escrevo com a mão esquerda, só dedilho a guitarra com a mão esquerda, só remato menos mal com o pé esquerdo, só pisco com convicção o olho esquerdo, só confio nas papilas gustativas do lado esquerdo. Sinto o meu corpo como uma quimera em que, dos pés à cabeça, só a metade esquerda me é familiar. É a metade mais treinada e gasta, tão mais vigilante que só não trato a direita abaixo de parasita por respeito aos manetas e pernetas. Conseguiram ensinar-me a usar a faca e o garfo como os destros, mas em tudo o resto sou um canhoto selvagem; e nas noites de lua-cheia, buscando o reencontro com a minha natureza, ao jantar troco a faca e o garfo de mãos*. Porém, a prosa de Miguel Esteves Cardoso pode encantar os jovens, mas não comove este canhoto veterano. 

 

Há por aí uns livrinhos que fazem o elogio ou a apologia do canhoto, invariavelmente escritos por canhotos, cheios de trivialidades como listas de canhotos famosos. E há, de vez em quando, um artigo de opinião à MEC sobre a discriminação a que os canhotos são sujeitos, que começaria na própria falta de percepção dos destros de que nós somos uma minoria desprezada. Por comparação a casos trágicos de injustiça social, esta vitimização, a propósito de uma característica física minoritária que em nada de essencial complica a vida, é tão caprichosa que felizmente ninguém a leva a sério.

 

A única forma que encontrei de lidar com o canhotismo foi a série homónima, que pretende ser uma paródia política. Nela se conta o percurso de Julião, um revolucionário canhoto. Ainda jovem, Julião apercebe-se de que consegue reunir à sua volta um grupo de canhotos. Ambicioso e ciente de que não haverá mais de 10% de canhotos votantes, Julião destila a essência do seu apelo e resolve seduzir todas as minorias, seguindo a intuição de que há uma sensação de abandono entre a vasta maioria que não pertence a alguma das minorias tradicionalmente discriminadas que começaram a adquirir direitos. É com esta coligação de minorias, uma materialização populista da juvenil necessidade de pertença, que Julião conquistará o poder. Pareceu-me um bom enredo para discutir política e oxalá o consiga terminar. Caso contrário, da próxima vez que um canhoto se lembrar do exemplo do raio da tesoura, pressinto que não responderei pelos meus actos e isso preocupa-me.  

 

* Este detalhe é mentira.

09
Fev17

7


Eremita

Sétima entrada de Canhotismo: a Coligação das Minorias ou simplesmente A Coligação das Minorias ou A Educação de um Revolucionário ou Julião: um Percurso Político ou outro título qualquer.

Screen Shot 2017-02-09 at 10.27.08.png

 

 

Apesar do vício da internet, Julião também foi influenciado por livros. Todos mentem sobre as obras que marcaram as suas vidas e Julião confirmaria esta regra numa daquelas entrevistas televisivas de consagração, mas antes de ser famoso ele teria reconhecido que o livro da sua vida não é nenhum clássico da literatura e nem sequer pertence a uma categoria nobre, pois trata-se de uma obra de vulgarização científica publicada no princípio dos anos 90 por um médico canadiano que nunca atingiria o estatuto de estrela do firmamento académico. O que chamou a atenção de Julião no título The Left-Hander Syndrome: The Causes and Consequences of Left-Handedness foi a palavra "syndrome" - uma síndroma; ou síndrome, palavra ainda feminina. Ele já lera sobre o canhotismo e adquirira uma sólida cultura de Trivial Pursuit em livros simpáticos escritos por jornalistas, curiosos ou reformados empreendedores: era capaz de enumerar os canhotos mais famosos da História, sabia que "sinistrismo" é um sinónimo revelador do estigma em tempos associado ao canhotismo, deslumbrava os amigos com relatos do clã Kerr, guerreiros escoceses exímios no manejo da espada com a mão esquerda, que construíram nos seus castelos escadas de caracol em que os degraus torneiam o eixo central com a orientação adequada a que um canhoto ganhasse vantagem nas espadadas contra os inimigos (em regra, dextros) que tentassem subir, e a presença de qualquer animal de estimação servia-lhe de pretexto para explicar que, ao nível da espécie, apenas o homem e o papagaio mostram um desequilíbrio claro na proporção de dextros e canhotos, com predomínio daqueles no homem e destes nas aves que falam. Julião sabia isto e muito mais, mas no fundo desprezava a cultura do facto deslumbrante e desgarrado. Sempre que não resistia à tentação de encantar os amigos com a sua canhotologia, Julião ressacava na cama, ainda acordado, para ser depois visitado em sonhos por um papagaio de peito viril e kilt escocês em pandã com as penas verdes, que o arranhava na cara enquanto recitava o início do Gettysburg Address, num timbre desagradável e sempre a mesma coreografia: "Four score and seven years ago [arranhadela com a pata esquerda] our fathers brought forth [arranhadela], upon this continent [arranhadela dupla], a new nation, conceived in liberty, [arranhadela] and dedicated to the proposition that "all men are created equal".

 

Continua

 

 

17
Jan15

6


Eremita

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Importa realçar o trilinguismo de Julião. Filho de mãe belga e com um pai adepto da cultura norte-americana, Julião cresceu alternando o francês com o português em casa e dominando o inglês na Carlucci American International School of Lisbon, instituição onde teria feito todo o liceu, não fosse ter saído em ruptura num momento em que chegou a ponderar uma adesão à Juventude Comunista Portuguesa e, com uma visão do mundo já moldada por centenas de horas de vídeos sobre o política norte-americana nos anos 70, o Verão Quente e as actividades do grupo Carlyle, passou a ser um imperativo de consciência cortar qualquer vínculo com o nome "Frank C. Carlucci". A frequência do décimo segundo ano numa escola pública, sem amigos nem os estímulos e rotinas a que estava habituado no colégio, só reforçaram o vício do Youtube. Julião passou a sistematizar as suas pesquisas e a impor algumas regras, como respeitar uma quota vaga que deveria andar por volta dos 30% de francofonia, privilegiar o documentário ao debate e o debate à notícia, ver pelo menos os 10% iniciais do conteúdo antes de desistir, ouvir os dois lados, evitar programas de humor, ignorar os jovens e não perder tempo com vídeos de opinião amadores, em particular aqueles em que o opinador se dirige ao mundo de um quarto desarrumado ou com mobiliário IKEA. Julião disciplinava-se para aprofundar áreas em que se sentia frágil e pressentia que poderiam vir a ser úteis, como a Filosofia, a História e a Retórica. Invariavelmente, a abordagem era cronológica e iniciava-se com os Gregos. Mas o essencial  do "processo" (sic) de Julião era a "fulanização exaustiva" (sic). Adoptando para o online o método anunciado com desconcertante orgulho por Michel Onfray, a saber, ler tudo, incluindo a obra, a biografia e a correspondência, Julião via todos os vídeos de um autor antes de passar ao autor seguinte. Daí ele poder dizer que estava na semana Onfray, Dawkins, Bataille (durou dois dias, em rigor), FinkielkrautTariq Ramadan, Friedman, Amis, Vidal, Chomsky, Buckley ou Hitchens (Christopher antes de Peter), entre dezenas de outros fazedores de opinião, divulgadores, filósofos,  artistas, políticos e diletantes. O discurso de Julião ficava assim muito vulnerável a picos de sapiência transiente, tanto na substância como na forma, mas ao jantar os pais eram um público predisposto ao aplauso. Os problemas só começaram a surgir quando, além do discurso exercitado em casa, também certos gestos de Julião passaram a reflectir a obsessão da semana. Um exemplo extremo foi o primeiro vídeo de galanteio enviado por ele. Enquanto os seus colegas partilhavam canções das bandas da moda, não forçosamente delicodoces, mas capazes de anunciar um pretendente sensível ou cúmplice, Julião sentiu-se tentado a desafiar a rapariga com um vídeo de Soral, o ex-Front Nacional, polemicista, conspiracionista, antissemita e misógino, só porque nessa semana andava fascinado com o bordão "Gauche du travail, droite des valeurs". Não resultou. 

 

 

16
Jan15

5


Eremita

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O interesse de Julião pela política levava-o a passar todos os serões e as madrugadas de sexta e sábado fechado no quarto e agarrado ao computador. Chegava a apagar a luz, deitar-se com o portátil e cobrir-se totalmente, o que no Verão fazia com que a cama se parecesse a um casulo de um algum animal luminescente. A percepção dos pais era menos cândida: nunca esquecendo a veia empreendedora que Julião revelara ainda miúdo, pensavam que o casulo incubava um futuro pornógrafo. Uma vez, entrando no quarto de repente em busca do flagrante delito, por instantes a  mãe tomou uma das sílabas vibrantes e alongadas pela oratória inflamada de pastor protestante à beira da conclusão como uma expressão de êxtase pré-orgásmico; só ao puxar o lençol viu que Julião se deleitava apenas com o discurso  "I have a Dream"Foram precisos mais alguns incidentes semelhantes para que os pais se convencessem do conteúdo e contexto histórico das expressões que captavam nas suas rotinas de espionagem parental, como o supramencionado  "Free at last, Free at last, Thank God All Mighty, We are Free at last!", proferido por Marther Luther King a 28 de Agosto de 1963.

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