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Nona entrada de Canhotismo: a Coligação das Minorias ou simplesmente A Coligação das Minorias... ou A Educação de um Revolucionário... ou Julião: um Percurso Político... ou outro título qualquer. A nona entrada é primeira revelação dos manuscritos de Julião censurados pelo próprio. Julião escrevia o seu pensamento político à mão, usando uma caneta de tinta permanente que estava na família há duas gerações e, obviamente, tinha um aparo destro. A desadequação da caneta tornava a escrita penosa e não melhorava a caligrafia, mas era uma forma de Julião se motivar para a luta política. Curiosamente, Julião escrevia as suas cartas de amor ao computador, em Times New Roman, 12-point, por vezes pondo todo o texto em itálico, porque acreditava na grafologia e não gostava de se expor em demasia. Das várias bengalas que caracterizam o estilo de Julião, muito parco no uso de vírgulas, destacamos os termos e expressões da literatura científica e o "Companheiros" com que inicia muitos parágrafos, mesmo que nenhum destes textos tenha alguma vez sido proferido em público, pois Julião falou sempre de improviso.
A nossa luta [data ilegível por causa de uma mancha de manteiga]
Companheiros, os reaccionários liberais querem assustar-nos quando nos dizem que, levada às últimas consequências, a interseccionalidade tende assimptoticamente para o liberalismo. Nós estaríamos numa etapa primitiva do caminho que eles já percorreram. Mas os liberais apenas inadvertidamente nos lembram que a nossa luta, a nossa arte, é encontrar a justa medida, saber travar a dinâmica da interseccionalidade no momento certo, muito antes da atomização da sociedade no indivíduo e da promoção do livre arbítrio ilusório em que eles marinam - o livre arbítrio terá de ser uma ilusão circunscrita ao Direito, não pode continuar a contaminar a política. Mas retomo: que momento é esse? Que ninguém se engane: o momento em que o canhotismo estiver ao nível da cor da pele, do género, da orientação sexual e da confissão religiosa. Não está; veja-se como nos ignora o intelectual público. O cúmulo da interseccionalidade não pode ser @ transexual homossexual negr@ que se ajoelha diante da estatueta de uma qualquer divindade exótica. O cúmulo, a figura caricatural de sketch humorístico terá de ser @ transexual homossexual negr@ que se ajoelha com o joelho esquerdo. Só o canhoto ainda traz no corpo a tensão virgem da revolta. Não é o negro que já se rebeliou. Não é a mulher que foi perdendo força vital a cada vaga feminista. Não é o homossexual que tão depressa conquistou direitos sociais nas sociedades ocidentais. Não é sequer o transexual, que começa a ganhar protagonismo na luta pelos seus direitos. Somos nós, companheiros, nós os canhotos, a minoria que transitou de uma opressão milenar para a invisibilidade sem um pedido de desculpas ou recompensas, sem dúvida devidos dado o sofrimento da nossa gente, mas que nos anulariam. Nós somos a minoria silenciosa e, por isso, o único núcleo capaz de unir todas as minorias. Quem julgar ridículas as nossas pretensões só nos dará mais força, pois o consenso que se criou foi forjado para nos manter dominados ao nível da consciência, onde estão as grades mais grossas. Menos Marx e mais Gramsci, companheiros. Nós somos antes de tudo revolucionários da ideologia.
Companheiros, seria um erro exigir desculpas, seria um erro lutar pelo nosso direito ao reconhecimento. Nós não queremos reconhecimento, queremos o poder. As outras minorias falharam duplamente. Falharam primeiro quando não exibiram a magnanimidade do oprimido, não a coisa cristã de dar a outra face, antes o instinto da união, a capacidade de ver além da condição de cada um. O canhoto não pode lutar em nome dos canhotos, ele tem de se transcender e lutar por todas as minorias. Os outros falharam depois ao deixar que as suas parcas conquistas os neutralizassem. O canhoto nunca esgotará a sua força, por maior que seja o seu sucesso. O canhoto nunca renegará a sua condição em troca da integração na sociedade. O canhoto nunca se vitimizará, pois a sua condição de vítima é um recurso esgotável. Por não ser absolutamente genética, como a cor da pele, nunca a condição biológica fará de nós uma linhagem marginalizável e exposta aos ciclos de perpetuação de pobreza e ao estigma. Por ser congénita e imutável, nunca o canhoto cederá à tentação da hegemonia demográfica, ao impulso expansionista, à propaganda. O canhoto emerge quando menos se espera em qualquer família, seja qual for a condição social e a interseccionalidade. Por isso, somos naturalmente feitos para liderar num tempo em que não há regime alternativo à democracia liberal e o populismo cresce como ameaça. Nós somos a personificação do antídoto populista. Nós somos - perdoem-me a provocação - o verdadeiro povo eleito, filhos de um acaso legitimador com regras invioláveis, que estabelece um paralelo óbvio com os sorteios tão essenciais à Democracia Ateniense. Nós não somos apenas a minoria silenciosa, fomos até agora a minoria abstracta, sem cultura e sem identidade, mas vítimas de estigmatização. É esta a quadratura do círculo que nos legitima. Não caiamos no erro identitário, companheiros. Que nenhum de nós exija uma História e uma cultura. Sabemos que existiu, mas a nossa identidade terá sempre a força da dissuasão, não é para ser usada, sob pena de perdermos para sempre a nossa autoridade moral. Temos de saber recusar a narrativa identitária e vitimizadora, temos de recusar publicamente a identidade canhota, pois trocamos a identidade pela liderança. O canhoto que lembrar canhotos célebres é um canhoto idiota. Não seremos apenas mais uma minoria nesta longa cadeia das conquistas sociais, seremos o cimento que federará todas as minorias.