Sónia e Artur (5)
Eremita
Artur estava tão fora de si que mais parecia ter surpreendido a mulher no quarto em intimidades com dois vizinhos. Afinal, limitara-se a abrir uma das gavetas da mesa-de-cabeceira. Se para Sónia já era bizarro que Artur mostrasse ciúmes de um objecto, a acusação de traição parecia-lhe inconcebível. Como sucede com tantos ex-seminaristas, Artur não era uma criatura normal. Para mais, ele sentira o apelo da fé e não o da elevada empregabilidade. Abandonou o seminário quando Sónia engravidou e ainda se penitenciava pelo pecado cometido e a vocação perdida. Ela fizera-se uma mulher despachada e lia as revistas femininas. Amava Artur mas o que ele lhe dava pontualmente nas manhãs de sábado não chegava. O dildo foi uma revelação, que chegou pelo correio. Vinha com livrinho de instruções e os esquemas eram muito didácticos. Sónia iniciou-se em segredo e com grande satisfação no onanismo assistido. Com o correr dos anos, foi-se tornando menos cuidadosa e passou a não fechar a gaveta da mesa-de-cabeceira à chave. Naquele dia, Artur procurava aspirina para uma dor de cabeça.
Primeiro tentou ver-se livre do seu inimigo pela retrete, mas de cada vez que descarregava o autoclismo, o pénis reemergia lentamente, ora pelos testículos, a lembrar o focinho de um enorme rato de água, ora pela cabeça, como uma moreia que sai do buraco. Seguiu-se uma sessão de Judo culminando na imobilização do pénis no colchão da cama, com um testículo a parecer espapar sob o lombo de Artur e a cabeça do pénis sufocando numa chave de braços improvisada, enquanto Artur lançava para o ar perguntas num crescendo de ansiedade, pouco faltando para dizer as falas do pénis e criar um número de ventríloquo. Chegou depois à sala, perseguindo o pénis que atirava violentamente contra o chão e fazia ricochetes caprichosos, e o espaço mais amplo da divisão despertou nele um deslocado reflexo lúdico, que o surpreendeu a tentar atirar o pénis contra a parede para depois o tentar recuperar sem que caísse ao chão. E veio, por fim, a trágica sessão na cozinha, transformada em sala de tortura, com o objecto a revelar uma resistência notável. Só ao ver o bico de gás aceso Sónia resolveu intervir. Cada um puxou então o pénis para seu lado, que ficou ligeiramente mais delgado e comprido, com uns quase imperceptíveis veios esbranquiçados, mas logo retomando a cor e forma originais quando Sónia cedeu. A resiliência do material estava a par da obsessão de Artur. Legitimado pela força, ele encheu-se de coragem e quis atirar o maldito objecto do nono andar para a rua, não reparando que a janela estava fechada. O pénis fez embate e rachou o vidro, ficando imóvel no axadrezado dos ladrilhos da cozinha. Artur ainda se aproximou embalado pela raiva, mas depois estacou: subitamente, o bicho movia-se e emitia um zumbido! Perante tão inesperada manifestação de animismo, Artur cedeu aos nervos, as suas pernas fraquejaram e também ele se deixou ficar pelo chão, chorando como um menino. Sónia não hesitou em quem socorrer; foi com habilidade que esticou a perna e usando os dedos do pé desligou o dildo, sem folgar o abraço com que consolava o seu homem.
Nunca chegaram a aprofundar as causas últimas, mas Sónia tratou de resolver o problema. A solução viria também pelo correio e as instruções eram explícitas, excepto para Artur. Ele não percebia nem a lógica de funcionamento da boneca, nem a lógica da sua mulher. Ela explicou-lhe então que se ele também gozasse o seu brinquedo sexual, talvez viesse a tolerar o brinquedo dela. Foi tal o alívio de Sónia ao reparar na reacção de Artur que não se apercebeu da natureza do seu súbito entusiasmo. Sabendo-o pudico, Sónia saíu do quarto, para que ele explorasse o brinquedo sem inibições. A vida dos dois restaurou-se. Continuaram a fazer amor apenas ao sábado, sem que ela tivesse notado qualquer acrescento de fantasia ou motivação da parte de Artur, mas ele não mais a incomodou por causa do pénis de borracha, que ela continuou a usar. Também Sónia não lhe fazia perguntas sobre a boneca, mas sabia que ele mexia nela. Nunca veio foi a perceber a razão da paz de Artur. Quando se trancava no quarto para brincar com a boneca, Artur usava apenas o brinquedo de Sónia. Aquele exercício restaurava a harmonia doméstica, por lhe dar a estranha sensação de ser ele o único homem da casa que era fiel à sua mulher.