Não perder esta oportunidade
Eremita
A empatia e a capacidade de mobilização decaem com a distância física a que a tragédia ocorre e o seu espraiamento no tempo, o número de repetições, o grau de inevitabilidade e a nossa dissemelhança com as vítimas, obedecendo a uma fórmula matemática que podemos não saber deduzir, mas intuímos. Reformulando em lei: quanto mais próxima (no espaço e na História), rara, aguda e evitável a tragédia, maior o seu impacto psicológico. Há razões para que assim seja, incluindo o tribalismo ancestral, que não tem boa imprensa, mas alguém que sinta a morte de um chinês da China como a de um amigo de infância ou que, por suposto respeito pelos milhares que morrem de "doença prolongada", reprima a comoção ao saber de uma catástrofe repentina que vitimou dezenas de pessoas, estará a deixar-se trair pela sua razão e a perder humanidade, sem que se perceba o que ganhou em troca. Isto é óbvio, mas não impediu que António Guerreiro escrevesse um texto informado a lembrar que "a biopolítica das catástrofes é reactiva e funciona à medida do que acontece em tempos curtos", para contrastar a comoção e aparente reacção à fulminante tragédia de Pedrógão Grande com a baixíssima prioridade que damos à lenta desertificação do Alentejo. Também o Xilre se sentiu tentado a fazer um exercício de relativização, chamando a atenção para outras mortes, pois "entre 2005 e 2015 morreram nas nossas estradas 6.694 pessoas, mais do dobro do número de vítimas do ataque às Twin Towers". O exemplo escolhido é infeliz, sendo a principal conclusão que retiramos dos dados da Pordata a grande diminuição do número de mortos na estrada nas últimas três décadas, o que, curiosamente, serviu para que Rui Tavares destilasse alguns ensinamentos para nos livrarmos dos incêndios. Adiante, porque o mais desconcertante nas reflexões de António Guerreiro e Xilre é ambos mostrarem que conhecem a lei do decaimento da empatia e mobilização, mas ainda assim se revoltarem contra ela, como se fosse possível e vantajoso descartá-la. Não é. E não vejo grande vantagem em criticar-se a biopolítica das catástrofes neste momento.
A morte de 64 pessoas num incêndio rural é uma tragédia e - muito provavelmente - uma vergonha para o Estado. Estamos perante uma oportunidade rara para mudar a política de prevenção de incêndios, o ordenamento do território e eventualmente a estrutura da propriedade rural. Do que precisamos agora é de uma estratégia para que não se legisle à pressa só para mostrar trabalho, mas sem que se perca também momentum. É preciso muito talento político para encontrar a justa medida numa altura em que todos exigem o apuramento de responsabilidades e uma urgência incompatível com a resolução do problema, que mesmo no melhor dos cenários será lenta e gradual. De resto, não há grande razão para optimismos. Nos EUA, um país politicamente mais evoluído do que Portugal, nem o terrível tiroteio na Sandy Hook Elementary School, em plena governação Obama, fez com que fosse criada legislação para restringir o porte de arma. Mas são também muitos os exemplos por esse mundo fora de legislação e regulamentos, sobretudo na área da segurança, feitos em resposta a catástrofes que se revelaram escolhas sensatas.