"Gente que Trabalha"*
Eremita
Aprecio vários tipos de bloggers, mas só admiro verdadeiramente aqueles que trabalham. Trabalhar é uma condição necessária, ainda que insuficiente. Ora, quase todos os bloggers optam por não trabalhar e escrevem o que lhes sai à primeira, sem amadurecimento nem consulta, num exercício diletante e narcisista. É um direito, mas feitas as contas, quem lê está a perder tempo, pois é sabido que os repentistas de génio migraram para o Twitter. A regra é muito simples e já foi enunciada de inúmeras maneiras: o tempo que quem lê o texto investe na leitura não deve ultrapassar uma ínfima parte do tempo que o autor gastou a escrevê-lo. Ninguém estimou esta relação numérica com rigor - um décimo do tempo de escrita? Um centésimo? - mas sabemos que é da ordem das magnitudes. Daí que a minha grande descoberta de 2016 tivesse sido o blog Homem à Janela, de Alberto Velho Nogueira, onde podemos ler a crítica literária mais radical e original a autores portugueses consagrados, num registo alheio ao elogio fácil e à maledicência caprichosa. Pois bem, após um ano de 2017 sem descobertas macantes, ainda vamos em Fevereiro, mas anuncio já que o blog de 2018 é Homem-de-livro, de Luís Miguel Rosa (LMR). Em tempos apreciei muito um blog que se chamava Homem a Dias, de um saudoso Alberto Gonçalves (que hoje despacha alucinadas crónicas de consolação no Observador) e não posso excluir uma queda bizarra para blogs com a palavra "homem" no título, mas também por isso é oportuno lembrar que aprecio muito outro trabalhador incansável, o Henrique Manuel Bento Fialho, que escreve no Antologia do Esquecimento, e a malta do blog Ladrões de Bicicleta, que até mostra gráficos originais. Se conhecerem outros blogs (em português, inglês, francês ou castelhano) de gente trabalhadora, avisem, por favor.
O mais recente post de LMR é um verdadeiro achado. Quando, num país com apenas 10 milhões de habitantes e dominado pela monocultura do futebol, um cidadão, fora do circuito da academia, é capaz de elaborar uma crítica a um escritor estrangeiro relativamente obscuro como Paul West, há motivos para acreditarmos em nós enquanto povo. No meu caso, a satisfação vem acrescida por ter experimentado durante a leitura do post uma sensação crescente de déjà vu que resolveu em epifania transbordante: nunca antes lera Paul West, mas lembrei-me que, afinal, já conhecia a tragédia dos seus últimos anos (um AVC que o deixou afásico), contada pela sua mulher, Diane Ackerman, numa entrevista a Michael Silverblatt**. O post de LMR deixou-me a mesma impressão com que ficara aquando da audição da entrevista: Ackerman e West dificilmente virão a ser uns dos meus escritores. O ensaio Purple Prose, de West, a que cheguei guiado por LMR, não me fez mudar de ideias: quando West defende um estilo "elaborate without being ornate, ambulatory without being pedestrian", leio as ressalvas como um acto falhado e só me ocorre que se UpDike, a aceitar o veridicto de David Foster Wallace, era “just a penis with a thesaurus”, West parece ser just a thesaurus, o que não deixa de ser problemático e é muito mais aborrecido. Mas o caso não está arrumado. O entusiasmo de LMR fará com que dê a West o benefício da dúvida e inicie a leitura de um dos seus romances.
* Verso de uma canção de Paulo de Carvalho.
** Só durante as leituras para escrever este post me dei conta de que o meu primeiro contacto com Paul West precede a entrevista: o escitor figura como personagem num dos capítulos do livro Elisabeth Costello, de J. M. Coetzee, que li sem inscever West na memória.