Assertividades com pés de barro
Eremita
Considero que esta nova geração de escritores não é assim tão extraordinária. Bárbara Bulhosa
Se tomamos por referência este cenário de fundo, quem se salva hoje em dia? Técnica literária e pirotecnia novelística, temos. Repetição do mesmo, não falta. Mas se um autor estiliza o romanesco cai na individuação – em mitologia ameríndia, o ser sai do mundo – e afasta-se da subjectivação do nós, do todos e todas. Este consenso distraído de escrever bem sem dizer nada instalou-se com inércia. Júlio Gomes
Apesar da opinião e ofício coincidentes, poucas semelhanças haverá entre a pragmática Bárbara Bulhosa e o intelectual Júlio Gomes. As entrevistas são preciosas, sobretudo se lidas de enfiada, mas as duas citações valem como provocação e pouco mais. Bárbara Bulhosa foi buscar o inevitável século XIX, como se uma irrepetível coincidência de romancistas criados por geração espontânea tivessem definido aquele tempo, quando o mais provável é ter sido aquele período, sem oferta audiovisual que secundarizasse o romance, a defini-los. Júlio Gomes ainda teorizou um pouco, mas é pouco esclarecedor. A "individuação" é hoje mais frequente? Não será apenas mais notado o seu efeito eventualmente pernicioso, pela pobre biografia colectiva das gerações que escaparam à guerra colonial, perderam depois o 25 de Abril e cresceram no conforto da adesão à CEE, sem abalos de terra (literais ou de outro tipo)? E será mesmo verdade que não existem escritores lusos contemporâneos capazes de esquecer o cotão do seus umbigos e produzir prosa relevante? Já agora, aproveitando o embalo, será assim tão má, a tal "individuação"? Prefiro o escritor fascinado com a sua imagem no espelho àquele ciente da necessidade de abordar a "condição humana".
Na entrevista a Bárbara Bulhosa faz-se ainda referência às décadas douradas de 80 e 90, em que havia Lobo Antunes e Saramago. Dois autores bastam para se falar de uma geração de grandes escritores? Ora, se bastam dois também bastará um e, recorrendo a um critério objectivo, Gonçalo M. Tavares é hoje muito mais conhecido internacionalmente do que os nossos Nobel e quase-Nobel quando estes eram quarentões. Corremos mesmo o risco de passar os próximos cinquenta anos sem que apareça um autor ao nível de Agustina, Vergílio Ferreira, Cardoso Pires, Lobo Antunes e Saramago (admitindo que esta curtíssima lista de consagrados faz algum sentido)? Será que, se formos capazes de corrigir a paralaxe geracional que nos leva a valorizar mais as nossas primeiras leituras, esse autor não apareceu já? Não teríamos até dois, três ou mais, caso os jurados dos concursos literários procurassem prestigiar os prémios sem parasitar o prestígio entretanto alcançado por aquele que volta a ser premiado? E afinal, para o leitor, que importa tudo isto, quando a finitude da vidinha e os seus afazeres impossibilitam a leitura de todos os livros já publicados que lhe despertam interesse?