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OURIQ

Um diário trasladado

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15
Mar09

Erros meus


Eremita

Antes de me mudar para Ourique, os dois "géneros" que mais gostava de cultivar em blogues eram a máxima e a série de textos curtos sobre um mesmo tema. São dois géneros intrinsecamente errados. Quando mostrei as máximas ao meu único amigo intelectual, ele disse-me que eram "péssimas" e que a máxima - na altura empregámos o termo "aforismo"  - é um registo muito difícil, só ao alcance dos grandes escritores. A crítica foi dura, ainda que vaga. O meu problema com a máxima é outro, talvez por não ser um intelectual. Para mim, a máxima é o cúmulo da exposição do autor. É mais cruel do que a autobiografia e talvez tão cruel como uma biografia não autorizada inadvertidamente autobiográfica. Isto porque a máxima é o único caso em que o original coincide com a autocitação, o que é demasiado revelador. Revela a inteligência do autor, como qualquer texto, mas na revelação da consideração que o autor tem pela sua própria inteligência ultrapassa todos os outros géneros. Se continuo é por vício, mas tenho noção do ridículo.

 

O problema que a série coloca é distinto. Na série o diferencial entre o gozo do autor ao escrever e o gozo do leitor ao ler o que foi escrito é superior ao de praticamente todos os géneros, a menos que  autor e o escritor se conheçam e esse conhecimento tenha impacto sobre a fruição da escrita e/ou da leitura - penso numa carta de amor escrita por um amante perdidamente apaixonado por alguém que se quer ver livre dele e tem escrúpulos.  Sentia esta suspeita, mas ontem confirmei-a em casa do inventor. Depois do jantar o meu anfitrião ausentou-se de repente, como costuma fazer, e fiquei a bisbilhotar a sua biblioteca. Descobri então um volume delgado: La Cuisine Cannibale, de Roland Topor. Trata-se de uma série de textos que começam por ser chocantes, depois desconcertantes, depois divertidos, a seguir previsíveis e por fim profundamente aborrecidos. Topor teve uma boa ideia: imaginar receitas de culinária em que os ingredientes são seres humanos.  O tom é propositadamente amoral. Eis um pastiche:

 

Pretinho com laranja: o pretinho deve ter menos de 12 anos e procure surpreendê-lo com um golpe rápido de cutelo, caso contrário ele ficará muito agitado e acumulará ácido láctico na carne. Retire as miudezas pelo ventre. Golpeie depois a carne, preenchendo os cortes profundos com louro e malaguetas;  massaje o corpo com 4 mãos cheias de sal grosso, antes de o deixar a marinar de véspera em vinha de alhos. No dia seguinte, unte o pretinho com  manteiga e leve ao forno, pré-aquecido a 220 graus. Quando o corpo começar a dourar, regue-o abundantemente com sumo de laranja e cubra-o com papel de alumínio. Continue a assar durante duas horas. Retire o prato do forno, decore a gosto com rodelas de laranja antes de servir. Acompanhe com batatas a murro e tinto alentejano. 

 

Topor repete esta receita uma série de vezes. Com bebés, com barbudos, etc. A ideia depressa deixa de resultar, inclusive os suíços de fricassé. Se a série não tem uma estrutura que faça o todo superior à soma das partes, depressa se entra na subtracção. Também aqui, se continuo é por vício; sei que é uma aposta perdida, a menos que encontre uma estrutura. 

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