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Eremita
Leitura do jornal no café perto antigo quartel dos bombeiros, depois de almoçar um litro de gaspacho. Um rapaz de 19 anos matou a namorada à facada e eu continuo a pasmar. O crime passional, como um cúmulo de egoísmo e estupidez, não deve gozar de tolerância social e eventualmente até jurídica. Num mundo imperfeito e justo, matar a mulher seria mais grave do que matar a namorada, que seria mais grave do que matar a amiga, que seria mais grave do que matar uma desconhecida. Ora, parece que é ao contrário.
Suspeito que grande parte destes crimes sejam a quente, com a surpresa a potenciar a raiva e a frustração. Não creio que se possa fazer algo para atenuar a raiva e a frustração, mas talvez se possa atenuar a surpresa. Por outras palavras, seria do interesse do criminoso em potência conseguir associar a surpresa aos momentos bons e não aos maus. Essa percepção já existe, de resto. Qualquer homem, quando se sente realmente feliz no amor, cedo ou tarde confessa - ou em algum momento o pensa - que não sabe como conseguiu conquistar a sua mulher. Logo, ser abandonado por essa mulher não é mais do que o esperado e ninguém deve desatar às facadas pelo restabelecimento da ordem natural das coisas, por maior que seja a sua frustração ou raiva. O truque, em suma, é olhar para o momento da separação não como um pico de imenso azar e sim como o fim de uma longa sorte. Mas como se explica isto às pessoas, sobretudo num país sem tradição de fortune cookies?