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OURIQ

Um diário trasladado

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10
Mar11

Uma namorada para Kim Myong-Guk


Eremita

A publicação apressada deste rascunho incompleto visa aumentar a pressão (pressão alta, na gíria) para começar o conto sobre futebol de título O Nosso Antídoto é o teu Veneno. Estou muito empolgado com esta futura história inspirada na figura de um anti-Messi, um defesa do Real Madrid que treina o ano inteiro exclusivamente para as 4, 5, 6, por vezes 7 partidas anuais em que defronta o génio argentino. Os nomes de clubes e jogadores não vão aparecer, mas a inspiração é essa. Antes preciso de acabar esta história, a que uma leitora já disse que "faltava algo" e suspeito que não era apenas o fim. Nada como publicar os 30% entretanto produzidos para escrever os restantes. Ainda não consegui fazer passar esta ideia aos meus leitores, mas no Ouriquense a exposição da incompletude é um meio para atingir um fim.

 

 

 

 

 

Da varanda mais alta de um robusto edifício cinzento e com uma frente de imponentes colunas, dois militares  de fardas bem adornadas espreitam as actividades que decorrem no pátio. Ambos se concentram nas costas nuas de Kim Myong-Guk, a grande esperança da nação para as Olimpíadas que se aproximam. Campeão mundial de halterofilismo na categoria de pesados, tanto no arremesso como no arranque, detém ainda 4 das 5 melhores marcas de sempre em ambas as especialidades na categoria de - 105 kg e dois recordes mundiais obtidos dentro do país, incluindo um recorde absoluto no arranque, mas não homologados pela federação internacional da modalidade, gestos que a nação entendia como uma ingerência do capitalismo imperialista nos seus assuntos internos e que reforçaram o estatuto de Kim Myong-Guk como herói do povo, só ultrapassado nas representações iconográficas pelo Grande Líder, para grande inveja do filho deste e seu natural sucessor, um jovem enfezado, incapaz de erguer o mais leve dos halteres e que parecia não apreciar as mulheres. Os dois militares, apesar das condecorações e insígnias, são de baixa patente e muito novos. Comentam o físico de Kim Myong-Guk, que parece alongar-se tanto na horizontal, dentro dos limites da anatomia, como as verticais do edifício se erguem para o céu, dentro do permitido pela arquitectura. Há uma tendência para não se trabalhar os músculos que não vemos, mas as costas de Kim Myong-Guk lembravam uma cordilheira que algum acidente geológico fez simétrica. Cada músculo parecia destacar-se dos restantes, inclusive os da região lombar, tão volumosos e lustrosos pelo Sol daquela manhã reflectido no suor que chegaram a despertar num dos militares um vago ímpeto de canibal, logo expulso do pensamento com um rápido sacudir de cabeça, que o fez regressar à conversa com o seu compalheiro.

 

- Fala-se em não o deixar ir aos Jogos.

- Seria desastroso para a nação, ele é a nossa única esperança de uma medalha de ouro.

- Temem que não regresse.

- Não seria a primeira vez que sai.

- A tensão subiu. O número de tentativas de fuga quase triplicou e a estimativa é feita a partir do número de abatidos na fronteira terrestre, não se sabe se entretanto cavaram túneis e quantos se lançam ao mar. Há antenas clandestinas por toda a parte que recebem os canais estrangeiros. As revistas americanas são plastificadas e alugadas aos 10 minutos. 

- É o tempo que demoram a ver as fotografias.

- Pouco importa que não as saibam ler, ficam fascinados com a publicidade. 

- Não acredito que Kim Myong-Guk nos traísse.

- E o que te leva a essa certeza?

- A forma como festeja as vitórias que consegue para a pátria.

- Que coincidem com as suas próprias vitórias.

- Ele emociona-se com o hino.

- Nunca chorou.

- Não é de chorar.

- Nem de falar. Nem de sorrir. Myong-Guk é um mistério. Não se sabe o que pensa.

- O que não implica que  queira fugir... Ele aqui é idolatrado, em qualquer outro lugar seria só mais um asiático que confundiriam com um chinês.

- Ele é conhecido dentro da especialidade em todo o mundo. Viste a capa da Time?

- Sim, chegou-me às mãos. E daí? Noutro lugar seria uma atracção de circo, propaganda contra o comunismo. Seria infeliz, sem amigos e sem família.

- Mas que amigos tem ele aqui? E já te esqueceste que é órfão de mãe e pai.

- Reconheço que Myong-Guk é para o taciturno. Daí a ser um traidor...

- Tu não fugirias?

- Por quem me tomas?

- Por alguém que confia em mim. Não fugirias? Não tens vontade de viver noutro lugar?

- Nós estamos bem encaminhados para subir na hierarquia do partido, vamos ter boas vidas.

- Responde com sinceridade.

- Nem vale a pena falar sobre isso. Tenho família, não poderia fugir e deixá-los cá.

- Justamente.

- Por Myong-Guk ser órfão?

- E por nada o ligar nós. Se gostar daqui, é o patriota mais apático que esta terra viu nascer.

- O homem é um campeão, são feitos de outra fibra.

- Por vezes parece autista.

- É da capacidade de concentração. Sente o perímetro do teu braço. Não podes saber o que é erguer 220 kg.

- Tu acreditas nesse resultado?

- Eu conheço o valor nosso povo. E tu?

- Eu conheço os valores dos nossos líderes.

 

Enquanto a conversa decorria, havia atletas que treinavam no pátio, a céu aberto, outros que se abrigavam à sobra de umas amplas arcadas e outros ainda que corriam em volta da pista de tartã instalada sobre o extenso relvado que prolongava a imponência do edifício. O Grande Líder quisera fazer da sua residência oficial o local de treino da elite olímpica do país, para os animar com as suas palavras de incentivo e para mais facilmente se fotografar junto deles, não havendo dia em que as rotativas do jornal oficial do partido não fizessem correr a grande velocidade uma imagem sua junto com algum atleta e por vezes até experimentando algum aparelho, embora não de um ângulo que lhe fosse desfavorável ou se prestasse a algum gozo. A própria grande sala de recepções havia sido transformada num ginásio e o resultado era algo bizarro. A imponência e simbolismo dos frescos e baixos-relevos alusivos à revolução que adornavam todas as paredes contrastavam com a evidente utilidade de uns simples espaldares de madeira, entretanto instalados. E quando a luz deixava de entrar pelas estreitas janelas, que com a ajuda do permanganato de magnésio libertado para o ar das mãos dos atletas definiam raios durante o dia e davam ao recinto uma atmosfera de religiosidade, os enormes candelabros, suspensos no tecto a uns 15 metros de altura, acendiam em simultâneo e ligavam mal com os holofones também instalados de improviso, numa clara demonstração de que a luminotecnia era uma disciplina ainda sem grande tradição no país. Mas a mensagem era clara: o povo desejava que os atletas treinassem noite e dia, para glória da nação. 

 

No princípio do ano das Olimpíadas, a revista Time publicara na capa de um número com uma extensa reportagem sobre o país uma fotomontagem em que Kim Myong-Guk surge como Atlas, erguendo um planeta ainda mais azul, pois só apareciam os países com regimes comunistas, o que foi visto nos círculos mais próximos do Grande Líder como uma provocação, embora certos conselheiros se apressassem a fazer ver que estava ali a prova de que o Grande Líder era a referência suprema entre as restantes nações comunistas. Kim Myong-Guk era um herói fora de tempo, num mundo já sem Guerra Fria.

 

Continua

 

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