Um tributo a John Coplans
Eremita
John Coplans
O mano passou por aqui ontem e trazia uma supresa: uma resma de rascunhos, poesia de juventude, várias provas da minha intensa actividade de desmanchadeira de diários, cópias em papel químico de cartas de amor e muitas folhas escritas à máquina. Passei a noite a reler aquele material e ainda não preguei o olho. Vai tudo para o ecoponto, menos umas folhas agrafadas e dactilografadas com a estupidez de quem imita o escritor nos aspectos mais acessórios, mas também o cuidado e a modéstia de quem pressente ter nas mãos tanto o primeiro rascunho como uma última edição de autor. Daí a mancha gráfica cuidada, as margens tão generosas.
Trata-se de um conjunto de umas cinco ou seis dezenas de textos (não estão numerados) que escrevi durante os meses que frequentei o tal novo ginásio, de Janeiro a Julho deste ano. Terminei-os antes de vir para aqui e foi o último projecto literário, pois em Ourique deixei de escrever e não faço absolutamente nada, tirando ler e outros passatempos, como o tiro aos comprimidos -agora também racho lenha, mas veremos quanto tempo dura este novo capricho. Conto começar a transcrevê-los para o Ouriquense. E se houver scanner na vila, talvez até deixe umas fotografias do original dactilografado, por causa daquele efeito legitimizador do making of.
Os primeiros textos estão praticamente todos riscados a tinta vermelha ou então têm frases metralhadas com a tecla "x". Ainda se consegue perceber as razões deste fuzilamento: tinham sido falsas partidas. Eu chegava a casa vindo do ginásio e sentia-me refém das impressões mais imediatas. Tudo o que escrevia girava em torno do sexo. Como não é um material fácil, só destilava banalidades. Este fragmento, por exemplo: "no balneário dos homens, há quem oculte sempre o sexo com uma toalha, quem com ele se passeie ostensivamente e quem o trate com a indiferença que damos ao calcanhar, destapando-se umas vezes e outras não, de acordo com critérios práticos ou de simples higiene. Eu sou deste terceiro tipo, mas só por educação, pois não me sai naturalmente. E fico sempre a pensar que as pilas maiores não estão à mostra. Imagino por lá uns tipos que ocultam as suas para não despertar a inveja, o medo e a tristeza nos outros.(frase ilegível) ... pois, em todo o caso, só pode ser um pensamento de esquerda." Enfim, depois vem uma reflexão sobre a impossibilidade de um homem ter uma ideia do percentil do seu próprio pénis, pois ainda que uma régua e a distribuição populacional lhe sejam acessíveis, os números não batem certo com as imagens, que não batem certo com o que lhe dizem, e o que lhe dizem, de não bater certo com nada, por mero acaso pode até acabar por não ser uma mentira. Mas mesmo naquele texto se percebe alguma inibição e os típicos temores que só se afastam de um registo de adolescente pela segurança algo conformada de uma rotina sexual.Se era para usar o corpo e os corpos do ginásio para escrever assim, mais valia ter ficado em casa.
Se fosse de forjar epifanias, diria que o entendimento - digamos - profundo de um ginásio ocorreu no dia em que trabalhava os deltóides numa máquina e, mesmo à minha frente, uma rapariga corria de costas voltadas para mim. Tinha uma roupa - um top de licra? - que lhe descobria uns ombros muito harmoniosos, umas omoplatas bem revestidas, a região lombar com uma suave curvatura que fazia a transição concâvo-convexo no lugar perfeito... enfim, um corpo cinzelado com o bom senso de quem sabe que não deve perder toda a gordura nem crescer demasiado músculo. Eu tentava disfarçar o olhar fixado nas suas nádegas com uma máscara de esforço que me levava a semicerrar os olhos, mas aquele rabo não saía do campo de visão, apenas ficava ligeiramente desfocado, também por causa do suor nas pestanas. Só que em algum momento o rabo sublime e enxuto passou a ser visto como um símbolo de fertilidade e sem ponta de lascívia. À minha frente, a Vénus de Willendorf corria sobre a treadmill. Não estava a alucinar, limitei-me a fazer uma associação, mas como há um fascínio generalizado por aqueles seios pesados e coxas poderosas, e quase nenhuma imagem do traseiro da Willendorf, tê-lo imaginado a partir de um rabo pós-moderno fez-me dar descanso aos deltóides e pensar por momentos se não haveria ali um princípio de deserotização algo redentor, que talvez me reabilitasse ainda a escrita. Descair no extremo oposto e tornar aquele espaço num ringue em que se boxeia desesperadamente contra a efemeridade, pela tonificação do corpo (a defesa alta) e pela reprodução (o uppercut que dá a vitória por knockout) também me pareceu algo forçado. E como tudo me parecia bastante plácido, a sugerir que a tensão sexual era na verdade neutralizada pela concentração de narcisos, não via ali a malha social dos ginásios onde se pratica desporto de competição, algo capaz de me levar a um pastiche do conto de Ruben Fonseca que acabara de ler, só sobrava mesmo fazer do corpo pretexto e manifesto: se o que está ao alcance de um homem normal é escrever sobre si próprio e se o homem só tem poder sobre o seu corpo, embora nada o force a circunscrever-se à escrita sobre o corpo, não causará surpresa que em alguma altura inscreva o seu corpo na escrita.
Lembrei-me então de uma exposição do fotógrafo John Coplans, que vira na adolescência, na Fundação Calouste Gulbenkian. Eram auto-retratos enormes de um corpo nu e envelhecido. Como nunca se via o rosto, havia ali o mesmo efeito de apropriação que se explora nas sequências pornográficas de felação, em que o homem é excluído da imagem de tal forma que o ângulo do seu corpo se funde com o do espectador, que lhe toma de empréstimo a imagem do pénis. Também Coplans fazia com que um rapaz se apropriasse dele, mas para estender a sua vida e não o corpo - afinal, gostamos de comprar antiguidades. O corpo de Coplans ainda hoje me surge como o mais almejável dos desejos, embora lutasse contra ele todos os dias naquele ginásio. Era como se aceitasse que iria passar a vida atrás dos corpos de Mapplethorpe, num esforço inglório, mas a partir de então com a tranquilidade de quem na juventude passou revista ao lar onde sabe que teminará os seus dias e não desgostou da decoração. Por isso concluía sempre os exercícios com um sorriso, logo a seguir a desfazer a máscara de esforço. Isto criou vários e deliciosos equívocos. Por exemplo, a tal rapariga, quando se virou e me viu, sorriu de volta. Devo muito a John Coplans.