Ases, para que vos quero?
Eremita
Sentanyhu foi hoje enterrado segundo o ritual cristão, ainda popular nesta zona da cidade. Não vi caras conhecidas e caía uma chuva miudinha que convidava a apressar a cerimónia. Ao todo estariam umas 15 pessoas, uma metade de pretos, outra metade de brancos e mestiços. No meio de tanta gente humilde, senti-me mal dentro da minha gabardina de marca, mas deixei-me ficar por ali algum tempo, recordando-o. Entrevistei-o há 40 anos, no começo da minha carreira. Ele era então um ídolo planetário. Ficámos amigos e anos depois o nègre fui eu e fiz-lhe a autobiografia. Levei-a no bolso até ao cemitério. Não está muito bem escrita e nem sequer foi por perfeccionismo meu, mas gosto de olhar para a capa em que Sentanyhu substitui Adão no conhecido fresco de Miguel Ângelo. É a mesma pose e o mesmo toque divino do Deus barbudo, só que o corpo de Sentanyhu- como dizer isto?- supera o corpo original, de Adão. Sentanyhu foi um gigante de proporções perfeitas e não há registo de corpo mais poderoso na história da humanidade. É factual, trata-se de uma fotografia montada sobre a pintura. O braço esquerdo dele, com uma proporção de formas, um equilíbrio de músculos e uma discreta sugestão de veias subindo pelo antebraço, reduz Deus a uma figura de velho decrépito. É Sentanyhu quem toca em Deus e não o contrário. Olhando a sua campa, pareceu-me que o Senhor resolveu corrigir a afronta.
Todas as biografias tratam das origens e nesse trabalho o biógrafo pode consumir-se, mas eu tive sorte. Sentanyhu veio ao mundo já com 6 meses de idade e nenhum antepassado. Especulou-se muito: primeiro, que era etíope, sudanês, somali ou queniano; depois, que era egípcio, nigeriano, angolano, mauritano, madagascarense, cabo-verdiano, brasileiro ou afro-americano. Convenci-o de que o melhor era não ir atrás das suas origens, que naquela altura, famoso e rico, ele seria alvo de todas as vigarices e acabaria a descartar dezenas de mães, todas tão arrependidas quanto miseráveis. Este argumento bastou e pude começar o livro com uma frase seca - "Foi deixado com dois anos dentro de uma caixa de frutas diante do portão da casa de seus destinados pais". Há nesta frase uma palavra que não é minha, mas seria deselegante revelá-la. A casa ficava num bairro abastado de Marselha e pertencia a um casal de franceses que fez fortuna na alta finança; faleceram há poucos anos e não viram a morte do filho adoptivo.
Havia na casa uma piscina, mas que até Sentanyhu saber nadar esteve sempre coberta por uma lona e sem água. Era no court de ténis que as actividades ao ar livre da família decorriam. O pai fora um bom jogador, que chegou a ganhar alguns troféus antes de o percurso para normalien o afastar do ténis de competição. Ele gostava de conviver com os jogadores do circuito ATP, abria-lhes as portas e tentava convencê-los a que treinassem em sua casa, tendo para isso apetrechado o court e os anexos com equipamento profissional, nomeadamente uma SuperCoach, a famosa máquina de cuspir bolas de ténis. Sentanyhu deu os primeiros passos num court de ténis a uma semana de completar 1 ano de idade, ou seja, cerca de 6 meses depois de o encontrarem dentro da caixa de fruta, mas foi derrubado por uma das bolas lançadas pela SuperCoach, pois o pai, por narcisismo, costumava programar a máquina para disparar em todas as direcções do campo e depois pedia que a mulher reparasse em como ele ainda aguentava o ritmo. Foi num desses instantes de intermitente vigilância que o pequeno Sentanyhu se ergueu sobre as pernas e avançou pelo court, recebendo um forehand wide volley flat, depois de a máquina ter atirado o pai para o outro extremo do campo com um backhand wide volley backspin. Após esse incidente, Sentanyhu continuou a gatinhar até aos 3 anos.
Como olhamos para uma vida alheia com a tentação de associar todos os episódios insólitos, nem a biografia serviu para corrigir a ideia de que ter gatinhado até tão tarde foi a razão para a sua superioridade física. Sentanyhu já estava entre o 1% dos mais altos para a sua idade quando o encontraram. Ele não tombou como um pino de bowling varrido pela bola, tendo apenas vacilado um pouco. E aquele corpo soube absorver o impacto, pois o bebé só começou a chorar instantes depois de cair, como se tivesse tido tempo de rever o que se passara e o choro surgisse mais como uma conclusão inevitável do que um reflexo involuntário. Mas tal como sucedeu quanto à sua origem, especulou-se muito sobre o tamanho que Sentanyhu viria a atingir. Ele teria sido um produto de laboratório, feito à base de suplementos alimentares e factores de crescimento impossíveis de detectar, por serem substâncias da vanguarda biotecnológica e por tudo se ter passado há tanto tempo que o resultado final era um corpo de gigante mas feito de carne e osso como qualquer um de nós, sem marcas da sua génese, como convém a qualquer teoria da conspiração que se queira salvaguardar de escrutínios.
Muito se escreveu também sobre o dia em que Sentanyhu pegou pela primeira vez numa raquete de ténis. Quem se der ao trabalho de ler todos os relatos, verificará que o miúdo teria 4, 5, 6 ou 7 anos, mas eu falei com o pai e não há motivo para pensar que o senhor me enganou. O episódio nada teve de extraordinário; Sentanyhu era um miúdo de 7 anos que não pegou na raquete com aquela solenidade de quem escuta uma banda sonora vinda do futuro e nem sequer o fez de espontânea vontade, como um predestinado. Foi seu pai quem o incitou, desejoso de saber se o pequeno tinha jeito. Sentanyhu não deixou boa impressão, pois fez da raquete uma enxada, deixando o pai algo incomodado diante dos seus convidados sofisticados, o que terá levado um deles a sugerir, sem arrancar sorrisos: “Deixa lá. O movimento da enxada aproxima-se mais de um arquétipo junguiano do que uma esquerda a duas mãos”.
Só passados uns meses Sentanyhu voltou a pegar numa raquete e desse dia falaria depois muitas vezes. Os pais não estavam em casa e um dos seus hóspedes exercitava o serviço. Era um jogador do Top 100, embora não uma grande estrela. Sentanyhu acordou ao som das batidas, tão regulares que julgou estar a ouvir a Supercoach. Só à janela do seu quarto percebeu que era um homem que servia e ali ficou, de cotovelos sobre o parapeito e mãos a apoiar a cabeça.
O gesto de colocar a bola de ténis em jogo evoluiu ao longo dos anos para um nível de dificuldade técnica que o afastou do gesto de introduzir a bola numa partida de matraquilhos, em que a técnica só serve o fairplay, ou no futebol, em que o grande círculo e a distância à baliza fazem do primeiro pontapé uma mera formalidade. No ténis o serviço pode decidir uma partida. Já se comparou o serviço à forma como os homens das cavernas projectavam uma lança, mas o movimento é muito pouco natural. Talvez por isso Sentanyhu inclinasse cada vez mais a cabeça, tentando um ângulo que tornasse a coreografia do jogador mais explicável. A verdade é que parecia encantado. O homem posicionava-se praticamente de lado para a rede, atirava a bola ao ar enquanto armava o braço com a raquete, deixando-o flectido e para trás, para depois o soltar numa chicotada rápida que era acompanhada pelo corpo inteiro, como se houvesse tensão elástica acumulada nos joelhos e no tronco torcido que se somava ao gesto do braço e transmitia, não só uma quantidade de movimento que ninguém diria possível, mas um efeito que permitia controlar a trajectória da bola, fazê-la cruzar a rede a uma altura segura e encurvar depois na direcção rectângulo do adversário, podendo por isso abrir os ângulos e ganhar o ponto logo com um ás, forçar uma resposta para a rede, para fora ou para uma segunda pancada que é uma estocada final.
Após uns instantes de contemplação, Sentanyhu saiu de casa e afocinhou de encontro à rede que isolava o court de ténis, nas costas do tenista; depois, correndo muito, foi posicionar-se no enfiamento das bolas de serviço, tendo aí o cuidado de deixar a cara afastada da rede, para logo voltar à posição inicial, recuperando o ângulo reverso, sempre muito acelerado. O tenista acusou a agitação de Sentanyhu, achou-lhe graça e convidou-o a entrar e pegar na raquete. Sentanyhu acedeu e assumiu logo a posição de serviço, imitando o tenista, o que o fez sorrir. O sorriso manteve-se armado quando o miúdo lançou a bola na vertical e de imediato se transformou em máscara de espanto. Na verdade, a bola transpôs a rede com tal velocidade que talvez o espanto traduzisse o estímulo visual da batida da bola num dos cantos da área de serviço acrescido do som mais forte da pancada da raquete na bola, porque apesar de separados em apenas alguns centésimos de segundo, a diferente distância a que a bola se encontrava do tenista em cada instante terá feito com que os dois estímulos fossem processados em simultâneo pelo seu cérebro, com grande espectacularidade. O tenista perguntou-lhe: “Onde aprendeste a jogar?” E ainda mais incrédulo, pediu-lhe: “não queres servir outra vez?”
Uma hora depois, o tenista estava prostrado e Sentanyhu continuava a servir. Ainda não tinha falhado uma única bola, embora o tenista tivesse sido capaz de responder a todos serviços. De certa forma, o seu espanto inicial diminuíra a cada resposta, que parecia um ponto ganhador porque Sentanyhu nem se preocupava em responder. Mas quando se sentou para descansar e enquanto observava o miúdo, o tenista recuperou o assombro inicial. A forma como ele servia era perfeita. Mesmo um aprendiz dotado demoraria anos a fazer daquela coreografia uma rotina. E a força era inexplicável. “Que capacidade de aceleração era aquela? Como conseguia ser tão preciso e regular? De onde vinha a potência daquele adolescente?” O tenista não sabia que Sentanyhu tinha apenas 7 anos.
Três anos depois, Sentanyhu começou a competir em torneios. A sua estreia foi premonitória: ganhou a competição sem esforço, irritou os adversários por apenas servir e levantou suspeitas junto dos organizadores quanto à sua real idade. “Francamente! Querem ver os seus dentes como se faz aos cavalos?” – barafustou o pai, que durante muitos anos o acompanharia no circuito, para depois sentenciar: “Habituem-se. Nas próximas décadas ele vai ganhar todos os sets de todos os jogos de todos os torneios em que participe”. Havia algum fundamento nas críticas. Um jogo de ténis com Sentanyhu era muito aborrecido. Ele assegurava sempre o jogo de serviço com uma percentagem de ases que foi subindo ao longo da sua carreira, dos iniciais 10% para uns impressionantes 85% no seu último ano; o opositor assegurava sempre o seu jogo de serviço, pois Sentanyhu fazia figura de corpo presente e só começava a armar a raquete nos tiebreaks, que por vezes pareciam intermináveis e invariavelmente acabavam com uma dupla falta do adversário. Após ter sido uma curiosidade nos circuitos infantis, Sentanyhu começou a competir aos 13 anos no circuito profissional. Tinha então 1,85 m e pesava 90 kg.
O gigantismo de Sentanyhu foi recebido com uma desconfiança que diminuía à medida que ele ficava maior. Ao crescer em público, legitimou retrospectivamente todos os seus títulos infantis e juvenis, por provar que aquele era o corpo de um jovem. Mas é claro que a sua carreira só arrancou a sério a partir da primeira vitória em Wimbledon, aos 14 anos, então com 1,94 m e 95 kg. No dia seguinte, o Times escrevia em manchete: “O TÉNIS MORREU”. Não era a primeira vez que um serviço poderoso fazia tremer os alicerces do desporto e os mais velhos ainda se lembravam do alemão Boris Becker, mas Sentanyhu parecia ser uma ameaça incomparavelmente maior e de uma precocidade embaraçosa. Como iria jogar aquele miúdo quando estivesse na casa dos vinte anos? Que altura teria? Resistiria o desporto a um jogador imbatível que, na verdade, não jogava, apenas servia?
Quando completou 16 anos, Sentanyhu passou a competir apenas nos quatro grandes torneios e não mais deixaria de ganhar o Grand Slam. É também a partir dessa altura que o jovem começa a cultivar um estilo de conferência de imprensa que um colega meu viria a descrever como o de um “Ali melancólico”. Sentanyhu produzia grandes citações, mas carregadas de tristeza, como se o maior crítico do seu jogo fosse ele próprio: “Não é por ser o melhor que sou obrigado a gostar de ténis” (L’Équipe), “Só sei servir, não vale a pena fingir o resto do jogo” (New York Times), “Sou o mais alto, o mais forte e o mais chato” (Vanity Fair), “Sirvo por dinheiro” (Le Monde). Mas se estes títulos vendiam jornais e Sentanyhu depressa se tornou um ícone pop, 5 anos a competir no circuito profissional fizeram com que o ténis começasse a perder popularidade. Os grandes torneios tendiam a atrair apenas jogadores de segunda categoria, as bancadas para as grandes finais só se mantinham compostas porque os bilhetes passaram a ser gratuitos, os direitos televisivos desvalorizavam-se e os patrocinadores desistiam do ténis – “antes o Curling”. Era preciso fazer algo.
Quando Sentanyhu completou 20 anos, apareceu na capa da Rolling Stone, anunciada como a “edição definitiva”. Ele não havia crescido no último ano e concluiu-se que o gigante atingira a sua estatura final: 2.20 m, 106 kg, uma envergadura de albatroz e músculos longos, estriados à flor da pele, a sugerir força e velocidade. Explicar por que motivo ele não foi coroado como sex symbol naquele número da revista não é tarefa fácil e a opinião que vem na autobiografia é a minha, não a dele. Sentanyhu havia sido até aí razoavelmente assexuado. Talvez para isso contribuísse o facto de ele ter um rosto de “um preto qualquer” para os brancos e “rosto descartável” para os pretos, como cheguei a ler. Não era bonito, nem feio. Jamais fez uma alusão a relacionamentos amorosos. Jamais deu à imprensa dos mexericos matéria prima e rapidamente se desinteressaram dele, que passou a ser visto no meio como um freak e só não foi gozado por ser preto. Já os pretos, nunca o aceitaram como um deles, em parte por Sentanyhu ter sido educado por brancos e abandonado por uma preta, em parte por não haver um grande torneio de ténis em África, em parte porque ele nunca fez qualquer declaração em que mencionasse a sua cor de pele, a sua herança cultural ou qualquer preocupação com o mundo - “Não é por servir bem que vos vou ensinar política” (Libération).
Sentanyhu era um problema e mundo do ténis reagiu. Primeiro tentaram promover o New Grand Slam, anunciado com esse nome, embora ficasse conhecido como o Grand Slam dos Pequeninos ou os Majors for Minors. Tratava-se de um circuito paralelo que incluía o Sony Ericsson Open, o Monte Carlo Rolex Masters, a Rogers Cup e o BNP Paribas Masters. A ideia não era consensual e desagradou aos organizadores dos Majors, mas foi Sentanyhu quem os ajudou, pois decidiu num ano jogar e ganhar o New Grand Slam, em clara provocação. Veio então a ideia de sobrepor as datas de Wimbledon e Roland Garros, mas Ingleses e Franceses desentenderam-se e o plano não avançou. Alguém se lembrou depois de subir a altura da rede de ténis, para que o serviço de Sentanyhu deixasse de ser tão eficaz, o que gerou grande controvérsia. Foi dito que não era justo mudar as regras por causa de um jogador - era gente que não vivia do ténis. A rede subiu mesmo, embora não o suficiente. Sentanyhu continuou a dominar todas as partidas e a registar uma percentagem de ases impressionante, embora começasse a perder um ou outro tiebreak. Quando sugeriram que se subisse a rede um pouco mais, foram os outros jogadores que se revoltaram, o que fez com que a rede voltasse a descer para a altura de sempre. Mas estava aberto o caminho. Sentanyhu teria de ser derrotado na secretaria.
A solução foi criar escalões de alturas no ténis. A medida veio com uma hipocrisia requintada, pois estabeleceu três grupos: o dos jogadores com menos de 2,05 m, o dos jogadores entre 2,05 m e 2,25 m, e o dos jogadores acima de 2,25 m. A brincadeira do último escalão levou à migração uma mão cheia de jogadores de basquetebol para o ténis, a fim de poderem reclamar os prémios dos grandes torneios, não havendo memória de finais tão mal jogadas. Sentanyhu ficou num grupo com umas três dezenas de tenistas profissionais, mas todos começaram a evitá-lo, inscrevendo-se nas competições em que ele não participava. Como quase todos os torneios impunham um mínimo de participantes, Sentanyhu, que tinha até então ganho 6 Gram Slams consecutivos, ficou na prática impedido de competir. Tinha 22 anos.
Publicámos a sua autobiografia quando ele completou 33 anos. Entendemo-nos bem. Sentanyhu colaborou em tudo, mostrando-se muito activo. Sugeriu o título "Ases, para que vos quero?", que o nosso editor acabou por trocar já nas provas finais para "Sentanyhu: vidas". Também sugeriu para subtítulo a frase "a autobiografia autorizada", o que entendi como um agradecimento pelo meu trabalho, mas então fui eu a dizer-lhe que ninguém iria perceber a ironia e que talvez até pensassem que se tratava de uma estupidez. A autobiografia divide-se nas secções Ascensão, Queda e Comeback. Foi ainda Sentanyhu a pedir que trocasse "comeback" por "redenção", mas aconselhei-o a não o fazer, pois estaríamos a ultrapassar todos os limites - seria a única vez que o vi a soltar uma gargalhada franca. As vendas foram astronómicas e houve várias reedições, durante quase uma década.
Fui visitá-lo pela última vez no dia em que saiu do prelo a primeira edição encadernada da nossa obra. Sentanyhu recebeu-me ao portão com os três filhos suportados pelo seu braço esquerdo e anichados no seu peito. A mulher esperava-nos junto da piscina e tinha preparado um sumo de manga. Casais amigos concentravam-se junto do churrasco e não reagiram à minha presença. Sem se saber de onde, chegava o som de uma guitarra eléctrica africana, creio que gravada. A viagem tomou-me mais de 6 horas, mas não me posso queixar, pois Sentanyhu pôs o seu jacto privado à minha disposição. Não me posso mesmo queixar. Ele fez-me rico e é sabido que um jornalista desportivo não acumula fortunas. A diferença é que o livro me deu um peso na consciência e pareceu aliviar a sua. Como já passaram muitos anos, creio que não fará diferença contar. Sentanyhu não entrou na espiral descendente de drogas, bebedeiras, mulheres e jogo que descrevemos no livro, respondendo aos anseios do grande público. Consequentemente, também não teve nenhum comeback, que é a forma preferida que o grande público tem de sentir empatia, por lhe apaziguar a frustração. Na verdade, Sentanyhu queria que o grande público se fodesse. Por isso mentimos. Mentimos em quase tudo. Sentanyhu não deprimiu no primeiro ano depois de deixar o circuito. É verdade que desapareceu de vista, mas por ter sido nesse ano que conheceu a mulher com quem viria a ser feliz até ao dia em que ela faleceu, pouco tempo antes da sua morte, como por vezes acontece com os casais enamorados. Instalaram-se numa ilha das Antilhas, fizeram amizades entre a vizinhança e tiveram filhos. Sentanyhu continuou indiferente ao mundo, viciou-se em pesca desportiva e foi-se libertando da melancolia, inclusive aos domingos. A sua casa era uma mansão ao estilo colonial e tinha um court de ténis, mas que ele nunca chegou a usar para servir. Perguntei-lhe por que motivo não terraplanara aquela área, para a reconverter, em vez de ter optado por uma solução provisória: encher o court de grandes vasos com bananeiras e outras árvores de fruto, mantendo a rede numa tensão que apenas os anos foram afrouxando e que não mais bloqueou trajectórias de bolas, apenas fez de ocasional poleiro para os pássaros tropicais que ali se refugiavam. Sentanyhu foi lacónico, como sempre, e apenas me disse que gostava de abrir a porta do gradeamento e passear por entre aquelas árvores, mas não todos os dias.
Já poucos se lembram de Sentanyhu, apesar das suas inigualáveis estatísticas. Mas mesmo trinta anos depois, ainda existem escalões no ténis. O ténis dos gigantes é menos impressionante que o dos jogadores de estatura normal e menos popular que o de pares feminino, só que é esse o legado de Sentanyhu e se não o acabaram quando ele era vivo, seria ainda mais imoral fazê-lo após a sua morte.
Ourique, Outubro de 2010