O piano chegou há uns dias. Um piano a sério, isto é, alemão e centenário, que pertenceu à avó da L. e resolvemos restaurar e afinar. Um piano vertical e modesto, diga-se, para prevenir eventuais injúrias classistas. Muito mais do que a compra de um carro ou ir de férias para o estrangeiro com toda a família, é a chegada do piano que consolida o nosso projecto de família burguesa. Na casa onde cresci, nunca se ligou muito à música. Creio até que, apesar de terem pago as aulas que tive na Academia de Amadores de Música, os meus pais temiam que o meu interesse pela guitarra me desviasse dos estudos. Connosco será diferente. O meu conceito de educação é medieval com uma pitada greco-romana. Interessa a formação moral, o trívio, o quadrívio e a actividade física. Ora, o quadrívio compreende a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. Há estudos que demonstram os benefícios da formação musical no desenvolvimento de outras competências, mas que se lixem os estudos. Não quero que as miúdas aprendam Bach para as exibir como macaquinhos habilidosos ou para que se façam boas gestoras, seguindo um plano de optimização de competências; quero que construam uma verdadeira cultural musical, que saibam resistir à horrenda oferta musical com que a sociedade de consumo corrompe as crianças - o Bieber, a Violeta, a Luna, os Coldplay, etc. - e na adolescência não reduzam a música a veículo identitário - que apreciem os The Smiths do seu tempo, mas percebendo o que o novo Johnny Marr faz com a guitarra, e que, como o passar dos anos, identifiquem o jornalista de música pop como uma personagem trágica que envelhece mal. Ainda isto: que não passem pela frustração traumática de uma carreira de concertista falhada, mas se façam melómanas para a vida.