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OURIQ

Um diário trasladado

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Um diário trasladado

31
Jul17

Pasolini: um herói da homossexualidade?


Eremita

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Ele [Pasolini] representou a figura de uma homossexualidade heróica que já não tem lugar no nosso tempo. Pelo tempo em que viveu e pela sua atitude política, Pasolini não aspirava a uma neutralização da homossexualidade, à sua integração estatal, à modelação pelo Estado. (...)

Pasolini não foi uma figura respeitável e nunca se deixou neutralizar. Vista a partir do seu observatório (instalado num tempo histórico, mas também num tempo político), a homossexualidade, hoje, embora bem sinalizada com as cores do arco-íris, é uma homossexualidade “branca”. Passámos a um modelo unissexual, uniformizado, comum aos homossexuais e heterossexuais. (...) 

 

Pasolini não descia aos bas-fonds da Roma proletária com a disposição esteticista com que o barão Von Gloeden se instalou em Taormina, no início do século passado e fotografou os efebos usando as suas prerrogativas de rico aristocrata neo-clássico, imaginando que estava na Grécia Antiga. Pasolini, pelo contrário, integrou a sua sexualidade na luta política e entendeu que o sexo era algo que tinha de entrar nos cálculos da sua luta contra a burguesia, que ele viu como agente do apocalipse, executora do fim do mundo. António Guerreiro, Público 

 

É inegável que a conquista de direitos cívicos pelos homossexuais e a sua presença cada vez mais visível na sociedade quase secaram uma cultura paralela, marginal e transgressora, o que deixou uma corte de nostálgicos. E é até provável que Pasolini ficasse horrorizado se ressuscitasse e visse os muitos actuais casais homossexuais que cumprem uma conjugalidade monogâmica sob uma espada de Dâmocles da infidelidade, amestrados pelos deveres e delícias da parentalidade, em tudo decalcando o modelo da tradicional família heterossexual burguesa - imaginá-lo hoje repetindo o papel do jornalista que interrogou os italianos sobre a sua sexualidade em Comizi d'Amore (1963) é antecipar um filme com final violento (assassínios em série, suicídio ou assassínios em série seguido de suicídio, creio). A minha dúvida prende-se apenas com o heroísmo do Pasolini homossexual a que Guerreiro se refere. Herói para quem? Nenhum movimento LGBT tem Pasolini por herói, nem sequer em Itália, onde o texto de Guerreiro teria suscitado muito mais interesse do que no Público, em parte dado o posicionamento político complexo deste italiano excepcional, um homem de esquerda mas - ou precisamente por isso, segundo ele - capaz de ficar do lado dos polícias (os pobres) que carregaram sobre estudantes universitários (os filhos da burguesia) e um artista transgressor mas tão crítico do aborto como um católico conservador, o que apenas reforça a ideia de que o activismo gay dominante escolheu mesmo a "normalização" da homossexualidade e como heróis prefere homossexuais com um pensamento mais convencional, perfeitamente integrado no progressismo esquerdista, como Harvey Milk. Mas acabar aqui seria ignorar o elephant in the room: muito mais do que o seu pensamento ou sequer o seu cinema cheio de imagens perturbadoras para a burguesia, é sobretudo a própria prática homossexual de Pasolini, hoje ainda mais do que quando era vivo, que torna problemática a noção de "heroísmo", por mais evidente que fosse a sua coragem, a intransigência do seu pensamento e a  tragédia da sua morte - ainda assim mais adequada a um mártir do que um herói. Porque ao mesmo tempo que se foi fazendo a pedagogia de que a homossexualidade é distinta da pedofilia e os homossexuais foram ganhando aceitação e entrando num processo de "normalização", dos anos 70 até hoje a sociedade também se tornou muito menos tolerante com a pedofilia e o epíteto de artista já não é de todo atenuante. Basta pensar na evolução do caso Polanski, uma espécie de barómetro da sensibilidade social ao longo de várias décadas quanto a um crime de pedofilia cometido em 1977, ou na crítica unânime com que foi recebido um livro de memórias em que o sui generis Frédéric Mitterrand conta as suas experiências de turismo sexual com menores. Em rigor, Pasolini, o homossexual, era um efebófilo - e não estou a replicar propaganda da direita conservadora, que o abominava e abomina, pois descrições de Alberto Moravia, amigo muito próximo de Pasolini, confirmam a atracção (consequente) dele por adolescentes (entre muitas outras evidências, como o escândalo de Ramuscello, que ditou ida de Pasolini para Roma). Pouco importa a diferença entre pedofilia (uma doença, segundo a OMS, e uma prática criminosa, segundo o Direito) e efebofilia (que a OMS não considera uma doença, nem algum Direito considera um crime), porque esta incomoda até o mais progressista, disposto a aceitar todos os comportamentos sexuais e até experimentar, inclusive parafilias, mas desde que consentidos entre adultos. O consentimento, mas apenas entre adultos, são as duas condições absolutamente necessárias para que não haja censura social e não se entende que heroísmo poderá assentar no sofrimento - imediato ou prazo - e exploração de adolescentes. É uma visão moralista, seguramente, mas que não rejeita o "direito ao escândalo" tão caro a Pasolini, apenas exige alguma arte a quem escandaliza, porque escandalizar à custa do sofrimento alheio não é difícil - um acto terrorista escandaliza, mas não é motivo para o promovermos - e o "prazer do escândalo" não se pode confundir com uma falta de empatia elementar. Enfim, como se não bastasse, sendo Pasolini um marxista, para mais conhecido pela sua crítica do consumismo, pagar para ter relações sexuais com rapazes pobres é uma falha dupla, pela mercantilização do sexo e exploração de uma classe desfavorecida, que o penaliza a ele mais do que um qualquer outro frequentador de prostitutos sem pretensões intelectuais, tal como a pedofilia de um padre, que ensina o catequismo, perora sobre a castidade e os malefícios da masturbação, é mais revoltante do que a de um professor de educação física, que apenas ensina o fair play. Daí que não se perceba bem a "força do passado que chega até nós para perturbar a nossa boa consciência, dizendo-nos coisas que agridem e com as quais já não sabemos conviver" a que se refere António Guerreiro, porque qualquer burguês pode proteger a sua consciência ao sair de um filme de Pasolini recordando os factos da biografia do autor que minam a sua autoridade moral. E se me parece consensual a tese de que na sua obra a sexualidade faz parte da sua luta política, desconfio que Pasolini continuaria a frequentar os bas-fonds da Roma proletária mesmo que não tivesse ganho o estatuto de grande intelectual e artista com uma luta política por empreender. Herói para quem, então? Só para alguns nostálgicos irredutíveis. Porque a dicotomia proposta por Guerreiro, segundo a qual Pasolini preferia a categoria de criminoso à categoria psiquiátrica de "desviante", ofusca o essencial, que é a nostalgia de um estatuto de excepção, ainda que estigmatizado. 

  

29
Jul17

Da boa pedagogia


Eremita

... a quem atribuiu um bizarro acto sexual muito ginasticado, ao estilo da serpente Ourobouros." Pacheco Pereira, o grande educador da classe média, Público

 

Ao deparar-se com esta passagem, o jovem nem precisará do Google imagens para ficar com a Ourobouros definitivamente gravada na sua mente, como se sempre lá tivesse estado. Pacheco Pereira reabilita Carl Jung.

27
Jul17

Eu quero que o "interesse geral" se foda (paráfrase)


Eremita

 

... o debate que urge fazer [sobre o nosso passado colonial] não é no plano académico ou histórico, mas sim no da opinião pública e da memória coletiva; não é no da discussão do passado, mas da nossa perceção dele, hoje; não envolve o esgrimir de argumentos entre historiadores — algo que já foi e continua a ser feito —, mas o despertar do interesse geral para o tema. Paulo Jorge de Sousa Pinto, Público

 

Gostei de ler o artigo de Paulo Jorge de Sousa Pinto, mas tenho alguma dificuldade em imaginar uma discussão pública útil sobre o nosso passado recente que não envolva troca de argumentos entre historiadores. Quem discute, então? A malta das redes sociais e dos blogs? E vão discutir o quê? O nosso passado ou, para se alargar a discussão a todos os ignorantes, a imagem que temos do nosso passado, a imagem da imagem que temos do nosso passado e por aí fora, a tender assimptoticamente para o puro achismo? Por Mnemosine e pela minha saúde, que os historiadores continuem a discutir o assunto no jornais e que não se volte aos concursos sobre figuras históricas e outras estratégias imbecilizantes em nome "do interesse geral". Assim está muito bem, só precisamos de acelerar o ritmo de participação da classe. Venha lá o próximo historiador. Sejamos elitistas.

 

Adenda: João Pedro Marques já respondeu a Paulo Jorge de Sousa Pinto.

26
Jul17

Memória como adaptação ao passado


Eremita

For the purposes of this review, we consider memory as any perturbation in a system, caused by external stimulation, which persists past the cessation of the initial stimulation and alters the system’s responsiveness to subsequent stimulation. Thus, memory, in the broadest of terms, is an adaptation to the past. We should point out that this definition of memory can also apply to many perturbations in non-biological systems, including viscoelastic deformation, anomalous diffusion, capacitor voltage changes, and stock market fluctuations. Gajos que não leram Proust. 

24
Jul17

A questão cigana precisa dos ciganos


Eremita

 

Ciganos d'Ouro. Os aficionados da guitarra reconhecerão entre os elementos do grupo o então jovem Pedro Jóia . 

 

A exclusão e a marginalização explicam a elevada incidência de subvenções estatais contra a pobreza, que são vistas pela população igualmente pobre, mas muito menos excluída, como sendo os ciganos gente “que não quer trabalhar”. O que o silêncio patrulhado que existe sobre os desmandos de alguns grupos de ciganos, principalmente nos subúrbios como Loures e Odivelas, oculta, é que não é a classe média, e muito menos os ricos, que contactam com eles, mas os mais pobres e menos protegidos dos portugueses. É aí que nasce o populismo, no facto de para muita gente, cuja condição económica não é muito diferente da de muitos ciganos, isto parecer ser uma profunda injustiça. E são também eles que presenciam e testemunham muitas pequenas violências de grupo, impondo o número e uma ostentação de ameaça, para quem está numa fila para receber a sua reforma numa estação de correios, ou numa sala de espera de um hospital, ou numa escola onde um problema de disciplina escolar com um aluno cigano atrai comportamentos de imediata agressão. Pode-se dizer que o contrário também sucede, e é verdade, mas estamos a falar de locais e incidentes onde há significativo número de ciganos e famílias ciganas como acontece em certos bairros sociais e escolas de Setúbal. E, como qualquer estudioso do populismo sabe, são muitas vezes este tipo de pequenos incidentes, repetidos diante da inacção e do medo das autoridades, que têm um efeito devastador nos sentimentos anti-ciganos. Pacheco Pereira, Público

 

Se esta prosa de Pacheco Pereira tem o mérito inegável de excluir da discussão a direita assanhada que opina no Obsevador, duvido que seja um ponto de partida para uma discussão com a esquerda de Manuel Loff e Rui Tavares. Porque é muito sintomático que até uma personalidade com a sensibilidade social de Pacheco Pereira escreva um texto em que explica o racismo aos ciganos com base em comportamentos desta etnia que são violações do Estado de Direito, dando essencialmente razão a André Ventura, sem por uma vez referir que o Estado de Direito e a sociedade ocidental também excluem os ciganos, sendo inúmeras as situações de discriminação desta etnia: uma família cigana é impedida de entrar num restaurante, um morto cigano não pode ser enterrado no cemitério escolhido pela sua familia, um cigano é baleado por um polícia por ser cigano e na dúvida prende-se toda a família cigana, entre muitos outros casos. Naturalmente, da esquerda também se esperaria que, ao lembrar que os ciganos são 5% da população prisional e menos de 0,5% da população nacional, não assobiasse para o ar perante as tradições ciganas que são incompatíveis com os valores de uma sociedade ocidental, nomeadamente a estrutura patriarcal que condena muitas meninas e raparigas ciganas a vidas miseráveis. Enfim, ninguém em Portugal é capaz de discutir este problema sem esquecer todas as suas dimensões e produzir um discurso e acção que vão além da tradição académica e diplomática, que se vangloria dos seus bons sentimentos mas aceitou o status quo.

 

 

Enquanto não forem os líderes das comunidades ciganas e ganhar voz e insistir para que as raparigas das suas comunidades fiquem na escola e as gerações mais novas subam na vida pelos estudos, entre outros ajustes indispensáveis para acabar com o estatuto de exclusão desta comunidade, nada mudará e haverá sempre um André Ventura a aproveitar as oportunidades. Como se conseguirá esta mudança? Não tenho a menor ideia, mas sei que os protagonistas da discussão precisam de mudar. 

23
Jul17

A desconfiança que merecemos


Eremita

Foi apenas a um mês de completarem dois anos que as minhas filhas, no mesmo dia, resolveram aceder aos meus pedidos insistentes e beijar o pai. Foram cruéis, mas espero que continuem a tratar todos os homens com a desconfiança que merecemos.

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